
RUBENS NOGUEIRA – Gustave Flaubert (1821-1880) deixou o seguinte pensamento: “O artista deve fazer com que a posteridade pense que ele não existiu.” Passados 120 anos da morte do grande romancista, autor do livro – entre outros – “Madame Bovary”, ninguém duvida que ele existiu. O que dizer então do herói deste dia 16 de junho, o Jaime Alegria, ou melhor: James Joyce?
Ele morreu em 13 de janeiro de 1941, no ,centro cultural da Europa – Zurique, na Suíça –, e o seu desaparecimento foi um Deus nos acuda nos meios intelectuais. Anthony Burgess, que escreveu “Laranja Mecânica”, no qual foi baseado um filme famoso da década de 70, relata no início do livro que dedicou a Joyce, “Homem comum enfim”: “Soube da notícia quando estava lustrando as janelas do rancho dos sargentos com um exemplar do ‘Daily Mail’ velho de uma semana. Estava a notícia na primeira página.
‘Meu Deus! James Joyce morreu!’
‘Quem é esse cara?’, um sargento perguntou:
‘Um escritor irlandês. O autor do Ulisses.’
‘Aaaaah, aquele livro sujo. Continue trabalhando…’”
Edna O’Brien, no livro “James Joyce, breves biografias”, descreve: “Seu enterro no Cemitério de Fluntern foi uma coisa modesta, Nora e Giorgio, alguns amigos, dois dignitários suíços, um certo tenor Max Mieli que cantou o ‘Addio Terra’ de Monteverdi. A própria Irlanda foi representada apenas numa coroa verde feita em forma de harpa que Nora escolhera. Um velho que se hospedava na mesma pensão que os Joyce os acompanhara – para fazer alguma coisa – e não parava de perguntar de quem era o enterro.
– Herr Joyce – disse o agente funerário.
O velho, perdido, tornou a perguntar e lhe disseram mais uma vez. E mais outra.
E Edna termina: “Se estivesse vivo, era sobre isso que Herr Joyce escreveria – gloriosamente, comicamente, e com todo o pesar e trapalhada ligados à vida e à morte.”
Sim, James Joyce viveu.
Brenda Maddox, autora de uma extensa e belíssima biografia de Nora Barnacle, a grande mulher de Joyce, conta que as últimas palavras de Nora, diante do ataúde de Joyce, foram: “Jim, como você era bonito.” Ao contrário de Finnegans, Joyce cumpria a sentença inexorável (como dizia Carlito Rosa) – “revertere ad locum tuum” (*).

Mas, sim, Joyce viveu.
Nasceu em Dublin, na Irlanda, no dia 2 de fevereiro de 1882. Viveu, portanto, quase 59 anos.
Dublin, em gaélico Baile Átha Cliath, ou seja: cidade, com um rio e uma barreira, e em inglês arcaico: Du-bhinn ou seja: poço preto. O rio que banha a cidade é o Liffey, presente nos textos de Joyce.
A Irlanda, no final do século XIX, sofreu muito com seguidas perdas de colheita e a população jovem teve que imigrar, principalmente para os Estados Unidos. Os O’Haras, os Kennedys, os Mac Donalds, os O’Brien povoaram a América do Norte.
O autor irlandês, Frank Mac Court, que publicou em 1996 o livro de memórias “As cinzas de Ângela”, no início do livro escreve: “Pior do que uma infância miserável comum é a infância miserável irlandesa e pior ainda é a infância miserável católica irlandesa.”
Parêntese: A Irlanda mudou muito. Hoje, Dublin é uma linda cidade, moderna e vibrante. Na edição de abril/2000 a revista Seleções revela: “Irlanda faz as pazes com sua economia” e é conhecida como o “Tigre Celta”, com um PIB (Produto Interno Bruto) em 1998 de 7.25% acima dos 3.75% dos Estados Unidos naquele ano. Tornou-se o centro mundial de indústria e tecnologia de ponta. Traduzindo, fabricante de computadores.
Mas, naquele cenário de fim do século XIX, James Augustine Aloysius Joyce era o mais velho dos 17 filhos de John Stanislaus Joyce e de Mary Jane Murray Joyce. John Joyce era um poeta, um sonhador, um sentimental com a cabeça povoada de sonhos. Vivia de expedientes, como se diz. Apenas por doze anos, entre 1880 e 1892, exerceu a função de coletor de impostos. Nomeado politicamente, por motivos políticos foi também demitido e passou a receber pequena aposentadoria. Sua grande ambição era tornar o filho James um homem importante. Com seis anos e meio James foi matriculado na melhor escola católica, a Clongowes Wood College, fora de Dublin. Ficou lá três anos. Quando a situação financeira apertou ele se inscreveu num colégio jesuíta em Dublin e lá ficou até 1898. Joyce logo ficou conhecido como o melhor aluno, embora os padres tenham detectado nele sinais de ateísmo. Formou-se em 1902, como bacharel de Artes pela Universidade de Dublin. Estava com 20 anos.
Sua carreira de escritor começou cedo, aos nove anos. A morte de Charles Stuart Parnell (6 de outubro de 1891), grande líder político protestante que abraçou a causa irlandesa, inspirou ao menino o poema “Et tu, healy”, no qual contrastava o heroísmo daquele chefe com a traição dos seus seguidores. Et tu, assim mesmo, em latim. Era um homem privilegiado com a facilidade para idiomas. Aos dezoito anos aprendeu norueguês para ler Ibsen no original. Ele escreveu carta para Ibsen, então com 70 anos. Inspirou-se no dramaturgo norueguês, autor de “Casa de Bonecas”, “Heda Gabler”, “O inimigo do povo” e tantas outras obras-primas teatrais.
Richard Ellmann, o mais minucioso biógrafo de Joyce, escreve: “A noção de honestidade artística levada ao ponto em que é quase autoderrota encorajava Joyce em sua própria rigorosa autoanálise. Para ele, como para Ibsen, a verdade era então mais um desmascaramento do que uma revelação. Ele também aprovava a qualidade de altivez em Ibsen, que o levava a deixar seu país e chamar-se exilado. Verdade como julgamento e abertura, e exílio como condição artística: esses seriam os polos positivo e negativo do estado de espírito do próprio Joyce.”

“Ninguém comete erro maior do que não fazer
nada porque só pode fazer pouco.”Edmund Burke, filósofo irlandês (1729-1797)
Parêntese
“O intelectual não é filho dele mesmo; ele é filho da idéia, da verdade eterna, do verbo criador e animador imanente à criação.” Joyce não aprendeu isso no precioso livrinho “A vida intelectual” do padre Sertillanges, porém tal conceito deve estar na obra de São Tomás de Aquino, mentor do romancista irlandês e do religioso francês. Joyce viveu para a Arte Literária. “Posso fazer qualquer coisa com a palavra”, dizia.
Parêntese
Aqui pelas bandas tropicais Joyce é bem conhecido das elites intelectuais. Há quase quarenta anos (1962) os irmãos Augusto e Haroldo de Campos já decifravam as charadas literárias do “Finnegans Wake”, publicando retalhos do misterioso livro sob o título “Finniciuss Revém”. O “enfant terrible” desta província Paulo Leminsky navegou nas águas dos grandes e aventurou-se a traduzir “Giacomo Joyce”, publicado pela Brasilense em 1985. Para João Manoel Simões, Joyce e Proust são os maiores escritores do século: Proust na vertente tradicional e Joyce como inovador, revolucionário.
Atualmente, um catarinense, radicado em Porto Alegre, Donaldo Schuller, esfalfa-se em traduzir, em capítulos, as 628 páginas da edição original.
Na Argentina Jorge Luis Borges, em 1925 escreveu um ensaio entusiástico sobre “Ulisses”, no qual ele observa: “Sou o primeiro aventureiro hispânico que chegou ao livro de Joyce”. No final da vida a admiração diminuiu. Em 1968, Borges publicou o seguinte soneto:
“Um dia do homem já contém os dias/ Do tempo, desde aquele inconcebível/ Dia inicial do tempo, em que um terrível/ Deus prefixou os dias e agonias,/ Àquele, quando volte o onipresente/ Rio do tempo terreno aonde nasceu,/ À eternidade, e sumam no presente/ O futuro, o passado, o que hoje é meu./ Encontra-se entre aurora e noite a história/ Universal. E eis, desde a noite, que eu/ Vejo a meus pés as rotas do judeu, / Cartago aniquilada, Inferno e Glória./ Dai-me, Senhor, coragem e alegria/ Para escalar o cimo deste dia.”
São informações de Nelson Ascher em artigo na Folha de São Paulo – domingo, 1º de agosto de 1999.
No Rio de Janeiro, a professora Maria Luiza Nogueira, que estuda Joyce há muitos anos, tem uma estante joyceana com mais de trinta volumes. Joyce e sua obra em prosa foi tema de curso para professores de inglês que ela deu em universidade argentina em 1981.
Parêntese
Antonio Torres, autor do livro “Meu querido canibal”, entrevistado pela revista “Bundas”, nº 47, diz: “O escritor, antes de mais nada, tem que ser um ser humano, tem que estar vinculado a uma história e a um país.”
James Joyce, aos 22 anos, exilou-se voluntariamente. Levou com ele Nora Barnacle, uma jovem de 20 anos, que ele conheceu no dia 10 de junho de 1904, ela recém-chegada do interior. No dia 16 de junho saíram a passear e se entenderam bem. Joyce lembrava a data com precisão sacramental e usou-a como o dia do “Ulisses”. Ele recomendava aos seus admiradores que o batizassem aquele dia como “O dia de Bloom”. É o que estamos fazendo.
Sem se casar e sem avisar os parentes eles saíram da Irlanda na noite de 8 de outubro de 1904. A ele fora prometido um lugar de professor de inglês.
Joyce achava que libertando-se da família, da pátria e da religião estaria pronto para produzir sua obra. Levou, porém, a pátria, a família e a religião dentro de si. Certa vez, “interrogado sobre uma rua de Dublin trinta anos depois que a deixara, ele parou um pouco e começou a descrever as pedras do calçamento com o barulho de cascos de cavalos, dos passos das pessoas e seus diferentes ecos, depois os cheiros, de mofo e outros, o cheiro de esterco de cavalos fresco e seco, o jogo da luz em diferentes horas do dia”, tal como afirma Edna O’Brien, em “James Joyce, Breves Biografias”, página 178.
No livro “Joyce – o romance como forma”, de Assis Brasil, publicado em 1971, pelo Instituto Nacional do Livro, há uma citação de Brenda Maddox: “Ele tinha todas as facetas. Amava seus filhos e agradava Nora. Era um homem de família carinhoso e dedicado.” Foi só uma amostra do homem. Vamos conhecer um pouco também de sua obra.

Parêntese
Se Joyce nada tivesse feito na vida, além de ensinar inglês na Escola Berlitz de Trieste, só o fato de ter incentivado um comerciante local, seu aluno, a escrever, já teria valido a sua existência. Ettore Schmitz veio a ser conhecido como Ítalo Suevo. Um de seus romances: “Senilidade”, resultou num belíssimo filme. E sua obra-prima, publicada em 1923, é o romance “A Consciência de Zeno”.
Nota
(*) Em tradução livre, “volta para o lugar de onde vieste”.
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