
MARCO MERGUIZZO – Nesta segunda, 29 de junho, data em que se comemora o martírio dos santos festeiros Pedro – um dos doze discípulos que renegou Cristo por três vezes mas foi o escolhido para ser o chefe da Igreja e guardião das chaves dos portões celestiais – e Paulo, o apóstolo dos Gentios e cujo nome original era Saulo de Tarso, fecha-se enfim o ciclo dos festejos da tríade de santos juninos.
Também vale observar que, no calendário da Igreja Católica Apostólica Romana, se rememora, em geral, o dia de morte dos santos mártires e não o do nascimento, excetuando-se as datas natalícias de Jesus, que se comemora universalmente no dia 25 de dezembro, o de Maria, em 8 de setembro, e o de São João, em 24 de junho.
Para muita gente, além da fogueira, do pau-de-sebo, da quadrilha, da pipoca, da canjica, do curau, da pamonha, do bolo de fubá e de outros ícones da boa mesa e tradição caipiras, o verdadeiro sabor de uma festa junina que se preze deve ter obrigatoriamente as presenças do quentão e de vinho quente. E detalhe: ambos devem ser servidos de preferência naquelas canequinhas brancas e/ou coloridas de ágata esmaltada, como reza o bom e velho ritual interiorano.

Combinadas à cachaça e ao vinho, inclui-se na fórmula desses festejadas infusões, especiarias como o cravo, o pau de canela, o gengibre e o anis estrelado, que ajudam a invocar, à luz da fogueira, o tradicional espírito junino, perfumando as noites geladas de inverno, nas quais elas costumam ser saboreadas, sob a forma de bebidas afetivas, fumegantes, pelando de quente, que visam a aquecer o paladar, o corpo e o espírito.
Provenientes de várias partes do mundo, sabe-se que a canela veio originalmente do Sri Lanka. Já o cravo-da-índia, da Indonésia. E o gengibre, da China. Trazidas todas elas ao Brasil pela família real portuguesa há mais de dois séculos atrás, também foram os monarcas lusitanos que introduziram o ritual junino no dia a dia da corte e, a seguir, no dos súditos brasileiros, inaugurando por aqui a tradição dessa festa de ares bucólicos feita nos antigos arraiais ao ar livre, em homenagem aos santos juninos.
PEDRO E PAULO: DE APÓSTOLOS E MÁRTIRES A SANTOS JUNINOS

Sabe-se que as comemorações juninas foram criadas nos primórdios do cristianismo. Era costume, segundo o Antigo Testamento, promover encontros comunitários festivos à luz de labaredas, regados por muito vinho – considerado não por acaso a mais sagrada das bebidas inventadas pelo homem – e homéricas comilanças.
Entre outros personagens bíblicos, o profeta Zacarias, por exemplo, acendeu uma grande fogueira para agradecer pelo bom parto de sua esposa, Isabel, que daria à luz João Batista, o profeta responsável por anunciar e batizar o “Cordeiro de Deus incumbido de tirar o pecado do mundo” e decapitado, a seguir, pelo rei Herodes. Uma das figuras mais importantes do Novo Testamento, João se alimentava no deserto de gafanhotos, fonte segura de proteína em áreas de escassez alimentar, e mel silvestre, rico em carboidratos e glicose.
Em tempo: para alguns autores, o termo acris, em hebraico, tanto pode ser traduzido como gafanhoto ou mesmo as bolotas da alfarrobeira, uma árvore típica em várias regiões da Palestina, cujos frutos eram devorados por porcos, cabras e outros animais.

FESTAS JUNINAS: TRADIÇÃO CAIPIRA DE ORIGEM NOBRE E URBANA
Embora seja uma tradição de longa data aqui no Brasil, os festejos juninos já eram comemorados há muitos séculos nos países europeus para celebrar a fartura da colheita. De origem remota, tal celebração também está relacionada ao solstício de verão no hemisfério Norte, ou seja, ao dia em que o Sol, ao meio-dia, atinge seu ponto mais alto no céu, e tem-se o dia mais longo e a noite mais curta de todo o ano.
Com o tempo, essa festividade de origem pagã foi apropriada e “cristinianizada” pela Igreja Católica, ganhando cunho religioso. Chegou ao Brasil com os portugueses, ainda durante o período colonial. A tradição dos festejos se espalhou pelo interior do país, em especial pelos estados do Nordeste e Sudeste, que, por sua vez, os adaptaram a seus costumes e manifestações culturais de acordo com cada região.
É o caso das quadrilhas caipiras que tiveram influência direta das danças de salão da nobreza europeia urbana e aqui, curiosamente, foram incorporadas ao cotidiano rural.

À mesa, o costume herdado é o de servir bebidas quentes à base de especiarias para serem servidas em torno da fogueira, e onde também costuma se assar a espiga de milho, cozinhar o pinhão e ao mesmo tempo aquecer o corpo, aproveitando o calor das labaredas. De todo modo, o espírito original da comemoração foi mantido no Brasil.
Com roupas típicas, bandeirolas, pau-de-sebo, fogueira, músicas rurais, grupos dançantes de pau-de-fita e fartura no prato, o homem do campo no passado, tradicionalmente religioso, e até mesmo nos dias de hoje, agradece pela boa colheita da roça. No cardápio junino, portanto, não podem faltar pipoca, pinhão, cuscuz, bolo de fubá e, claro, o quentão e o vinho quente.
QUENTÃO: DELÍCIA FUMEGANTE SORVIDA PELANDO DE QUENTE

Em qualquer comemoração junina, o quentão é, sem dúvida, a bebida mais popular e a campeã das preferências. A sensação alcoólica proporcionada pela cachaça, entre 38º e 48º, se revela maior quando é aquecida – e esta teria sido a razão pela qual o termo foi criado por algum anônimo: um líquido bem quente, pelando, ou “quentão”, no bom e velho caipirês, e cuja origem, já longínqua, é o ciclo da cana-de-açúcar ainda nos primeiros anos de colonização do Brasil.
Além de cachaça da boa que não queima a garganta, um bom quentão leva em sua composição canela, cravo-da-índia e gengibre mais casca de limão e açúcar caramelizado – tudo curtido lentamente em fogo baixo. O resultado é uma mistura picante, de médio teor alcóolico, servida fumegante e sorvida brejeiramente naquelas canequinhas coloridas de ágata, barro ou cerâmica.
A cachaça, portanto, é a grande protagonista da receita. Por isso, nem pense em preparar a bebida utilizando uma pinga de baixa qualidade. O ideal é usar uma branquinha (ou seja, sem ser envelhecida em madeira) de boa procedência e preferencialmente de alambique. Lembrando que, mesmo no caso do uso de uma boa cachaça, é melhor não exagerar no consumo do quentão, não apenas pelo álcool, mas por causa das calorias acrescidas: um copo de 60ml da bebida pode chegar a 120 calorias.
VINHO QUENTE E ANISETE: OS PRIMOS CHIQUES DO QUENTÃO

Também disputa a preferência do brasileiro nos festejos juninos o vinho quente. Igualmente irresistível, ele é apreciado sobretudo nos estados do Sul e aqui, no Sudeste, onde tem o apelido de “quentão gaúcho” ou “quentão paulista”, por causa da imigrantes europeus, sobretudo italianos, que desembarcaram nessas regiões, no final do século 19, substituindo na receita a cachaça pelo vinho.
Segundo alguns autores, o vinho quente começou a ser servido nas festas juninas, primeiro em vários países de tradição vinícola da Europa e depois no Brasil, para aproveitar a superprodução de fermentado do uva nem sempre de boa qualidade. Para tanto, adicionava-se uma grande quantidade de açúcar e especiarias para esconder e, assim, disfarçar e mascarar os defeitos dos vinhos ordinários.
Hoje um tanto esquecido, há ainda no rol de bebidas juninas o anisete – uma infusão de aguardente com essência de anis. De origem francesa, essa beberagem, bastante popular nos países mediterrâneos, como Portugal e Espanha, é apreciada pelos mineiros, em especial os que moram no interior do estado. Transparente e aromático, o anisete deixa na boca o sabor característico de anis-estrelado – a Illicium verum -, planta originária da China e do Vietnã, também conhecida como anis ou funcho da China ou da Sibéria, a partir da qual este destilado, da mesma família do áraque árabe, é feito.
QUENTÃO

INGREDIENTES
3 xícaras (chá) de cachaça de boa qualidade. 2 xícaras (chá) de água. 1 ½ xícara (chá) de açúcar. 1 colher (sopa) de gengibre ralado (um pedaço de cerca de 3 cm x 3 cm). Casca de 1 laranja. Casca de 1 limão. 2 ramas de canela. 5 cravos-da-índia. 2 maçãs pequenas.
PREPARO
1) Numa panela média, coloque o açúcar, o gengibre ralado, as cascas de laranja e de limão, a canela e o cravo. Leve ao fogo médio e deixe cozinhar até o açúcar derreter completamente e formar um caramelo dourado – mexa de vez em quando para não queimar. 2) Retire a panela do fogo e regue com a água aos poucos. Cuidado: se a panela estiver muito quente o líquido pode borbulhar. Mexa delicadamente para misturar – não se preocupe se parte do açúcar endurecer, ele vai dissolver durante o cozimento. 3) Volte a panela ao fogo médio e misture a cachaça. Assim que começar a ferver, abaixe o fogo e deixe cozinhar por 25 minutos. 4) Enquanto o quentão cozinha, lave e seque as maçãs. Corte cada uma em 4 metades e descarte as sementes e o cabinho. Apoie o lado cortado de cada metade na tábua e faça fatias finas. 5) Desligue o fogo e, com uma concha, sirva o quentão direto da caçarola. Distribua as maçãs nas canecas e sirva a seguir.
VINHO QUENTE

INGREDIENTES
1l de vinho suave de boa procedência. ½ l de água. 1 xícara de açúcar. 1 limão tahiti cortado em rodelas com a própria casca. 1 maçã e 1 laranja descascadas e picadinhas em pequenos pedaços. 10 cravos-da-índia. 10 pauzinhos de canela.
PREPARO
1) Ferva por 30 minutos a água com açúcar, o limão, o cravo, a canela e as frutas até o líquido reduzir e ficar da cor de caramelo. 2) Adicione o vinho e mantenha-o aquecido em fogo baixo. 3) Sirva-o bem quente.
PARA OUVIR E SABOREAR:
QUADRILHA (LUIZ GONZAGA, O GONZAGÃO)

MARCO MERGUIZZO é jornalista profissional especializado em gastronomia, vinhos, viagens e outras coisas boas da vida. Escreve neste Coletivo toda quinta-feira. Me acompanhe também no Facebook e no Instagram, acessando @marcomerguizzo #blogaquelesaborquemeemociona #coletivoterceiramargem
Poxa, eu não fazia ideia que mesmo após tanto tempo de fervura o quentão ainda mantinha propriedades alcoólicas. Agora, sabendo disso, tomarei com mais frequência. Haha
E procurarei arriscar um preparo, nunca havia parado para perceber que nunca fervi uma cachaça.
Abraço, grande!
Ps: Adoraria ver a nobreza portuguesa gritando “olha a chuva”!
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Hahahahaha, boa! Grande abraço. Santé!
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