
JOSÉ CARLOS FINEIS – Quem os visse lado a lado jamais imaginaria que poderiam ter algum relacionamento entre si e, mais que isso, ser amigos e sócios num dos negócios mais lucrativos do alvorecer do século XX (depois, é claro, dos bancos e da política): a aplicação de golpes em pessoas bobas, mas que se julgam espertas – predominantes, segundo relatos confiáveis, entre os brasileiros dos anos 1900 e, de acordo com alguns sociólogos, filósofos e estudiosos comportamentais da atualidade, ainda majoritárias no Brasil do século XXI.
Somente pelo número – quatro – seria possível suspeitar que aqueles tipos heterogêneos constituíam uma quadrilha, e, ainda assim, muito improvável, porque eram realmente diferentes: um falso menino, filho de ex-escravos, uma cartomante francesa nascida no Engenho Novo (RJ), um elegante vendedor de tecidos de 27 anos e um tipo barbudo, gordo e mal-encarado que hoje poderia ser confundido com um vocalista de banda de rock.
Quase tudo naquele quarteto era falso, a não ser seus próprios corpos, as roupas e a pistola de duelo, de um só tiro (sem munição), que Bernardo, o barbudo, levava enfiada na cintura por baixo do casaco, praticamente fazendo cócegas no rego da bunda.
Bernardo – do germânico, “forte como um urso” – tinha esse codinome porque era o segurança do bando. Era um homem criado nas ruas, que preferia esmurrar a dialogar, mas que, ainda assim, era tímido a ponto de desviar os olhos das mulheres bonitas e sentir-se pequeno diante de um rapazinho de gravata, mesmo que este não chegasse à altura de seu umbigo. Ficava escondido e só entrava em cena em situações de perigo, para proteger os demais. Isso ocorreu algumas vezes, nos primeiros golpes, antes que aprimorassem a farsa a ponto de torná-la praticamente à prova de falhas.
Mesmo os incidentes tendo diminuído ano a ano, a ponto de se tornarem pouco prováveis, Bernardo foi mantido como parte da “família”, como eles se definiam, e não perdeu importância por não ter de espancar pessoas ou apontar sua pistola para alguém que os ameaçasse. Certos de que as vítimas do conto jamais os denunciariam à polícia, para não terem de revelar suas intenções criminosas, precaviam-se, entretanto, contra possíveis desforras e vinganças. Todos sabiam que estavam sujeitos a alguma retaliação violenta, e ter o barbudo por perto ajudava-os a desempenharem seus papéis com desenvoltura, sem suores suspeitos na testa e nas mãos, tremores, gagueiras ou palpitações.
Não vamos nos alongar nas descrições, porque os leitores de hoje têm pressa – de quê, não se sabe, mas têm. Digamos apenas que o menino, codinome Bacuri, não era menino. Contava uns 34 anos de idade quando os fatos aqui narrados ocorreram, e devia sua aparência infantil a uma doença genética que os médicos de hoje provavelmente diagnosticariam como acondroplasia, um tipo de nanismo, mas que os parentes e conhecidos dos pais atribuíram a um susto que a mãe levou ao encontrar uma cobra coral num feixe de lenha. O susto teria feito o bebê encruar na barriga da mãe, mas a doença não o impediu de se tornar adulto e, mesmo com aquele corpinho infantil, sair pelo mundo para ganhar a vida sem ter de trabalhar como imigrante – o que, em muitos aspectos, equivalia a se enquadrar em uma nova forma de escravidão.
No esquema da quadrilha, Bacuri se valia de sua aparência fofa, que incluía barriga proeminente, pernas e braços curtos, bochechas redondas, lábio inferior protuberante e um sorriso tão branco quanto inocente, para ganhar a simpatia das pessoas e se infiltrar em rodas de conversas. Descalço, vestido com calças curtas e paletozinho puído de algodão, brincando a um canto de jogar pedrinhas, era como se não houvesse ninguém ali – e todos conversavam sobre os assuntos mais secretos em sua presença, sem imaginar que cada palavra passava pelo crivo de uma mente astuta, treinada para ouvir com atenção, analisar as informações, separar as mais importantes, fazer conexões complexas e memorizar tudo para contar aos comparsas, sem esquecer um detalhe sequer.
Para todos os efeitos, nas cidades onde chegavam, Bacuri era apresentado como um órfão generosamente adotado por mademoiselle Chevalier, codinome de uma Sueli de tal, quarenta e poucos anos, nascida, como já foi dito, no Rio de Janeiro, e que tinha em seu currículo um romance com um senador da República, atuações pouco convincentes como cantora lírica de uma companhia amadora e, em seus piores momentos, incursões pela região portuária, bem se sabe para quê. Foi lá, nos bares e pensões próximos ao porto, com atuações bem mais convincentes, que a então Sueli conseguira garantir seu sustento sem amealhar complexos ou tristezas, conhecera a arte da cartomancia e, aproveitando a companhia de marinheiros franceses, aprendera palavras e expressões da língua de Balzac que dariam, mais tarde, credibilidade ao papel a ela reservado na quadrilha, de cartomante nascida em Paris.
Para se passar por mademoiselle Chevalier, a mulher, muito bonita e atraente, misturava o dialeto carioca, com seus “esses” que soam como “ch”, a uma maneira peculiar de falar fazendo biquinho, encaixando um “bon jour” aqui, um “oui” ali e um “merci” mais adiante – e, por vezes, frases inteiras, que nem ela entendia –, de forma que ninguém (ou talvez apenas um francês legítimo) seria capaz de duvidar de sua origem gaulesa. A França, é preciso lembrar, era o umbigo do mundo, e até o baralho que mademoiselle, mais comumente chamada madame Chevalier, usava para ler a sorte de seus clientes ávidos por boas notícias era uma imitação muito bem feita dos baralhos fabricados na França.
O quarto personagem do bando era Almofadinha, a ovelha negra de uma tradicional família paulistana, que o pai preparara para ser juiz ou desembargador, mas que, atraído pela contravenção, optara por uma forma mais arriscada e menos segura de ganhar dinheiro. Almofadinha se apresentava publicamente como caixeiro-viajante, com o codinome e função (impressos em cartão alvíssimo, com letras pretas e douradas) de Sr. Arnaldo Antônio Rodrigues Alves, representante das Casas Alves & Peixoto, de São Paulo – “As fazendas mais finas, as cores mais deslumbrantes, diretamente de Paris para o guarda-roupa de V. Sa. e digníssima família.” Almofadinha era o último a entrar em cena para consolidar o golpe, que, como o nome deste conto já diz, consistia em vender, por um preço exorbitante, aos bobos que se julgavam espertos, as lendárias guitarras, ou máquinas de fazer dinheiro falso.
Mas não se pode chegar numa cidade anunciando publicamente a venda desse tipo de coisa. É preciso estudar o terreno. Criar uma pantomima como pano de fundo, identificar as possíveis vítimas, estudar as rotas de fuga. Por isso, a quadrilha se organizara em torno de um plano complexo e ousado, que vinha sendo executado havia anos, sempre em cidades distantes, aproveitando-se do silêncio das vítimas e da falta de comunicação eficiente entre os órgãos de segurança. O Brasil da primeira década do século XX era um país continente em que as comunidades se assemelhavam a ilhas, às quais chegavam apenas as notícias trazidas de boca por tropeiros, telegramas particulares ou jornais do mês passado; um Brasil eminentemente rural, onde a luz elétrica ainda era novidade e municípios com dez a quinze mil habitantes tinham, quando muito, uma cadeia com uma cela, um delegado barrigudo e seis ou sete soldados.
Segundo o script dos trambiqueiros, os primeiros que chegavam à cidade eram madame Chevalier e seu enteado Bacuri. Na verdade vinham todos, com Almofadinha e Bernardo, que não podiam ser vistos com eles, escondidos entre um banco e outro da carroça. Depois de instalado o grupo, Bernardo ficava escondido e Almofadinha era levado na carroça, com um cavalo selado a reboque, até a entrada da cidade mais próxima, onde esperava — em alguma pensão barata, em alguma fazenda onde lhe cediam um quarto ou mesmo dormindo ao ar livre, quando não era tempo de chuva e de frio — seu momento de entrar em cena.
Com Bacuri agarrado à barra da saia, madame ia bater no sítio mais próximo do centro do vilarejo. Pedia autorização para montar sua tenda perto da estrada e oferecia logo 100 mil réis pelo aluguel. Não era pouco dinheiro. As pessoas menos ignorantes geralmente resistiam, pois sabiam que cartomancia era crime, inscrito no Código Penal. Mas a madame, então, com um sorriso encantador (e isso fazia toda a diferença, quando quem atendia a porta era o dono do lugar), argumentava que conhecia muito bem a Lei e apoiava o artigo 157 do Código Penal de 1890, pelo qual ficavam proibidas as práticas do “espiritismo, magia e seus sortilégios”, bem como talismãs e cartomancia, com o intuito de “despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis”.
– Mas veja, non é este meu caso, monsieur! Je utilize las cartes apenas parra prever bons presságes, nunca parra despertar ódios ou passions. E muito menos parra currar. Non, jamais, isso é lá com Dieu. Je suis muito devota de Nossa Senhorra Aparrecida.
O golpe final para conseguir a autorização vinha quando ela dobrava a parada. Duzentos mil réis para ficar por um mês na propriedade. Se a polícia os importunasse, ela assumiria toda a responsabilidade. E, para provar que era honesta e movida a boas intenções, pagava adiantado metade do valor.
A Madame e a Bacuri incumbia descarregar a carroça, onde Bernardo e Almofadinha ficavam escondidos, e montar a tenda, que era feita de tecido colorido e encerado. Visto de fora, o abrigo da cartomante lembrava uma tenda árabe, ou um circo em miniatura. Por dentro, era decorado com quadros, móbiles, um globo, tecidos coloridos pendurados, mesinhas com vasos de flores e, entronizados em um nicho com velas acesas à volta, um crucifixo e uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, já então muito em voga e cujo original recebera, apenas alguns anos antes, mediante decreto papal, belíssima coroa de ouro doada nos estertores do Império, por uma devota Princesa Isabel.
As imagens tinham um propósito muito objetivo, além de dar proteção divina à cartomante e a seu suposto enteado que, para afastar a pecha de mistificadores, definiam-se como católicos praticantes. O propósito era justamente vacinar madame contra acusações de curandeirismo, espiritismo, ocultismo e outros ismos, à época tidos como trapaças demoníacas e reprimidos pela polícia. Particularmente as práticas de origem africana, como o jogo de búzios, eram combatidas de forma até violenta, com destruição dos objetos e prisão dos praticantes, dependendo do grau de truculência e catolicismo do delegado. Por isso, a tenda de madame fora cuidadosamente preparada para que, logo ao entrar, o visitante tivesse a sensação de estar em uma pequena capela. Colorida, porém honesta. Ilegal, porém santificada.
Jamais perderam o sono, o apetite ou a alegria de viver por pensar que, graças a eles, alguns afortunados se viram sem nada, na sarjeta. Afinal, os que compravam as máquinas de fabricar dinheiro falso eram, sabidamente, mal-intencionados
E foi exatamente dessa forma que o grupo procedeu ao chegar a Cajueiro do Sul, na região de Barra Bonita, em janeiro de 1908. A tenda foi montada em um dia, sem dificuldade, na propriedade de um sitiante chamado Romão, e já no dia seguinte, bem cedo, depois de levar Almofadinha de carroça ao lugarejo mais próximo, Bacuri estava no centro da pequena cidade, com dupla missão: divulgar os serviços de madame Chevalier e procurar trabalho de ajudante na venda com maior número de portas, onde pudesse ouvir as conversas e, como bom infiltrado, obter as informações de que seu bando precisava.
Bacuri, com o sorriso mais meigo deste mundo, caiu nas graças de dona Elza, esposa do turco Jamil, dono do maior armazém de secos e molhados da localidade. No balcão da “Casa Boa Esperança”, Bacuri servia doses de cachaça, torresmos e linguiças enquanto divulgava os serviços da cartomante. Não tardou para que um, depois outro, depois mais outros e outras acorressem discretamente à tenda instalada à beira da estrada, onde madame Chevalier esperava impecavelmente vestida com um véu rendado que a fazia parecer uma santa, velas acesas por todos os lados, um baralho no centro da mesa redonda e, no baú atrás de si, pronto para entrar em ação em qualquer eventualidade, um suarento Bernardo, obrigado a respirar sem fazer barulho para não ser notado, através de uns pequenos orifícios abertos no lado oculto do baú.
Em Cajueiro do Sul, madame Chevalier teve sorte. O delegado, um cinquentão viúvo e solitário, foi visitar a tenda. Entrou com cara de mau, olhando para todos os lados, mas em poucos minutos se deixou envolver pela conversa animada e cheia de ulalás de madame. Saiu de lá quase duas horas depois, com a alegria de menino que ganha sua primeira bicicleta. A partir desse dia, para escândalo dos fofoqueiros que dedicam a vida a vigiar os passos alheios, o delegado sempre dava um jeito de passar pela tenda, nos horários menos procurados pela clientela, para se encantar com o sorriso de mademoiselle e imaginar-lhe as pernas escondidas embaixo da mesa.
– Coitando do Bernardo, mal tem tempo de sair do baú pra comer e fazer cocô – disse Bacuri a Almofadinha, certa vez, a propósito da posição incômoda do gigante.
– O Bernardo aguenta. Ele que cague nas calças, se preciso. O importante é o golpe dar certo.
Almofadinha, embora amigo de Bernardo, mantinha com o barbudo uma certa rixa, porque achava que merecia uma parte maior na divisão da receita, já que era ele quem dava as caras, ao contrário do outro que ganhava para ficar escondido.
Levaram três dias para que Bacuri, ouvindo as conversas dos frequentadores do armazém, identificasse alguns otários em potencial, ou “lambaris”, como os trambiqueiros chamavam suas vítimas, talvez por serem fáceis de fisgar, talvez por serem tão abundantes nos rios brasileiros como bobos metidos a espertos nas cidades. E os lambaris, como peixinhos ingênuos, não só falavam de suas posses e de quanto haviam lucrado com a última colheita, enquanto comiam petiscos e tomavam cachaça no “Esperança”, como engoliam facilmente a isca lançada por Bacuri. Ele os fisgava ao lhes falar, com expressão séria e olhando para os lados como quem revela um segredo, sobre os poderes premonitórios de sua mãe adotiva, a cartomante, graças aos quais inúmeros clientes como eles haviam conseguido multiplicar sua fortuna sem fazer esforço, de forma rápida e segura.
Passada a fase de prospecção, sobressaíram-se três lambaris em potencial – e, por incrível que pareça, o que tinha mais dinheiro guardado em casa e vontade de multiplicá-lo não era um comerciante nem um fazendeiro, mas um operário de origem italiana, na casa dos quarenta e poucos anos, chamado Fabrício. Ele não era o tipo que batia no peito e dizia ter tantos mil réis no banco, mas Bacuri, limpando o balcão, ouvira uma conversa reservada entre Fabrício e um amigo, em que o primeiro revelava ter juntado quase um conto de réis, mas buscava um meio de dobrar esse dinheiro rapidamente, pois necessitava com urgência de dois contos.
No primeiro encontro após a conversa, depois de Bernardo, Bacuri e madame confabularem longamente em voz baixa, com apenas um lampião de querosene aceso no ponto mais alto da tenda, para não projetar sombras nas laterais de tecido encerado, chegou-se à conclusão de que estava na hora de Almofadinha entrar em cena. Era quinta-feira. No domingo, logo cedo, Bacuri tomou o rumo da cidade mais próxima, onde Almofadinha deveria estar esperando-o. Bateu a pé uma caminhada de vários quilômetros, andou um trecho de carona na charrete de um roceiro, até que se viu às portas da cidade. Restava encontrar o sócio.
O estratagema do grupo era tão elaborado que até para Bacuri encontrar Almofadinha eles criaram um sistema infalível. Depois de chegar à cidade e se instalar no lugar onde esperaria pelo chamado dos comparsas, Almofadinha procurava o padre e dizia que estava à procura de um negrinho assim assim assado, de quem era tutor e que, muito rebelde, costumava fugir de casa. Informava ao padre que ouvira dizer que o tal negrinho, conhecido como Bacuri, havia sido visto por aquelas redondezas e que, portanto, ficaria por ali alguns dias, para ver se o encontrava.
Bacuri chegou à cidade e foi direto para a igreja, onde o padre celebrava a missa. Ao vê-lo na primeira fila, o sacerdote interrompeu o sermão para pedir ao garoto que o esperasse na sacristia, pois tinha algo importante a lhe dizer. Terminada a missa, o padre cumpriu o seu papel de menino de recados e contou a Bacuri onde encontrar Almofadinha, mas não sem antes lhe dar um sermão e ameaçá-lo com o fogo do inferno caso continuasse a fugir de seu bondoso protetor.
Assim, Bacuri colocou Almofadinha a par de tudo. Passou a ficha completa do operário Fabrício e voltou na mesma noite para a companhia de Bernardo e madame Chevalier. Afinal, era preciso estar bem cedo no armazém, para não levantar suspeitas.
Na terça, no final de tarde, quando o centro da cidadezinha estava agitado pelos cavalheiros e damas que saíam a passeio, chegou a Cajueiro do Sul, montado em garboso cavalo e seguido por uma charrete de aluguel carregada de malas novas e vistosas, o mais elegante homem que jamais pisara naquelas terras vermelhas.
– Sr. Arnaldo Antônio Rodrigues Alves? – leu o recepcionista do Hotel São Sebastião, em voz alta para que os outros hóspedes pudessem ouvir o sobrenome importante que acabara de ser inscrito no registro de hóspedes. – O sr. por acaso é parente do político Rodrigues Alves, aquele que foi presidente do Estado de São Paulo e da República?
– Sim, por acaso, sou sim – respondeu Almofadinha com ar de modéstia. – Em verdade, sobrinho-neto. Mas não gosto de propagar isso. Primeiro porque, como bom negociante, não me meto em política. Devo prestar bons serviços a todos os clientes, de forma indistinta, e inclusive aos monarquistas, sem diferenciá-los por suas convicções. Depois, porque quero vencer na vida por meus próprios méritos, sem me valer desse sobrenome importante. Já me ofereceram cargos… Mas, por esta minha disposição interior, fui obrigado a declinar.
– Muito bem! Muito bem! – comemorou o hospedeiro com um sorriso. – Os homens briosos, como o sr. e, se me permite, como este seu criado, não contam com favores, senão com o próprio tino para os negócios e o suor do próprio rosto. Seja bem-vindo ao meu hotel, Excelência. E olhe, deixe que arrisque um palpite: seu tio-avô, a seguir nessa escalada, ainda vai ser presidente da República novamente! Ele está no caminho certo. Será presidente, se Deus permitir!
Dois dias depois, era publicado na Gazeta de Cajueiro do Sul o anúncio do caixeiro-viajante: “O sr. Arnaldo Antônio Rodrigues Alves, representante comercial das Casas Alves & Peixoto, da capital de São Paulo, comunica à distinta clientela deste pujante município que se encontra instalado no apartamento nº 18 do Hotel São Sebastião, onde terá prazer em receber os senhores e senhoras, devidamente acompanhadas de seus cônjuges, para mostrar-lhes os mais finos tecidos recém-chegados de Paris, além de chapéus, écharpes e outros belíssimos acessórios. Preços módicos!”
O anúncio trouxe uma pequena procissão de notáveis, e até mesmo o padre, para o apertado saguão do hotel, onde os interessados aguardavam para ser atendidos. Alguns concordavam em subir aos pares. As moças jamais entravam sozinhas no quarto do caixeiro-viajante. Quase todas se faziam acompanhar de uma tia ou da mãe. Desde a manhã até o início da noite, Almofadinha exibiu tecidos, jogou seu charme, inventou qualidades. Chegou a dizer que certo lenço era igual ao usado por uma personagem feminina da recém-lançada película norte-americana intitulada Ben Hur (“A sra. não viu ainda? Que pena!”). Naturalmente, se a cidade tivesse cinema, ele não mentiria tanto.
Vieram nesse dia, e nos dias seguintes, três dos lambaris em potencial identificados por Bacuri, mas eram lambaris pequenos. O lambari escolhido, aquele operário que já tinha quase um conto de réis e precisava dobrar seu dinheiro, não apareceu. Pudera, Fabrício era católico fervoroso, e, apesar de ter curiosidade, hesitava em consultar-se com madame Chevalier, a quem cabia empurrar os lambaris para a rede de Almofadinha. Percebendo a demora, Bacuri aproveitou outro momento de desabafo etílico de Fabrício no armazém para aconselhar uma sessão de cartas com madame, salientando – sensível que era – que a cartomante era devota de Nossa Senhora Aparecida e não tinha parte com “demônio nem mané demônio” nenhum.
– Ela pode ajudar o senhor a encontrar um jeito de dobrar seu dinheiro. Se quiser, eu levo o senhor lá depois que o armazém fechar.
Fabrício, que tinha um fraco pela bebida e se tornava manipulável como quase todo bêbado, deixou-se levar por Bacuri para a tenda da cartomante, assim que as portas do armazém se fecharam. Ainda não havia escurecido. Os dois entraram e Fabrício ficou impressionado com o que lhe pareceu ser um santuário, à luz tênue das velas e do crepúsculo que invadia a tenda por seus tecidos translúcidos.
– Dona madame, este é o seu Fabrício. Ele quer que a senhora leia a sorte pra ele.
– Oui. Sente-se, por favor – disse a cartomante ao envergonhado cliente. – Corte o barralho, tire qualquer carta e vire.
Fabrício obedeceu.
Em menos de quinze minutos, o operário estava devidamente informado de que conheceria alguém, provavelmente um jovem negociante, que o ajudaria a dobrar seu dinheiro de forma rápida e infalível.
– Preto e dourado. Um cavalo. O número 18. É o que dizem as cartas!
Na saída, já escura a estrada, Bacuri se despediu do italiano dando a ele um cartão de visitas que tinha no bolso do calção.
– Veja, seu Fabrício. Letras pretas e douradas. Esse é o cartão do caixeiro-viajante que chegou a cavalo na cidade, dias atrás. E, pode ser coincidência, mas leram pra mim o anúncio que ele fez no jornal. Ele tá no quarto 18 do hotel. Só pode ser ele o homem de que a madame lhe falou.
O leitor já deve ter percebido que os membros da “família” não sentiam compaixão por ninguém. Aplicavam seu golpe com a consciência tranquila de ladrões que enganam ladrões – e talvez esperassem, por isso, ter direito a cem anos de perdão, com diz o ditado.
Jamais perderam o sono, o apetite ou a alegria de viver por pensar que, graças a eles, alguns afortunados se viram sem nada, na sarjeta. Afinal, os que compravam as máquinas de fabricar dinheiro falso eram, sabidamente, mal-intencionados. Queriam enriquecer por meios ilícitos, agindo contra a lei, colocando papel falsificado em circulação, fazendo com que pessoas honestas corressem o risco de ser presas por portar dinheiro falso, enfraquecendo a própria economia do País com um derrame de dinheiro como aquele outro, oficial – o tal “encilhamento” – que levou o Brasil para o atoleiro na virada do século. Como todos aprenderam, amargando a crise, só o governo tem o poder de derramar dinheiro na praça irresponsavelmente, e mesmo assim o resultado costuma ser desastroso.
E assim Fabrício procurou o caixeiro-viajante logo cedo, no hotel. Sentados frente a frente, como que sondando o terreno, os dois homens falavam de um assunto que não tinha nada a ver com os tecidos franceses, os chapéus e os vestidos espalhados sobre a cama.
– E ela funciona mesmo?
– Claro que funciona. Eu mostro pro senhor.
– Ma como é possível?
– É uma miniatura da impressora da Casa da Moeda, no Rio de Janeiro. O mesmo engenheiro que construiu a máquina do governo projetou esta miniatura. Dizem que ele está preso até hoje na Inglaterra pelo que fez. Mas, antes de ser preso, passou o projeto para um parente, que foi pra algum lugar perto da Índia e montou uma fabriqueta secreta. Foram montados poucos exemplares. Um tio meu que viaja muito comprou umas vinte e trouxe de contrabando. São essas que eu estou vendendo, porque, sabe como é, só vender tecidos franceses por essas cidades do interior não vai me garantir uma velhice tranquila, nem uma fazenda e alguns milhares de cabeças de gado, que eu sonho ter.
Por incrível que pareça, nem ao excitado Fabrício, nem a nenhum outro lambari antes dele, ocorreu de fazer a pergunta mais óbvia, e que qualquer mente lúcida, que não estivesse cega de ambição, faria: por que diabos alguém que tem uma máquina de fazer dinheiro e pode imprimir o quanto quiser se põe a viajar de cidade em cidade, disfarçado de caixeiro-viajante e correndo o risco de ser preso, para vender máquinas de fazer dinheiro, em vez de simplesmente fazer dinheiro?
Leia a segunda e última parte deste conto na próxima segunda-feira, 20 de maio, no blog Conversa de Armazém.
Fotomontagem: messomx (cartola) e Jo-B em Pixabay
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