Um tal de D’Abreu Medeiros

GERALDO BONADIO – A rua D’Abreu Medeiros, de pouca expressão em nosso sistema viário, começa na avenida São Paulo e tem dois quarteirões. O primeiro se estende até à rua João Ferreira da Silva; o segundo se prolonga dali até um estreito pontilhão sob as linhas da velha Estrada de Ferro Sorocabana que, em sua estrutura inicial – que provavelmente não era a mesma de hoje – foi, por alguns anos, o único sob o leito da ferrovia nos limites do município.

Ao tempo da construção da Sorocabana, a avenida era conhecida como a rua que vai para São Paulo, daí o nome. Por ela, as tropas xucras, após o pagamento dos impostos no registro junto à ponte e encordoadas, tomavam o rumo da capital.

A passagem de 50 mil mulas, divididas em dezenas de lotes, levantava um poeirão constante sobre a cidade, para desespero de quem nela residia. Para amenizar o problema, conta o museólogo Adolfo Frioli, notável pesquisador do traçado da malha viária local, a via pela qual as tropas transitavam foi progressivamente afastada do centro, até chegar à atual rua Souza Pereira.

Em 1891, a Constituição da República proibiu que se tributasse a movimentação de bens entre os Estados. Os impostos sobre animais foram suprimidos e o registro desapareceu. A Câmara, em razão disso, decidiu interligar os campos em que as mulas eram negociadas ao Alto da Boa Vista. Só que a obra demorou e a febre amarela chegou antes.

Só muito mais tarde se construiu a Via Bandeirantes que, depois, recebeu o nome de Raposo Tavares (SP 127).

As mulas, depois de curta caminhada pela rua de São Paulo, eram direcionadas para a esquerda, embicavam no caminho que originou a rua D’Abreu Medeiros, acessavam, pelo pontilhão, a antiga rua Major Barros França (hoje Avenida Engenheiro Carlos Reinaldo Mendes) e, tomando a atual avenida Três de Março, chegavam à Aparecidinha, prosseguindo dali rumo a São Paulo.

Mas quem foi esse D’Abreu Medeiros que virou nome de rua?

Francisco Luiz d’Abreu Medeiros, cujo bicentenário de nascimento ocorreu em setembro de 2018, foi um sujeito irrequieto que, ao longo de sua vida, colecionou pioneirismos. Primeiro professor concursado da segunda escola pública masculina da cidade, foi, também, nosso primeiro teatrólogo e ficcionista e, ainda, o primeiro sorocabano que a ter obras de sua autoria impressas no Rio de Janeiro, sede da corte e capital Império.

Quando veio à luz, a feira de Sorocaba fornecia os burros e mulas indispensáveis à agricultura e ao transporte terrestre, atividades que, até a segunda metade da década de 1950, dependeram da tração animal. Os muares puxavam máquinas e equipamentos agrícolas; pessoas e mercadorias se movimentavam pelo interior do país em lombo de mula.

O predomínio da tração animal na vida econômica do país só foi definitivamente abalado por três acontecimentos que datam da segunda metade da década de 1950: a criação da Petrobras, em 1953, pelo presidente Getúlio Vargas; a implantação, no governo de Juscelino Kubitschek (1956/1960) da indústria automobilística que, além de carros e caminhões, passou a produzir tratores e o início, no mesmo quinquênio, da construção das grandes rodovias federais, como a atual BR 116 que, de início, ligava o Rio de Janeiro à Bahia e hoje, costeando o litoral, vai do nordeste ao Rio Grande do Sul. Essas medidas estruturantes criaram alternativas ao transporte em lombo de mula, coisa que as ferrovias não haviam logrado fazer.

Maior acontecimento comercial do Brasil durante quase 150 anos, a feira de muares de Sorocaba, de acordo com Hélio Brum, congregava não só vendedores e compradores de tropas, mas também “mercadores, artistas, representantes comerciais” e promovia uma integração, repetida ano a ano, “em que os habitantes de uma nação em formação conheciam-se mutuamente”.

Rogich Vieira destaca que ela se desdobrava em dois eventos diversos e complementares: a negociação dos muares xucros que, trazidos do Sul, se processava nas extensas áreas de pastagens e aguadas no entorno de Sorocaba, e, paralelamente, na área urbana, atividades comerciais, gastronômicas e oferta de divertimentos – fossem eles artísticos ou francamente debochados – para entreter a população flutuante que, naqueles dias, multiplicava por dois ou três o número de moradores.

Aos espetáculos de rua e circos de cavalinhos, somaram-se, no século XIX, dois teatros: o Santa Clara, construído em taipa, que durou pouco e o São Rafael, erguido no quintal da casa de dona Gertrudes, mãe do brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, terreno esse que compreendia, originariamente, o polígono constituído pela rua Brigadeiro Tobias, a via adjacente ao largo do Rosário (hoje praça Ferreira Braga), a praça Fajardo (então denominada Santa Gertrudes), e rua Quinze de Novembro. Dele se desmembrou o espaço vazio que originou a praça hoje conhecida como largo do Canhão. Ali, e na vizinha praça Ferreira Braga, centenas de mulas xucras aguardavam o momento de passar pelo registro junto à ponte do rio Sorocaba. Naquela unidade arrecadadora, desde os tempos do marquês de Pombal até o triênio inicial da República, eram cobrados os impostos sobre movimentação de animais.

O antigo teatro São Rafael, remodelado e ampliado, abriga hoje a Fundação de Desenvolvimento Cultural de Sorocaba (Fundec), após haver sediado a Prefeitura e a Câmara Municipal.

Como tudo aquilo que é importante e evidente, à feira não mereceu atenção da maioria dos contemporâneos de D’Abreu Medeiros que delas se ocupou em dois textos que se complementam: o segundo, de 1864, integra seu estranho romance “Curiosidades Brasileiras” e foi anexado, por Roberto Simonsen, ao Capítulo VIII de sua prestigiosa “História Econômica do Brasil – 1500-1820”; o primeiro, de 1862, foi a comédia musicada “Na Feira de Sorocaba.”

Dela, e desse tal D’Abreu Medeiros, voltarei a tratar na próxima semana.

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