
LÚCIA HELENA DE CAMARGO – A Disney sabe fazer filmes para a família. “O Rei Leão 2019”, que estreou neste mês de julho, contêm todos os elementos para agradar públicos diversos. O acertado timing de ação, momentos para chorar, personagens bobos que fazem rir, piadinhas para as crianças pequenas gargalharem, cenas com camadas de significado, que só os adultos vão entender completamente.
Evidentemente nada foi criado. Foi aproveitada a história do desenho de 1994. A nova produção não é exatamente um filme no sentido restrito, já que as cenas foram construídas digitalmente e não filmadas; mas também não se trata de uma animação propriamente dita, porque não tem cara de desenho.
De qualquer maneira, é entretenimento para levar as crianças em férias ao cinema para ver o adorável Simba, filho do rei, que acaba sendo expulso da alcateia e passa a viver com um javali (Pumba) e um suricato (Timão). Depois de crescer (alimentando-se de larvas), retorna à casa para cumprir seu destino de filho do rei.
Comida gosmenta
Alguns recursos de roteiro para evitar violência não colam muito, como esse negócio do leão passar a vida comendo larvas. Cercado de presas em potencial, opta por comer uns negócios gosmentos apenas por benevolência. Certo, certo, é ficção para crianças. E os pequenos podem ficar assustados ao ver uma caçada sangrenta. Também há as reações dos animais aos leões, que na vida real só é respeitosa no sentido de temor em relação ao predador da savana. Eles não se reúnem para louvar o recém-nascido que um dia ocupará o trono. Mas se incomodar com isso é ir contra a lógica interna da história. É ficção, gente.
Análise
Um grande jornal de São Paulo publicou uma análise esmiuçando a falta de acuidade, digamos, zoológica do filme. Entre os erros mais relevantes apontados: os leões na África real vivem em sociedades matriarcais; as leoas são as verdadeiras líderes. E filhotes não são expulsos. Mas não estamos em um documentário.
Sim, o desfecho encontrado para a trama pode despertar a ira de quem vai ver o filme em busca de personagens com consistência. Mas tudo bem. Os leões são magníficos, a recriação dos movimentos e paisagens são precisos.
A trilha sonora, encabeçada pela canção inicial, “Nants’ Ingonyama” (Existe um leão, na língua zulu), é caprichada, como se espera. E você sai da sala de cinema cantarolando.
Triste realidade
E embora hoje existam menos de 20 mil leões vivos na África e estejam extintos, ou possivelmente extintos, em 29 países africanos, pelo menos podemos ainda ver esses magníficos animais em grandes áreas de conservação.
Experiência pessoal
Assistir ao filme me lembrou de uma experiência pessoal daquele tipo que transforma a visão de mundo. Vou resumir, para não enrolar demais com muitas palavras. Seguinte: na primeira vez que fui à África do Sul, em 2012, tive o privilégio de chegar à área da savana do Parque Krüger num belo dia de maio, no meio de outono (as estações são as mesmas lá e aqui, já que estamos na mesma latitude). Clima ameno, fim de tarde com sol. E embarcamos, duas canadenses medrosas e eu, além de ranger (guarda florestal) e rastreador, no carrão robusto que vai mato adentro sem pestanejar. Era meu primeiro “safári”, como se usava falar; ou “game drive”, como dizem localmente. Depois de passar por alguns búfalos e um grupo de elefantes, o ranger para o carro num descampado. A luz do sol está fraca, naquela hora do crepúsculo em que a vida fica quieta, como se esperando a noite, mas ainda sem saber se o dia já foi embora.
O motor é desligado. Silêncio. As pessoas dentro do carro permanecem quietas. E de uma fresta do mato começam a sair leões. São leoas, leões adultos e adolescentes, filhotes. Cerca de 30 leões. Passaram bem lentamente. No exato momento em que o sol caía, terminava o dia e começa a noite. O nome em inglês é perfeito: “pride of lions”. A tradução para o português seria uma alcatéia de leões. Mas se você lembrar que “pride” em inglês também significa “orgulho”, faz ainda mais sentido. Eles passam com uma altivez incomparável. São os reis da savana. Lindos, graciosos, selvagens. Eles moram ali. Nós, as pessoas no carro, estamos só de passagem. Felizmente eles não têm ideia de que somos muito mais frágeis e que poderíamos facilmente servir de presa. O carrão nos protege. Aprendo com o ranger que, se ficamos juntos e dentro do jipão, os leões e a maioria dos outros animais (menos os macacos, que são mais espertos do que os demais) nos enxergam como um único bicho grande e, assim, pensam que não podem conosco, porque somos muito maiores do que eles.
Ver os leões passarem ali calmamente, naquele belíssimo início de noite africana, me trouxe a maior sensação de paz do mundo. Sabe quando você não deseja estar em nenhum outro lugar, não quer nada além de estar naquele lugar, naquele momento? Assim. A vida, na verdade, é algo bem simples. Talvez não tenha sentido. Aliás, procurar sentido em tudo, como temos mania de fazer, é cansativo e chato pra caramba.
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