A felicidade possível passou por aqui (conto). Parte 1

JOSÉ CARLOS FINEIS – “Quanto tempo é preciso conviver com uma pessoa para decifrá-la apenas com o olhar?” – ela se perguntava, sentada à mesa da cafeteria, a face apoiada em uma das mãos, enquanto Bebeto guardava o iPhone na mochila e a colocava numa cadeira.

Havia poucos instantes que ele chegara, caminhando apressado pelo corredor do shopping, e ela já sabia, só de observá-lo, que vinha lhe pedir alguma coisa. Porque o fato de ter de pedir o que quer que seja o fazia sentir-se humilhado, e ele instintivamente procurava camuflar o que julgava ser uma demonstração de inferioridade adotando uma postura altiva, blasé, quase arrogante. Uma falsa leveza nos gestos e na voz, uma certa afetação, um sorriso postiço, exatamente como o que exibia agora.

Café número 1: Um pedido inesperado

– Precisava ser num café? Não podíamos conversar na sua casa? – ele perguntou, sentando-se diante de Paula, depois de hesitar e desistir de beijá-la no rosto.

– Minha casa está em reformas. Não tem como receber visitas lá.

– E o Juninho, tem notícias dele?

– Ele está bem. Estudando, fazendo estágio. Por que não liga pra ele?

– Paula, você sabe que ele não conversa comigo há anos.

– Ainda?

– Tentei contato algumas vezes. Várias. Mas ele rompeu de vez. Não atendeu o telefone, ignorou minhas mensagens.

– Não se importe. Jovens são assim. Um dia isso passa.

– Mas sou pai dele, poxa!

– Acontece. Um dia ele volta – ela insistiu com indiferença, enquanto os olhos percorriam o cardápio.

– E essa reforma na casa? Está mexendo em muita coisa?

– Sim, muita. Vai ficar bem diferente.

Paula então deixou o cardápio de lado, encarou Bebeto e afirmou com uma combinação admirável de cordialidade e dureza:

– Escute, Bebeto, não foi pra falar sobre reforma que você quis esta conversa, certo? Desculpe se posso parecer grosseira, mas podemos ir direto ao assunto? Tenho compromisso logo mais à noite.

– Sei. Claro – ele se endireitou na cadeira, tentando manter uma expressão polida e abrindo o menu de cartão plastificado para não ter de olhá-la de frente. – Claro que não foi por isso.

O garçom chegou nesse momento. Paula pediu um café grande, puro. Bebeto demorou um pouco mais. Pediu um suco e uma empada.

– Estou com fome. Mal parei pra comer hoje.

Paula permaneceu em silêncio. O garçom levara os cardápios e a palavra ainda estava com Bebeto. Ela ficara curiosa porque, para vencer o orgulho a ponto de procurá-la, não devia ser pouco o que o ex-marido tinha a lhe pedir.

– Pois é. Preciso pôr algo no estômago. Estou tomando uma penca de remédios e…

– O que você quer de mim, Bebeto?

Depois de onze anos de separação, ela não tinha ideia do que os reunira ali, naquele café. Dinheiro ele tinha. Estava bem empregado. Uma tentativa de se reaproximar com o filho parecia plausível, mas pouco provável. Bebeto nunca fizera questão de ser amigo do Júnior, e, ainda há pouco, ao falar sobre o rapaz, mostrara-se apenas ligeiramente incomodado com o distanciamento entre os dois.

Paula concluiu, apenas a título de curiosidade, que não conhecia o ex-marido o suficiente, a ponto de decifrá-lo por inteiro com os olhos, embora — tinha certeza — o tivesse conseguido em parte. Sabia que ele queria alguma coisa dela, mas não conseguia imaginar o quê.

O que Bebeto fazia, pensava ou dizia não importava mais para Paula desde que ele a deixara. Muito jovem, ela havia se atirado de cabeça num casamento do estilo homem traz o dinheiro, mulher cuida de tudo – aí incluído, logicamente, o filho.

Encantada com um estilo de vida que parecia perfeito e convencida de que não se deve pôr filhos no mundo para depois deixá-los o dia todo em escolinhas ou com babás, Paula abrira mão, sem sentir que perdia muita coisa, do projeto de fazer um curso superior de psicologia, que a fascinava, para tornar-se mãe e dona de casa em tempo integral.

Com o marido empregado em uma grande empresa, um bebê encantador, dois carros na garagem e um cartão de crédito, a vida tinha sido quase como um sonho nos primeiros anos. Mas um sonho aparente, porque Bebeto, desde o começo, não se mostrara disposto a se entregar ao relacionamento com a mesma intensidade que ela. Mantinha rituais de solteiro, como sair à noite, durante a semana, para cervejadas e jogos de futsal com os amigos. Sempre achava uma desculpa para não participar das atividades familiares da escolinha e, incrivelmente, alegou compromissos de trabalho para faltar às festinhas do Dia dos Pais, quando Júnior tinha três e cinco anos.

Nas duas ocasiões, Júnior entregou os presentinhos feitos à mão para Paula, que cobriu o filho de beijos e o levou para brincar no shopping e comer chocolates, numa tentativa de compensar a ausência do pai.

Atitudes como essa exigiam de Paula um esforço excepcional para acreditar na família e no amor, mesmo sentindo-se muitas vezes sozinha e insegura. Mas seus temores de que o casamento pudesse ruir tinham fundamento, e confirmaram-se inexoravelmente, pouco mais de dez anos depois da grande festa no salão do clube de campo. Sem queixas, crises ou brigas que sinalizassem uma ruptura, Bebeto saiu de casa para viver com outra e pediu o divórcio.

Nos onze anos seguintes, os dois mal se viram. Ela deixava o filho com a mãe quando o pai encontrava tempo para buscá-lo nos fins de semana a que tinha direito. Bebeto passou a ser, para Paula, praticamente um estranho. Ela reconstruiu sua vida do jeito que pôde. Trabalhou como vendedora em uma loja de bolsas e calçados, até que conseguiu passar num concurso público e tornar-se auxiliar de ensino. Criou Paulo Roberto Júnior com a ajuda da mãe, que era viúva e apaixonada pelo neto. A pensão alimentícia caía na conta todo dia 7 e era essa a participação mais relevante de Bebeto na vida do filho. Júnior, com o tempo, deixou de chorar e perguntar por que o pai fora embora. Desde o dia em que assinaram os papéis do divórcio, Paula e Bebeto nunca mais se falaram.

– O que você quer de mim, Bebeto?

A pergunta pairava no ar entre eles. Bebeto hesitava, como um ator que esquece o texto em cena aberta. Por fim, pareceu encontrar as palavras certas, que não eram muitas, afinal. Uma onda de choque percorreu o corpo da mulher quando o ex-marido, despindo-se de seu sorriso e expressão de vitorioso, endireitou-se na cadeira, colocou as duas mãos sobre a mesa e falou, sem rodeios:

– Paula, eu quero voltar com você.

Café número 2: Ódio e compaixão

Paula deixara o primeiro encontro furiosa, depois de levantar-se de um salto, quase derrubando a cadeira, vasculhar a bolsa e jogar uma cédula de 20 reais sobre a mesa, para pagar o café que sequer tinha sido servido.

Não se despedira de Bebeto nem atendera chamadas feitas por ele, naquele mesmo dia e nos dias seguintes. Como ele não parasse de lhe enviar mensagens para pedir um novo encontro, nas quais usou duas vezes o verbo “suplicar” – algo que, vindo de Bebeto, sinalizava uma situação realmente grave –, e como, passada a ira e lidas as súplicas, tivesse ficado curiosa sobre o porquê de ele querer reatar o relacionamento, cedeu e marcou um novo encontro, no mesmo café. Mas não sem antes deixar “muito claro”, por meio de mensagem de texto, que o fato de concordar em ouvi-lo não significava, “em hipótese alguma”, que estivesse minimamente inclinada a aceitá-lo de volta.

Na sala ampla e bem decorada, apesar de antiga (era mentira que a casa estava em reformas), a mulher arrumou-se dos pés à cabeça diante de um grande espelho, ajeitou os cabelos, experimentou presilhas, tiaras, pingentes e três bolsas de mão. Não que quisesse alguma coisa com Bebeto, mas justamente o contrário. Desejava apenas o que uma pessoa preterida costuma querer nessas ocasiões: que o ex ou a ex saibam exatamente o que perderam ao optar pela separação. Paula havia resolvido, sem qualquer chance de deixar que ele a dobrasse, recusar a proposta de reatar o relacionamento. E não havia, nessa decisão, nenhum traço de rancor ou vingança: apenas a certeza de que vivia melhor sem Bebeto — uma vida sem facilidades, porém livre e verdadeira –, e de que o que sentia pelo ex estava mais para asco do que para atração ou simpatia.

Paula, porém, não estava preparada para o que Bebeto tinha a lhe dizer. Sentada diante do ex-marido no mesmo café, ela novamente ficou sem chão quando ele revelou o motivo pelo qual queria se reconciliar com ela. Bebeto precisava de ajuda. Estava com câncer no pâncreas, impossível de ser removido cirurgicamente, e cuja chance de uma sobrevida maior do que doze meses, no estágio em que fora diagnosticado, era estatisticamente próxima de zero.

– Não quero morrer sozinho, Paula.

– Mas e a outra, sua companheira? Como é mesmo o nome dela?

– Você sabe o nome dela.

– Então, a outra, seja lá quem for. Onde está ela nesta hora?

Bebeto pareceu irritado.

– Ela saiu fora. Disse que não tinha cabeça pra aguentar essa situação. Ela sofre de ansiedade, depressão, essas coisas. Aliás, já sofria, antes de o câncer aparecer. Vivia se entupindo de remédios. Acho que ela não aguentaria mesmo. Talvez acabasse se matando.

– Ela não aguentaria… Entendo. E eu, Bebeto, por que deveria aguentar? Eu, que você descartou como um sapato velho que já não servia? Que deixou sozinha com um filho de nove anos para criar?

– Eu sempre paguei pensão.

– Não me interrompa! – ordenou Paula, dando um tapinha na mesa e falando baixo, mas com voz enérgica. – Eu, que abri mão de uma carreira com a qual sonhava desde menina, para ser sua mulher. Eu, que fiquei com o filho, as febres, as dívidas, as aflições. Eu, que me entreguei inteira nas suas mãos e fui deixada para trás com um “sinto muito, meu bem, o amor acabou” – você acha que eu posso aguentar mais isso?

Houve um silêncio de segundos.

– Acho, Paula. Se não, não pediria.

– O que você quer exatamente de mim?

– Sei que é difícil ter de volta seu amor, mas penso que, talvez, alguma amizade seja possível, em nome de tudo o que vivemos juntos. Se isso não for possível, Paula, sua companhia já me basta. Confesso que aprendi a valorizar você, depois que fui embora. Eu fui um idiota e sei que a perdi para sempre, por culpa minha. Só minha. Mas acredite: seria bom ter você ao meu lado novamente. Nem que fosse apenas como colega.

Paula estava aturdida. Respirava com dificuldade. Sentia o coração latejar nos ouvidos, no pescoço. Sentimentos antigos e novos se misturavam a pensamentos confusos. Sua mente era agora uma balança em que se equilibravam de maneira tênue, precária, o desprezo e a raiva acumulados em muitos anos, por um lado, e, por outro, a piedade e um sentimento novo, inesperado, de compaixão pelo ex-companheiro.

Ainda assim, ela era uma mulher ferida. Mesmo tendo refeito sua vida sem Bebeto, e chegado à conclusão de que provavelmente teria sido pior com ele do que sem ele, não estancara a dor da rejeição nem uma certa vergonha por, como dizem os hipócritas, “não ter dado certo” como esposa. O que mais a machucava, no entanto, era perceber que Bebeto, em sua nova vida de casado, se esforçava para ser um bom marido para a nova companheira e um pai dedicado para a filha que ela trouxera de um outro relacionamento, enquanto Júnior, que o idolatrava, muitas vezes era deixado no portão sem um beijo sequer.

Foi, portanto, a Paula ferida, e não a Paula compassiva, quem sentenciou, procurando controlar o tom de voz:

– Eu aceito pensar no assunto. Preciso de um tempo, é claro. Mas tenho uma condição. Uma condição que você precisa cumprir aqui e agora, se quiser que eu ao menos considere sua proposta.

– Certo, Paula. O que devo fazer?

– Repita, olhando para mim, se ainda se lembrar, o que você escreveu no cartão que me enviou com uma caixa de bombons, depois do nosso primeiro encontro.

Bebeto respirou aliviado. A resposta era fácil.

– “Você é tudo pra mim.”

Mas essa era só a primeira parte da condição.

– Agora repita o que você disse pra mim na porta de casa, quando saiu com as malas, naquela noite de revelações sobre o quanto se sentia infeliz comigo e como havia se apaixonado por outra mulher.

– Paula, não faça isso.

– Repita. É minha condição.

Bebeto abaixou a cabeça.

– Você…

– Olhando pra mim, Bebeto. Fale olhando nos meus olhos.

Houve um minuto de silêncio. Mais de dez anos haviam se passado, mas Bebeto ainda se lembrava do que havia dito. Como esquecer essas coisas? Naquela noite, ele disse o que sentia — embora reconhecesse, tempos depois, que deveria ter poupado a esposa daquela crueldade.

Um Bebeto cansado, sem um mínimo traço da soberba característica, levantou a cabeça com lágrimas nos olhos. Paula também lutava para conter o choro. Mas queria que ele sentisse o peso das próprias palavras, que ela carregara como uma cruz nos últimos onze anos, e como seria difícil, para ela, esquecer o sofrimento e a humilhação que ele lhe impusera.

Com pena do ex-marido, Paula pensou em retirar a exigência, mas ele já começara a falar a frase que soava, para ela, assim como um epitáfio do seu casamento:

– “Você é tudo pra mim, Paula, menos novidade.”

Leia a segunda e última parte deste conto no próximo domingo, 23 de junho, no blog Conversa de Armazém.

Imagem de Claudio_Scott por Pixabay

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