A sedução do abismo (conto). Terceira e última parte: Cedo ou tarde demais, seus olhos se abrirão

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JOSÉ CARLOS FINEIS – Ao declamar Pessoa, abri os braços, me entusiasmei e quase perdi o equilíbrio. Mas Regina, com o olhar distante, nem percebeu.

– Todos os sonhos do mundo – ela repetiu. – Tenho saudades do tempo em que eu também sonhava. Me sinto tão diferente do que eu era! Parece que o dom de sonhar ficou perdido em algum ponto do caminho. Acho que essa é uma forma, talvez a mais dolorosa, de morrer: quando sentimos que abandonamos nossos sonhos, ou que fomos abandonados por eles.

Regina me fez sentir derrotado. Dava sinais de já ter tomado uma decisão. Talvez, ao contrário da tese que eu propunha, precisasse daquele tempo à beira do abismo apenas para que a ideia de deixar de existir se acomodasse em sua consciência. Ou, pior, talvez estivesse ali, burocraticamente – ela, que vivia impregnada por essa cultura corporativa impessoal e de sorrisos mecânicos –, apenas esperando a hora que ela mesma havia determinado para pôr um fim a tudo. Como boa funcionária, saltaria do parapeito ao final ao expediente. E eu, que me julgara com chances de convencê-la, era talvez um passatempo, uma companhia para aqueles quartos de hora que a separavam de um voo sem asas, de um mergulho rápido e certeiro para a aniquilação.

Mas eu estava determinado a demovê-la daquela ideia. E não queria apenas tirá-la da janela e afastá-la do perigo temporariamente. Queria convencê-la a optar pela vida. Busquei inspiração em um personagem inesquecível de minha infância e adolescência, Atticus Finch (4). Atticus era o herói que eu tentava encarnar, não apenas ali, naquele momento, mas na vida, de maneira geral. Um homem íntegro a ponto de “fazer uma coisa estando derrotado antes de começar”, desde que estivesse convencido de que era aquele seu dever como homem.

Voltei à carga com uma imagem inspiradora, que a mim mesmo havia impelido muitas vezes, quando tudo à minha volta parecia dizer que era inútil prosseguir.

– Você viu “Sonhos”, de Kurosawa? – perguntei.

– Acho que não. Se vi, foi há muito tempo – ela falava sem emoção, como se a aproximação do fim do expediente a esvaziasse.

– É uma reunião de histórias curtas, muito belas e simbólicas. Num dos episódios, um grupo de montanhistas segue perdido há dias numa tempestade de neve. Exaustos, os rostos queimados, ofegantes, caminham com dificuldade na neve que lhes cobre os joelhos, como se as pernas pesassem toneladas. Cada pequeno passo exige deles um esforço sobre-humano. Estão no limiar de suas forças físicas e de suas esperanças. Um deles grita que aquela nevasca nunca vai acabar. Outro, que ela só terminará quando estiverem mortos. Contrariando o líder, os homens se deitam e caem no sono. O líder tenta impedir que durmam, pois, se dormirem, morrerão. Por fim, ele também tomba e começa a dormir. Uma mulher misteriosa aparece então, e o cobre com um manto brilhante. “A neve está morna”, ela diz. “O gelo está quente.” O líder se deixa enlevar por instantes, mas reage, acorda e a mulher desaparece. Ele se levanta e sacode os colegas para que acordem. Segundos depois, a tempestade cessa e a luz do sol brilha no alto das montanhas. A escuridão desaparece e eles descobrem que estão a poucos passos do acampamento. Se não tivessem resistido ao sono, teriam morrido muito perto do lugar que, para eles, representava a salvação.

Tão logo saltam, desejam jamais ter pulado

Regina me olhava com um ar de espanto, talvez pela minha insistência em apresentar argumentos. Mas continuava triste e cada vez mais abatida.

O sol se escondera quase que totalmente, deixando nuvens revoltas e vermelhas na direção do poente. As luzes da cidade começavam a acender. Havia um holofote colocado em nós, como se fôssemos atores em uma cena insólita. Algumas pessoas, imagino que policiais, nos observavam de uma das janelas iluminadas no prédio do outro lado da rua.

– Olhe, Carlos – ela disse, hesitante. – Agradeço por tentar me convencer, mas tenho meus motivos. Se eu decidir, você sabe… Se eu optar por continuar com isto, quero que prometa que não vai se sentir culpado nem se cobrar por alguma coisa que fez ou deixou de fazer. Nenhum outro, melhor que você, seria capaz de defender a vida com argumentos tão convincentes. E você é praticamente um menino. Mas o que me levou a agir desta forma ainda está aqui, machucando aqui dentro, e penso que, já que tive a coragem de passar por esta janela, talvez seja melhor seguir em frente.

Suas palavras fizeram com que eu gelasse. Aquela mulher tinha um propósito, e, se alguma coisa ainda prendia à vida, era um fio muito tênue, praticamente uma formalidade: o horário previamente fixado para consumar seu plano.

– Você vai pular, não é? – eu perguntei, olhando-a com firmeza.

– Acho que sim. Sinto que não tenho mais nada a fazer aqui.

– Você assistiu “A Ponte”?

– Como assim, se eu assisti “A Ponte”? – ela se mostrava aturdida. – Você não desiste nunca, rapaz?

– Ainda temos alguns minutos antes das seis. Por favor, ouça apenas mais isto, e depois faça o que quiser. “A ponte” é um documentário sobre pessoas que se atiram da ponte Golden Gate, em São Francisco. (5) Os produtores esconderam câmeras no local e durante algum tempo registraram diversos suicídios. Depois, foram atrás dos amigos e parentes das vítimas, para que contassem suas histórias. Quase todos os que saltam da Golden Gate morrem no impacto com a água, que se torna dura como uma parede depois de uma queda de quase 70 metros. Entre tantos que saltam, existem uns poucos, muito raros mesmo, que sobrevivem, e sabe o que eles dizem? Que, tão logo se soltam da ponte, se arrependem e desejam jamais ter pulado. Basta desprender-se da estrutura e iniciar a queda para que suas angústias desapareçam, e o desejo de viver ressurja não se sabe de onde, tão claro como a luz do dia. Mas não há como voltar atrás, e o jeito é torcer para não morrer na queda. Alguns ficam paraplégicos ou com sequelas graves, mas nenhum deles afirma que teria sido melhor morrer.

Fiz uma pausa para tomar fôlego e pensar nas palavras certas para aquele que, sabia, seria meu último apelo.

– Você pode pular quando quiser. A decisão é só sua. Mas saiba que, assim que começar a cair, por breves instantes enxergará sua vida por um ângulo completamente novo. Perceberá que qualquer outra solução – até deixar para trás família, casamento, emprego, seja lá o que for que a faz infeliz – teria sido melhor do que simplesmente desistir. Mas quando essa percepção se acender em sua mente será tarde. Em dois segundos, não mais do que isso, você será um pacote de carne e ossos triturados na calçada e a história de sua vida estará terminada. Você jamais saberá o que o imponderável poderia ter reservado para você, nem terá a oportunidade de provar a si mesma, com um misto de orgulho e alegria, que é forte o bastante para lutar contra as dificuldades. Seus amigos lamentarão sua fraqueza, enterrarão você e continuarão suas vidas, porque o tempo não para. Amanhã este escritório abrirá às oito da manhã e todos ficarão se olhando com cara de bunda por algum tempo. Depois jogarão fora seus copinhos de café e o serviço que você deixou sem terminar será passado para que outros o terminem. Seu namorado ou marido, seus parentes, todos sofrerão muito e se indagarão pelo resto da vida se poderiam ter feito alguma coisa para evitar sua morte. Mas por fim entenderão que a vida deve continuar e seguirão vendo filmes, fofocando, fazendo amor, programando viagens de férias, trocando de carro, e você será apenas uma lembrança, amorosa para uns, incômoda para outros, mas apenas uma lembrança. E seus filhos, irmãos mais novos ou sobrinhos, se é que você os tem, crescerão sabendo que pular do décimo quinto andar é uma hipótese a ser considerada, caso se sintam infelizes ou alguma coisa der errado em suas vidas. Talvez algum deles a imite, daqui a alguns anos.

Passava das seis. A noite caíra por inteiro e eu não tinha mais nada a fazer ali. Com muito cuidado, pois me sentia fraco e nervoso, passei as pernas por sobre o parapeito e desci da janela. Ela pediu que eu apagasse as luzes e indicou onde ficavam os interruptores. Atendi, pois achei que aquele seria seu último pedido. Depois desabei numa cadeira a alguns metros da janela, fechei os olhos e deixei-me ficar, por demais cansado para pensar em alguma coisa. Estremeci quando percebi que ela chorava, um choro pequenino, quase inaudível, entrecortado de soluços. Pensei: está tudo perdido. Então decidi jogar uma última carta. O que eu tinha a perder?

“…minha carne estremece na certeza de tua vinda”

Ainda com os olhos fechados, tomei fôlego e, elevando a voz, recitei de memória o trecho final de um poema de Drummond (6).

“Aurora, entretanto eu te diviso,
ainda tímida, inexperiente das luzes que vais ascender
e dos bens que repartirás com todos os homens.

Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,

adivinho-te que sobes,
vapor róseo, expulsando a treva noturna.

O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram, mas que avançam na escuridão
como um sinal verde e peremptório.

Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.

O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes
se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez, uma inocência, um perdão
simples e macio…

Havemos de amanhecer.
O mundo se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.”

Terminei de recitar o poema e baixei a cabeça, ainda com os olhos fechados. Tinha medo de olhar para a janela e vê-la se atirar. Mas o silêncio foi rompido por um grito uníssono da multidão, que me fez estremecer. Olhei para a janela o espaço estava vazio. A silhueta de Regina não estava mais lá. Levantei-me de um salto e corri para a janela, derrubando cadeiras no escuro, mas então a vi. Havia-se deixado cair de costas no carpete do escritório. Dei um grito de alegria e atirei-me sobre ela. Tinha vontade de beijá-la, mas me contive. Ali mesmo no chão nos abraçamos com força, demoradamente. Não sei quanto tempo ficamos nessa posição. Chorávamos e ríamos como crianças. Nos afastamos um pouco. Não resisti e passei a mão pelos seus cabelos.

– Que bom que você não pulou.

– Obrigada por ficar comigo – ela sorriu. E, puxando-me de encontro a seu corpo, beijou meu rosto gelado, sufocando-me e apertando-me contra si.

Antes que pudéssemos nos levantar, a porta veio abaixo com um estrondo e em poucos segundos o escritório estava cheio de pessoas com lanternas e rádios. Os primeiros que entraram gritaram para que não nos movêssemos, correram até nós e nos tiraram do chão com vários pares de mãos firmes e fortes. Por alguns instantes, fui imobilizado com os braços para trás, como se representasse uma ameaça. A janela foi fechada. Fomos levados ao plantão policial, onde uma psicóloga conversou longamente com Regina. Eu fui ouvido e liberado para voltar para casa tarde da noite. Minha família sequer havia sido avisada. Minha mãe me esperava, preocupada com a demora, temendo que algum mal tivesse me ocorrido. Ela reservara um prato de comida para mim sobre o fogão.

Regina recebeu uma licença de 15 dias, em que não tivemos contato. Em seu retorno, depois de ser festejada pelos colegas e de receber um ramalhete de flores do dr. Bundão – que era como o dr. Augusto passara a ser chamado pelas costas, depois que ele mesmo espalhou, em tom de queixa, a forma como fora tratado por sua gerente –, Regina foi até minha mesa e colocou uma caixinha embrulhada para presente diante de mim.

– É pra você. Estou repondo o celular que fiz você jogar pela janela. Tem um bilhete pra você no bloco de notas. Não sou muito tão boa com as palavras. Jamais conseguirei retribuir o que fez por mim, mas quero que conte comigo sempre, no que precisar.

Colocar barreiras é fácil. Melhor seria praticar o amor

A partir do retorno de Regina, tivemos pouco contato. A rotina do escritório não permitia que conversássemos muito. Também não houve convites para sair ou coisas desse tipo. Tentamos engatar uma amizade, mas, embora sentisse que havia entre nós uma ligação natural de pessoas que passaram por maus bocados juntas, aos poucos nos distanciamos e nos tornamos apenas colegas. Ou um pouco mais que isso, já que jamais deixamos de ser gentis e sorridentes um com o outro.

Eu nunca me iludi. Sabia desde o início que vivíamos em mundos à parte. A distância entre nós era imensa e se tornou ainda maior quando ela foi promovida para chefiar um escritório da firma no exterior. Regina tem sido uma paixão platônica desde então, mas isso não me incomoda. Afinal, é assim que eu sou.

Em parte por minha dedicação ao trabalho, em parte como recompensa por evitar um desgaste para a imagem da empresa, fui promovido com um salário razoável. Tempos depois, entrei para a faculdade de Direito com uma bolsa parcial e pude alugar um apartamento em um bairro melhor, para onde consegui levar minha mãe – mas não sem antes quebrar sua resistência em sair de perto de meus irmãos. Dobrei-a com a promessa de que jamais deixaríamos de ajudá-los, naquilo que nos fosse possível e no que eles se permitissem ser ajudados.

Logo após o incidente no escritório, as janelas do prédio foram trocadas por grossos vidros temperados, numa alardeada ação de combate a suicídios que, na verdade, nada mais era que uma forma de evitar que suicídios fossem praticados naquele lugar. Soube também, pesquisando o assunto na internet, que, concebido nessa mesma linha de raciocínio, existe um projeto de muitos milhões de dólares para colocar redes de proteção sob a ponte Golden Gate.

Seria mais barato e eficiente se as pessoas procurassem tentar ser mais delicadas e atenciosas umas com as outras, mas isso talvez seja querer demais do sempre ocupado e indisposto Homo sapiens. Embora o custo financeiro seja maior, instalar vidros, redes e câmeras de segurança é mais prático e exige menos esforço do que exercitar o amor. Não duvido que muitas pessoas se sintam reconfortadas por realmente acreditarem que, ao tomar essas providências, fazem tudo o que está ao seu alcance a respeito dessa questão.

Meses depois da promoção de Regina, correu pela empresa a informação de que ela havia se casado com um colega de escritório – acho que um austríaco; ou seria holandês? – e tivera um filho. Fiquei contente por ela. Filhos são como laços de amor que nos mantêm atados à vida. Não pude deixar de me emocionar quando me disseram o nome que ela escolheu para a criança, porque evidentemente foi uma homenagem. Só não sei se para mim ou para o fabuloso Drummond, cujo poema recitei naquela noite em que ela finalmente pendeu para o lado da vida.

Sim, o menino se chama Carlos.


Sorocaba, julho de 2019

Notas

(4) Atticus Finch, personagem do romance “O Sol é para Todos”, de Harper Lee, transposto para o cinema com Gregory Peck no papel de Atticus.

(5) “A Ponte”, EUA, 2006, direção de Erick Steel
https://www.youtube.com/watch?v=xV-vQyVuLJA


(6) “A Noite Dissolve os Homens”, poema de Carlos Drummond de Andrade escrito em 1940 e publicado no Livro “Sentimento do Mundo”

(Veja abaixo os links para “Sonhos” de Kurosawa e o documentário “A Ponte”, de Erick Steel, em suas versões integrais.)

Créditos das imagens

Cena de “Sonhos”, de Akira Kurosawa (foto principal)
Reprodução YouTube

Ponte Golden Gate
Image by Pexels from Pixabay

Amanhecer em São Paulo
Image by Angelica Spínola Masy from Pixabay

Prédio envidraçado
Image by Michael Gaida from Pixabay

Sonhos, de Akira Kurosawa (dublado, completo)

A Ponte, de Erick Steel (legendado)

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