
MARCO MERGUIZZO – Em tempos de contingenciamentos e cortes na própria carne das verbas destinadas às universidades públicas, medidas anunciadas há poucos meses pelo atual ministro da Educação, Abraham Weintraub, a hoje globalizada kafta – glória da culinária árabe feita de carne moída e especiarias, bem ao gosto, por sinal, do brasileiro – foi alçada, nos últimos tempos, do espeto à berlinda como um dos temas principais de memes, trending topics das redes sociais e manchetes da mídia brasileira.
A confusão, gafe ou, vá lá, o inacreditável ato falho ao misturar alhos com bugalhos, foi cometido no dia 7 de maio deste ano pelo “distraído” ministro de Jair Messias Bolsonaro, em sua audiência com os senadores. Ao trocar o sobrenome do célebre escritor Franz Kafka pelo nome do famoso e ultraconhecido churrasquinho árabe inventado em priscas eras durante o antigo império otomano, Weintraub “assombraria” pela primeira vez o país com suas declarações incomuns, arroubos e incontinências verbais.
Logo em seguida, ele protagonizou o vídeo de uma dancinha ao (pior) estilo Gene Kelly, para desmentir a notícia veiculada pelos veículos de Imprensa sobre o contingenciamento de verbas destinada à reconstrução do Museu Nacional do Rio de Janeiro, tratada por ele como fake news.
Na ultima semana de junho, novamente, ele voltaria a “causar” em seu Twitter pessoal ao teclar a seguinte mensagem: “Tranquilizo os ‘guerreiros’ do PT e de seus acepipes”. Na verdade, o “ministro troca-tudo”, que integra o governo do PSL, gostaria de ter dito que os correligionários do Partido dos Trabalhadores eram “asseclas” (no sentido de sectários) mas cravou a palavra “acepipes”, sinônimo em bom português, de aperitivo ou petisco. Novo vexame.
Nesta quarta, 3 de julho, Weintraub voltou às manchetes e holofotes, ao afirmar que “cabeças vão rodar” se existir “qualquer viés ideológico” nas questões da prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) deste ano). Em resumo: uma mancada atrás da outra de um ministro de Estado dado a histrionismos.


Além das performances alla Gene Kelly, a kafta e outros pitéus gastronômicos integram o diversificado cardápio de pautas e vexames cotidianos do histriônico ministro Weintraub
KAFKA: DISTOPIA E BRUTALIDADES FÍSICAS E PSICOLÓGICAS

Natural de Praga, capital da atual República Tcheca, o escritor Franz Kafka nasceu há exatos 136 anos, mais precisamente em 3 de julho de 1883. Oriundo de uma família judia de classe média, ele teve uma sólida formação intelectual. Em sua juventude (que o atual ministro da Educação não nos ouça) nutria simpatia por organizações e movimentos anarquistas, antimilitaristas, anticlericais e socialistas surgidos entre o final do século 19 e primeiras décadas do 20. Escrevia com mestria e se comunicava fluentemente em alemão.
Autor dos clássicos A Metamorfose, O Processo e O Castelo, obras superlativas que o consagraram, Kafka é apontado pelos críticos como um dos mais influentes escritores do século 20. Complexa, erudita e por vezes hermética, grande parte da obra literária de Kafka gira em torno de temas e arquétipos de alienação e brutalidade física e psicológica, conflito entre pais e filhos, personagens com missões aterrorizantes, labirintos burocráticos e transformações místicas.
Considerado o seu romance mais perturbador, O Processo, livro que fui obrigado a reler inúmeras vezes para compreender as intrincadas nuances de sua trama, apresenta ao leitor a narrativa carregada de uma atmosfera claustrofóbica, absurda e distópica, na qual o personagem Josef K. está imerso. (Em 1962, esta obra-prima de Kafka virou cult movie sob a batuta do genial cineasta americano Orson Welles, diretor do antológico Cidadão Kane. No final do post, assista ao trailer).
Tal atmosfera deve-se à sequência infindável de surpresas quase surreais, geradas por uma lei maior e inacessível, que está no entanto em perfeita conformidade com os parâmetros reais da sociedade atual. A desorientação de Josef K. diante do absurdo presente em situações e ambientes verossímeis transmite ao leitor o mal-estar análogo ao provocado pelo Unheimliche, o “estranho familiar” tão próprio às obras de Kafka.
A ambiguidade onírica do universo kafkiano e as situações de absurdo existencial chegam a limites extremos supostamente improváveis. A ação desenvolve-se num clima de sonhos e pesadelos misturados a fatos corriqueiros, compondo um universo em que a irrealidade beira à loucura.
UNIVERSO KAFKIANO: ASSUSTADORAMENTE ATUAL


O tema da “não humanidade”, largamente explorado por Kafka em toda a sua obra, torna a trama contemporânea e muito atual, provocando questionamentos acerca dos costumes e crenças arbitrários, que podem parecer tão bizarros quanto os acontecimentos da vida de Josef K. Ou seja, a associação ao momento político e social no qual estamos mergulhados e a semelhança com os meandros agora revelados pelas mensagens e áudios publicados pelo site The Intercept sobre a Lava a Jato, tornam a ficção de Kafka, urdida no longínquo ano 1925 em desconcertante realidade, noventa depois, transcorrida ao vivo e em cores, por aqui, para quem quiser ver.
Embora Kafka tenha retratado o autoritarismo da Justiça para condenar alguém, sem lhe oferecer meios de defesa, ou ao menos conhecimento das razões da punição, podemos considerar a figura de Josef K., bem como de seus acusadores, reconhecendo-os hoje em vários campos da vida humana: seja na escola ou no trabalho (quem nunca se sentiu como Josef K. ao ser criticado por seu desempenho, sem que soubesse em que havia falhado), seja no nosso dia a dia ou por meio de nossas crenças e opções religiosas. Basta lembrar os patrulheiros e fanáticos de plantão que vivem a nos apontar as nossas faltas e a dizer o que devemos fazer, vestir, ler, assistir etc..
OS LABIRINTOS BUROCRÁTICOS DA JUSTIÇA

Ao ser informado que contra ele havia um processo judicial ao qual o protagonista da trama jamais terá acesso à acusação e conhecimento do conteúdo, Josef K. percorre vielas e becos da burocracia estatal, cumpre ritos inexplicáveis, comparece a tribunais estapafúrdios, submete-se a ordens desconexas e se vê de tal modo enredado numa situação absurda, que a narrativa aproxima-se da descrição de confusos pesadelos.
Mas que não são muito diferentes dos processos reais dos dias de hoje que tramitam nos vãos da estrutura pesada, arcaica, burocrática e surreal das instituições de Justiça, de tal sorte que Kafka terá sempre o mérito de ter retratado alguns aspectos institucionais da sociedade moderna, com fidelidade, crueza e incrível verossimilhança.
Muito embora se preste às mais diversas interpretações, O Processo fornece farto material para comparações com o momento atual do país. Kafka reproduz a negação do estado democrático de direito e, ao mesmo tempo, leva o leitor a perceber que, mesmo vivendo sob a égide da democracia plena, há que se não perder de vista que as instituições não guardam sua razão de ser na prestação de serviços públicos em prol da sociedade, mas na submissão à pura forma dos processos burocráticos como forma de dominação e o seu total desprezo pela cidadania e pela democracia.
MENU À WEINTRAUB
Livre pensar é só pensar, como preconizava o haikai do genial e saudoso cartunista, dramaturgo, escritor e jornalista Millôr Fernandes (1923-2012). Além da kafta, qual seria o cardápio completo perpetrado a partir das gafes verbais do atual ministro da Educação? Eis várias sugestões, de A a Z, da entrada à sobremesa, com nomes de escritores consagrados da literatura brasileira e universal. Boas risadas e bom apetite.
Antero de Quentão (ou de Quentinha)
Antônio da Alcatra Machado
António Lombo Antunes
Basílico da Gama
Cesare Pavê
Charles Chickens
Cuscuz e Souza
Erva Pound
Hannah Arenque
Hellmann’s Hesse
Homus Oz
James Juice
Joaquim N’ Ossobuco
João Camarões Rosa
Jorge Assado
José do Laticínio
José J. Aveia
José Lins do Rango (ou Rins do Rego)
José Sal Amargo
Luís de Camarões
Machado de Anis
Malba Tahine
Manuel Antônio de Amêndoa
Mia Couve
Miguel de Conservantes
Milton Atum
Milk Shakespeare
Nélida Champignon (ou Nélida Pinhão)
Salmão Rushdie
Stephen Burger King
Zélia Petit Gattai
KAFTA: IGUARIA ÁRABE QUE O BRASILEIRO AMA

Hoje globalizada e bastante conhecida do brasileiro, a kafta é uma preparação ancestral, caseira e bastante popular no mundo árabe, o amplo território que abrange todos os países do Oriente Médio até a Turquia, porta de entrada (ou saída) entre o continente europeu e a Ásia, onde ela teria surgido.
Feita originalmente com carne de cordeiro moída, essa iguaria milenar é muito apreciada em todo o mundo, incluído o Brasil, na versão da receita que leva cortes bovinos, como o patinho (confira e se esbalde, logo abaixo, com uma receita super fácil de fazer). À carne moída acrescenta-se cebola, sal, especiarias e outros temperinhos árabes. A seguir, a kafta é moldada no espeto e assada na brasa, como o nosso popular churrasquinho.
KAFTA AO MOLHO DE HORTELÃ
INGREDIENTES
500 g de patinho moído. ½ cebola picada fino. 2 colheres (sopa) de salsinha picada. 2 colheres (sopa) de coentro picado. 1 colher (sopa) de hortelã picada. 1 colher (chá) de cominho. 2 colheres (chá) de páprica. ½ colher (chá) de pimenta síria. ½ colher (chá) de canela em pó. raspas de 1 limão. ½ colher (chá) de sal. azeite a gosto
MODO DE PREPARO
1) Separe espetos de bambu para montar as kaftas. 2) Coloque os espetos numa assadeira e cubra com água. Deixe de molho enquanto prepara a carne – isso evita que eles queimem na hora de grelhar. 3) Numa tigela grande, junte a carne moída, a cebola e as ervas picadas. Tempere com o sal, o cominho em pó, a páprica doce, a pimenta síria, a canela, as raspas de limão e misture bem com as mãos. 4) Retire os espetos da água. Com as mãos úmidas, modele as porções de carne ao redor de cada espeto – aperte delicadamente para as kaftas ficarem presas no palito. 5) Leve uma chapa (ou frigideira antiaderente grande) ao fogo médio. Quando aquecer, pincele azeite nas kaftas e disponha os espetinhos na chapa, um ao lado do outro. 6) Deixe dourar por cerca de 3 minutos, vire e deixe dourar por mais 2 minutos. 7) Sirva, a seguir, com o molho de hortelã.
INGREDIENTES
1 pote de iogurte natural sem açúcar (170 g). 1 colher (sopa) de azeite. 1 colher (sopa) de hortelã picada. Sal a gosto
MODO DE PREPARO
Numa tigela pequena, misture o iogurte com o azeite, a hortelã picada e o sal. Reserve na geladeira até a hora de servir.
PARA VER E OUVIR
THE TRIAL (1962) – TRAILER
Singing In The Rain (Gene Kelly) – 1952

MARCO MERGUIZZO é jornalista profissional especializado em gastronomia, vinhos, viagens e outras coisas boas da vida. Escreve neste coletivo toda sexta-feira. Me acompanhe também no Facebook e no Instagram, acessando @marcomerguizzo #blogaquelesaborquemeemociona #coletivoterceiramargem
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