Eu criei o “Tico” e acabei com a tristeza do meu filho

Como vai você?

LUCY DE MIGUEL — Não há dúvida de que a maternidade venha rodeada de incertezas, inseguranças, muitas noites mal dormidas (e quando “não-dormidas”), mas também nos desperta habilidades inimagináveis, exigindo toda a nossa criatividade e muito amor no coração. Acho que isso é o que chamam de “instinto materno”.

Posso dizer que tive incontáveis e diferentes desafios durante os primeiros anos dos meus dois filhos. Também posso dizer que venci todos eles, mas eu me superava quando o problema era algo que os entristecia. E assim eu descobria as melhores versões de mim mesma.

Quando meu menino tinha 4 ou 5 anos, começou com uma neura de não tirar a camisa. Nem mesmo na praia ou na piscina.

— Tira a camisa, Tiago!
— Não quero
— Por que?
— Porque eu tô barrigudo…

Só que ele era magro! Percebi que era uma desculpa. Fomos investigando, buscando respostas, sondando com carinho durante dias, até que descobrimos que ele estava com vergonha de uma pinta que tinha debaixo do braço. Era uma pequena pinta preta, nada demais. E ele acabou confessando que os amigos da escola tiravam sarro disso.
— E qual é o problema? – perguntei.
— Eles não gostam de mim porque tenho essa pinta no “sovaco” – respondeu chorando, com uma tristeza que não tinha fim.

Juro que senti aquela dor. Ele e minha filha, que é três anos mais velha, estavam na banheira, e ela quis consolá-lo dizendo que não era nada, que não precisava ficar triste por causa de uma pinta. Mas nada do que dizíamos servia para tirar a sua dor. E que dor doída! Doía em mim.

Resolvi inventar uma história de uma pulguinha que eu conhecia. São essas inspirações divinas, que a gente não sabe como acontecem.  Era mais ou menos assim:

“Tempos atrás, havia uma pulguinha muito diferente, que não se alimentava de sangue, mas da seiva das flores, porque lá ela encontrava amor.”

Pedi para que eles dessem um nome para a pulguinha, e o Tiago gritou: “Tico!”.
Isso! – “Tico é menina ou menino?”
E ele respondeu: “É menino!”.
Beleza!

“As outras pulguinhas tiravam sarro do Tico, porque queriam que ele fosse igual a todas as outras. Mas o Tico tinha superpoderes e via que embora todas as pulguinhas fossem parecidas, cada uma tinha uma característica diferente, e isso é que era o mais legal. Mesmo assim, o Tico não conseguia ter amigos, e então ele foi ficando triste, triste, e só se alegrava quando voava nas asas de uma borboleta azul que vivia naqueles jardins, porque sentia que a borboleta era uma grande amiga.”

Percebi que a história estava agradando, porque meus dois filhos ficaram com os olhos vidrados em mim. Senti que tinha que impressioná-los e achar um final bacana, mas deixei fluir.

“Até que um dia, num desses voos com a borboleta azul, ela deu um rasante e o Tico caiu sobre um gramado, que ficava ao lado de uma casa que tinha um portãozão verde.” (nossa casa tinha um portão verde bem grandão). As crianças nem piscavam.

“O Tico voltou a ficar entristecido, porque a amiga borboleta não se deu conta de que ele havia caído e foi embora. Ele se sentia sozinho, entristecido, não havia flores para ele se alimentar de amor e foi ficando magrinho, magrinho. De repente, aquele portãozão verde se abriu e saiu de lá um homem e duas crianças, levando uma cachorra linda para passear”.(eles se deram conta de que a história tinha ganhado personagens bem familiares…).

Os dois deram um sorriso malandro na banheira, e eu entendi que haviam percebido os personagens “familiares” que entraram na narrativa. “Vai mãe, continua!”, pediu a Sabrina, que já estava paralisada.

E eu por dentro, não tinha a menor ideia do que fazer com toda a galera que eu havia metido na história. “Meu Deus, me ajuda!”
Respirei fundo e segui…

“Então, o Tico ficou observando como todos se afastavam pela rua e uma alegria nasceu de novo em seu coração. Ele gostou tanto daquela família, gostou das crianças, achou a cachorra uma gostosura, e então se posicionou sobre um dente-de-leão daquele gramado para enxergar mais alto. Quando todos voltaram do passeio, a cachorrinha passou bem perto dele. E com um salto mortal, em um grande impulso, a pulguinha se lançou no pescoço da cachorra. Mas ela não queria picá-la, só queria ficar perto daquela família”.

“Ao entrarem na casa, as crianças pegaram um pote e colocaram água bem fresquinha para a cachorra, que estava morrendo de sede com o calor que fazia naquela cidade” (nós morávamos em Sorocaba e estávamos em pleno verão).

O gran finale

Foi então que tive uma ideia genial: “Como aquelas crianças eram muito carinhosas e amorosas com a cadelinha, ela se deitou sobre a ardósia geladinha para descansar e o menino passou o braço sobre ela, para mostrar todo o seu amor. Só que ao fazer isso, a pulguinha Tico que estava lá quietinha, sentiu aquele amor gostoso e decidiu que ali, naquele sovaco cheirosinho, ela ia morar para sempre. Porque lá ela seria eternamente amada…”

Eu ia terminar com um “foi assim que nasceu a pinta…”, mas não foi necessário. Percebi pelo semblante do Tiago que aquela tristeza já não existia mais. Ele estava feliz da vida, dizendo que era ele que tinha abraçado a Dalila e que aquela história era sobre eles. Minha filha também estava feliz, dizendo que a nossa cadelinha era mesmo muito amada. E pronto! O banho acabou, a tristeza passou e o trauma também. “Putz grilaaaa! Como eu fiz isso?” Coisas de mãe!

No dia seguinte, o Tiago voltou da escola animado, dizendo que tinha contado a história para todos os amiguinhos, e que eles se divertiram muito. Todo mundo quis ver o Tico várias e várias vezes. E ele mostrou a pinta sem medo ou vergonha.

Assim, acredito que você também já deve ter usado toda a sua psicologia materna para aliviar uma dor da sua cria. Se ainda não experimentou essa técnica de contar (e inventar) histórias, experimente! Meu filho, agora com 13 anos, ainda se lembra desse momento lindo que tivemos. E hoje eu sei o quanto essas emoções são importantes e ficam registradas no cérebro humano. Porque as boas memórias são construídas com muito amor.

Lucy De Miguel, editora da revista NA MOCHILA, jornalista especializada em primeira infância, mãe da Sabrina e do Tiago, fundadora do Instituto Noa, acredita que nosso verdadeiro crescimento acontece quando fazemos o outro crescer.

Instagram: @lucycantero

Facebook: facebook.com/lucycantero.miguel

lu@namochila.com

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