Larissa e Joana (conto). Parte 2 (final): O amor verdadeiro vai encontrar você

José Carlos Fineis

Leia a primeira parte deste conto clicando aqui.

Nos dias seguintes ao primeiro encontro (creio que foi numa quarta ou quinta-feira), Larissa e Joana pensaram muito no trato que haviam feito. A bem da verdade, refletiram sobre o assunto de maneira quase obsessiva, talvez porque as intrigasse uma ideia que ocorreu a ambas – a de que pudessem ter sido levadas por algum motivo desconhecido por elas mesmas, alguma intenção não consciente que não fosse apenas a de reunir-se para conversar.

Larissa, sem muito tempo para autoanálise, já que o bebê começara a engatinhar e colocar na boca tudo o que encontrava, procurou alguma luz na opinião da tia. A tia, é claro, achou tudo meio estranho, mas aconselhou-a a ir mesmo assim, porque “não é todo dia que se encontra alguém disposto a pagar trezentas pratas por duas horas seja lá do que for”.

Os trezentos reais semanais, ainda que pudessem não ser o único ou mesmo o real motivo de Larissa ter aceitado o acordo, eram um pretexto bom o bastante para que a moça concluísse, com o aval da tia, que nenhuma pessoa sensata, precisando de dinheiro como ela precisava, recusaria a oferta de Joana. Assim, embora não tivesse eliminado completamente as dúvidas, Larissa procurou se apegar a essa explicação e não gastar mais tempo com questionamentos.

Sem mamadeiras para fazer ou fraldas para trocar, Joana foi quem se deixou atormentar pelas dúvidas com mais intensidade, a ponto de perder o sono algumas noites, na tentativa de entender o que tinha feito e por quê. Geralmente premeditada e cautelosa, Joana levara um susto consigo mesma ao fazer o convite a Larissa, agindo por impulso e quebrando suas próprias normas.

Joana estava quase convencida de que não acalentava nenhuma intenção em relação a Larissa que não fosse apenas a vontade de ter alguém por perto para falar sobre amenidades e descontrair um pouco. Mas sentia em seu íntimo que seu interesse por aquela garota, impossível para ela de isolar e definir, mesmo sendo racional e analítica por natureza, não era apenas ocasional.

Larissa estava certa quando disse, no primeiro encontro, que Joana poderia, com facilidade, encontrar outras pessoas interessantes com quem conversar. Na universidade, onde passara a maior parte do tempo nos últimos doze anos, não faltavam colegas e até um ou outro pretendente a paquera, de quem Joana, por não se sentir atraída, mantinha educada distância.

Joana, apesar disso, dava-se bem com vários colegas e chegou a sair com um professor de Direito Constitucional algumas vezes, até descobrirem que não sentiam nada de especial um pelo outro. Entretanto, desde que a patrulha ideológica ganhou corpo entre os professores e estudantes, materializando-se na demissão sem justa causa de docentes classificados como esquerdistas, o ambiente se tornara insuportável. Os colegas deixaram de ser confiáveis e até o ar das salas e corredores parecia carregado de um cheiro ácido e pegajoso, quase imperceptível, porém onipresente, como se algum animal pequeno tivesse morrido e seu corpo apodrecesse num dos dutos de ventilação. Esse cheiro estranho que só Joana parecia sentir, somado à necessidade de censurar as próprias palavras e aos olhares inquisidores, deixava-a enjoada e ansiosa por estar longe dali.

Conversas sobre política e questões sociais foram banidas, e Joana teve certeza de que a estupidez se tornara, em larga medida, uma virtude aos olhos da instituição, quando presenciou vários colegas de ambos os sexos rirem ruidosamente de uma piada contada pelo pró-reitor administrativo na sala dos professores – aquela, tão antiga quanto cretina, em que alguém conclui afirmando que “mulher gosta mesmo é de dinheiro; quem gosta de pau duro é viado”.

No outro extremo da acadêmica barbárie, essa garota, Larissa, que Joana mal conhecia, parecia ter a capacidade de acalmar seu espírito e fazê-la sentir-se, como em outras épocas menos turbulentas de sua vida, tranquila e confortável consigo mesma. Desde os primeiros instantes daquela pesquisa maluca sobre marcas, enquanto observava Larissa morder a tampa da caneta ou tirar o cabelo dos olhos, Joana sentira que havia encontrado uma força poderosa, capaz de contrabalançar os aborrecimentos daquele mundinho que a envenenava um tanto a cada dia e, quem sabe, até mesmo de neutralizar seus efeitos.

Com uma espontaneidade quase infantil, sorriso bonito e semblante sofrido, Larissa fez cessar o burburinho interior de Joana nos pouco mais de quarenta minutos em que estiveram juntas. Joana desligou-se de tal forma dos assuntos que a incomodavam que, pela primeira vez em muitos meses, foi capaz de olhar para a beleza do fim de tarde em sua janela e admirar o pôr do sol entre os prédios distantes. A ideia de pagar pelo tempo de conversação, surgida de improviso, pareceu-lhe absurda e até um pouco vergonhosa – mas funcionou, e isso, afinal, bastava para aquele momento. Era Larissa que Joana queria por perto, mais do que qualquer outro ou a si mesma.


Seria compreensível e até esperado que o primeiro encontro entre Larissa e Joana as deixasse constrangidas, mas elas se sentiram tão à vontade e falaram com espontaneidade sobre tantos assuntos que lamentaram, embora não o revelassem, a agilidade com que os ponteiros do relógio se moveram das quatro às seis da tarde.

Larissa foi recebida com uma enorme bandeja de canapés, bolachas, café e chás variados, num apartamento que Joana passara horas limpando e arrumando. Antes de se encontrarem, porém, Larissa submeteu Joana e, de certa forma, a si mesma a um teste involuntário. E isso porque a tia que ficava com o bebê, de última hora e sem prévio aviso, comunicou à moça, já perto da hora do almoço, que tinha consulta médica agendada para aquela tarde.

Larissa não tinha outra pessoa a quem recorrer para deixar o bebê. Seu círculo de amizades, já bastante reduzido devido a sua natureza tímida e reservada, ficara ainda mais restrito depois que, contra a vontade dos pais, engravidou e decidiu ir morar com um colega de escola, no final do ensino médio. O isolamento se abateu como uma espécie de vingança quando o companheiro, tão logo percebeu o quanto é difícil trabalhar para pagar as contas e manter uma criança, pediu desculpas e voltou com o rabo entre as pernas para a casa dos pais, deixando Larissa com o bebê e uma pensão ridícula, que mal dava para ela pagar o aluguel de uma quitinete em um bairro popular.

Sem outra opção, Larissa procurou o telefone de Joana entre suas anotações de entrevistas e expôs sua dificuldade. Joana, alegremente envolvida com os preparativos para receber Larissa, não esperava por aquilo e ficou alguns segundos em silêncio. Andando em círculos pela sala, com o celular numa mão e a outra mão na cintura, tentava equacionar rapidamente o problema, mas não conseguia chegar a uma solução satisfatória.

– Joana, você ainda está aí?

– Estou. Me dê mais um segundo.

Joana foi à cristaleira que arrumara e limpara com um pano, por fora e por dentro e também peça por peça. Esperava poder contar a história de cada um daqueles objetos para Larissa. A cristaleira era uma espécie de museu de sua vida, com um objeto representando cada momento mais significativo. O sapo que dera para Larissa em outro daqueles rompantes também tinha, logicamente, uma história, e fora preciso aumentar o espaço entre as peças na prateleira onde ele estivera, para que a simetria entre elas não se perdesse.

– Joana?

– Traga o bebê.

– O quê?

– Venha e traga o bebê – resolveu Joana, espantando-se com a própria resposta.

Essa forma impulsiva de agir era nova para Joana e ela tinha a impressão de que apenas Larissa, em todo o universo de pessoas com quem convivera, tinha o poder de provocar esse tipo de atitude. Um pouco aflita, embora ainda ansiosa pelo encontro, Joana continuou a arrumação, e quando Larissa, horas mais tarde, passou pela bela porta laqueada com seu bebê em um carrinho, Joana se forçou a perguntar:

– Isso é algum tipo de teste?

O sorriso de Larissa se apagou por um instante.

– Não, Joana. Eu juro. Minha tia…

– Não precisa dizer mais nada – interrompeu Joana, com ar amistoso. – Entre. Então esse é o bebê. Que linda criança! É menino ou menina?

– Menina. O nome dela é Carolina.

– Entre, Larissa. Vamos conversar e tomar café enquanto a Carolina dorme, e se ela precisar de alguma coisa, fique à vontade para cuidar dela enquanto conversamos.

Larissa entrou e empurrou o carrinho para o cantinho próximo da janela. Sentaram-se e desandaram a falar como duas velhas amigas que não se veem há muito tempo. Carolina era como a mãe, calma e alegre. Acordou, tomou a mamadeira que Larissa trouxera numa bolsa térmica e ficou quieta no carrinho, brincando com o sapo que Joana lhe dera.


Sobre o que conversavam aquelas mulheres em seus encontros semanais? Seria mais fácil dizer sobre o que não conversavam. Basicamente, Joana se recusava a falar sobre a universidade, que se tornara uma fonte inesgotável de pequenas e grandes humilhações, e sobre seu casamento de um ano e meio – portanto, frustrado –, aos 24 anos, com um rapaz que conhecera numa festa de aniversário.

Numa das poucas ocasiões em que citou o ex-marido, Joana disse que ele só servira para manchar seu currículo e para ensiná-la a selecionar melhor as amizades. Citando uma expressão que ouvira no teatro – se não estava enganada, na peça “Gota d’água”, de Chico Buarque e Paulo Fontes –, lamentou que o marido, durante todo o período em que estiveram juntos, dormisse “com um pé fora da cama”, sempre à espera de outra mulher disposta a transar com ele.

No mais das vezes, Joana e Larissa contavam casos engraçados ou falavam de coisas que as fascinavam. Certa vez, passaram duas horas especulando sobre a vida em outros planetas e viagens no tempo, assunto que as intrigava em particular. A Via Láctea, disse Larissa, citando um documentário que vira na TV, podia estar pontilhada de planetas habitados por seres inteligentes, mas eles talvez jamais conseguissem vencer as distâncias inimagináveis entre os sistemas solares para fazerem-se uma visita. Joana era da teoria de que a vida extraterrestre não devia ser tão comum assim, pois, como observou, não basta haver água em um planeta para que uma civilização floresça. “São tantos os requisitos… A existência de uma lua grande como a nossa, por exemplo, serve para estabilizar a rotação do planeta, evitando um movimento pendular exagerado e variações extremas de temperatura. A camada de ozônio funciona como um filtro contra a radiação do sol, que é mortal.” Mas Joana acreditava, sim, que devia haver ETs em alguma parte, ou talvez que os extraterrestres, encontrando uma forma de driblar as distâncias de milhares ou milhões de anos-luz, já estivessem entre nós.

– Tudo é possível. Por mais que estudemos, o volume de informações que ainda não conhecemos é infinitamente maior do que aquilo que imaginamos saber. Sem contar que a Ciência passa por constante revisão. Até uma parte do século 20, o ser humano acreditava que o Universo se resumia à Via Láctea. Só nos anos 1920 os astrônomos começaram a perceber que algumas manchas avistadas no céu eram aglomerados de estrelas, por vezes muito maiores que a Via Láctea. Hoje falam em 100 bilhões a 200 bilhões de galáxias no Universo observável, mas sabem que o número de galáxias é muito maior, talvez infinito.

As conversas, muitas vezes, começavam em algo ameno como música, ou gastronomia, ou civilizações antigas – uma obsessão de Joana – e desembocavam no amor, esse enigma eterno, quase sempre tão grande e certamente mais inexplicável que as galáxias. E, como Larissa falasse de si com mais facilidade, Joana veio a saber que seu primeiro homem, o pai de Carolina, era agora, para ela, menos que um estranho.

– Você o amava quando ficaram juntos?

– Claro! Eu larguei tudo por ele. Enfrentei minha família. Amava perdidamente.

– Então o amor, de certa forma, foi para você apenas uma palavra de quatro letras.

– Você e essa história de quatro letras!

– Como está seu coração hoje?

– Eu desencanei do carinha que estava a fim. Ele só queria sexo, Joana. Nós mulheres ficamos numa enrascada. Se não dormimos com o cara, não temos nenhuma chance. Mas, se dormimos, isso também não significa que ele ficará com a gente.

– Quatro letras.

– Pode ser, sim, como tem acontecido comigo, que “um” amor se desgaste com o tempo e se torne apenas quatro letras sem nenhum significado. Mas “o” amor é maravilhoso, Joana. Viver sem amor deve ser algo muito parecido com a morte, ou pior.

Joana assentiu com um sorriso. Era exatamente dessa forma que ela pensava. E, embora estivesse meio de birra com as pessoas em geral, também acreditava no amor com uma das poucas forças capazes de fazer-nos sentir que a vida vale a pena e tem algum sentido.

– Você conhece Daniel Johnston? – Joana perguntou por perguntar, enquanto apanhava o celular e procurava uma música no YouTube. – É claro que não conhece, ele não é do seu tempo. É um cara meio maluco, que compõe uns negócios geniais. Esta é a canção mais conhecida dele. Diz que o amor verdadeiro vai encontrar você no final, mas que você precisa estar em busca dele e sair para a luz, ou ele não a reconhecerá. Vou tocar pra você.


Semana após semana, as tardes de terça-feira viram nascer uma amizade. Joana contou a Larissa a história de cada um dos objetos da cristaleira, e Larissa teve uma surpresa ao saber que o sapo, aparentemente o único ser na Terra capaz de acalmar Carolina quando estava irritada ou com fome, também tinha um passado. Ele fora comprado pelo marido-relâmpago de Joana para o bebê que ela deveria ter. Mas Joana sofreu um abordo espontâneo e foi informada por mais de um médico que, por estes e aqueles motivos, uma nova gravidez seria de alto risco para ela e para o bebê. “A fábrica faliu antes de abrir”, pensou Joana com seu sarcasmo que às vezes era insuportável.

A impossibilidade de ter filhos foi um pretexto para jogar o marido infiel no colo de outras mulheres, até que Joana, em suas próprias palavras, deu-lhe “um pé na bunda”, livrando-se com grande alívio daquela vidinha de aparências e fingimentos em que havia se metido.

Ficou a lembrança da gravidez, que fazia do sapo um brinquedo muito especial.

– É certo que meu bebê nasceu morto. Mas as pessoas não entendem que eu tive um filho, Larissa. Durante alguns meses maravilhosos e iluminados, ele viveu dentro de mim.

Às vezes Larissa levava Carolina para os encontros. Às vezes, quando a tia estava bem-humorada, o bebê era deixado sob seus cuidados. A simpatia e o respeito da tia de Larissa por Joana cresceram na medida em que ela se convenceu de que a professora era uma boa influência para a sobrinha e que parte dos R$ 300 semanais passou a ser usada para fazer a feira e pagar despesas da casa.

Uma tarde, às 15h58, Larissa apertou o interfone e Joana, pela primeira vez, não atendeu. A surpresa foi tão grande que Larissa ficou um tempo parada diante da porta de ferro, tentando imaginar se o interfone estava quebrado ou coisa parecida. Atravessou a rua e pôde ver que a janela do quinto andar, quase sempre entreaberta, estava fechada. Ligou para Joana, mandou mensagens pelo celular, mas não teve retorno. Larissa pensou então que Joana poderia ter sofrido um acidente ou um AVC. Apertou o interfone do apartamento ao lado – como era mesmo o nome da moradora? – e perguntou a dona Maria Helena sobre sua vizinha de andar. A mulher conhecia Larissa da entrevista e de alguns encontros no elevador, mas foi um pouco seca ao falar sobre Joana:

– Eu não sei da vida dessa professora. Você a tem visitado, que eu sei. Você é esquerdista também? Dizem que ela é comunista e que perdeu o emprego por conta disso. De toda forma, faz dias que não a vejo. O que posso fazer é liberar a entrada para você ir até o apartamento dela – e, cortando o “muito obrigada” de Larissa logo nas primeiras sílabas, desligou o interfone.

O mecanismo da porta liberou a entrada e Larissa esperou impaciente pelo velho elevador. Carolina, desta vez, ficara com a tia. Quando Larissa saiu do elevador, deu de cara com dona Maria Helena, que esperava na porta de seu apartamento.

– Eu acho que ela está aí dentro, mas, se estiver, está trancada há dias. Não vejo essa porta se abrir, nem sinal de vida, desde quinta ou sexta-feira.

– Obrigada por me deixar subir, dona Maria Helena – disse Larissa, apertando a campainha de Joana repetidas vezes. – Ah, e só uma correção. Nós não somos comunistas. Mas se fôssemos de esquerda, qual o problema? Este ainda é um país livre, não é? Ou aqueles trogloditas já rasgaram a Constituição?

– Sejam o que quiserem. O problema é de vocês – gesticulou a velha, já de costas para Larissa e puxando a porta atrás de si.

Larissa tentou a campainha mais algumas vezes. Depois, como não havia resposta, resolveu chamar Joana, batendo de leve na porta e erguendo a voz o suficiente para ser ouvida lá dentro.

– Joana, você está aí? Por favor, me deixe entrar. Eu soube que você foi despedida. Foi melhor para você. Aquela universidade ia acabar deixando você doente dos nervos.

Passaram-se alguns minutos sem resposta. Larissa estava assustada e não cogitava a ideia de desistir.

– Joana, eu sei que você está aí. Se a conheço bem, deve ter tomado Rivotril e está sonolenta. Certamente está deprimida e não quer ver ninguém. Mas saiba que eu não vou embora enquanto você não me deixar entrar e conversar com você. Se preciso, vou sentar aqui fora e esperar até que você abra esta porta.

O apelo, desta vez, deu resultado. Larissa ouviu ruídos no apartamento. Finalmente, as fechaduras se abriram e a corrente de filme americano foi removida. A porta ficou entreaberta e, na penumbra da sala de cortinas fechadas, tudo o que Larissa pôde ver foi uma silhueta de cabelos emaranhados e pés descalços. Trajando uma calça velha de moletom e enrolada em um grosso cobertor, Joana lembrava mais um daqueles fantasmas que perambulam pelo Centro em busca de crack do que a mulher elegante e cheia de energia que costumava ser.

– Entre. Não acenda a luz.

– Você comeu alguma coisa?

– Não tenho fome, Larissa. Não quero comer, nem falar. Venha ficar comigo em silêncio.

Larissa achou melhor não contrariar a amiga. Joana fechou a porta enquanto Larissa caminhava até a namoradeira.

– Posso abrir a janela?

– Não. Por favor. O escuro me acolhe. E vamos ficar em silêncio. Não tenho nada pra dizer.

Larissa sentou-se na namoradeira e Joana veio sentar-se ao seu lado. Estava frio e Joana pôs os pés sobre o sofá, enfiando-se toda no cobertor. Larissa permaneceu imóvel ao lado de Joana, sem saber exatamente o que fazer.

Em todos aqueles meses, as mulheres respeitaram o acordo feito no primeiro dia. Nada de contatos físicos. Apenas beijinhos de oi e tchau. Mas esta era uma situação diferente. O vidro da cristaleira estava trincado. Na penumbra da sala, Larissa pôde ver papéis picados por todo o piso de tacos e sobre o tapete. Na mesinha de centro, havia caixas de remédio, duas ou três xícaras com restos de café ressecado no fundo e nenhum traço de comida.

Joana começou a chorar sem olhar para o lado.

– Aqueles filhos da mãe me chutaram pra fora, Larissa.

A jovem então resolveu quebrar as regras que ela mesma havia criado. Acariciou com a mão esquerda os cabelos de Joana e passou o braço por trás dos ombros da amiga. Joana deixou-se tombar suavemente para o lado de Larissa, que a puxou para si. Agora a cabeça de Joana estava no colo de Larissa. A moça manteve o braço esquerdo sobre o corpo de Joana e continuou a acariciar seus cabelos com a mão direita.

– Joana, aquilo já estava podre e você não suportava estar lá dentro. Não havia mais lugar pra você lá, e você sabe disso. Você vai se ajeitar sem dificuldade, porque é uma pessoa dinâmica, tem uma ótima formação e é ultracompetente. Pense assim: não foi você que perdeu o emprego. Foi o emprego que perdeu você.

Não sei dizer quanto tempo as duas ficaram nessa posição, quase como uma Pietá de carne e osso. Larissa deu um jeito de apanhar o celular e enviar uma mensagem à tia, para informá-la de que surgira um imprevisto e talvez não pudesse voltar.

Lá pelas tantas, Joana falou com voz quase sumida:

– Larissa, não vou mais poder pagar você.

Larissa respirou fundo e se controlou para não ralhar com Joana. Em várias ocasiões tentara convencer a amiga de que não precisava mais pagar pelas conversas, mas Joana sempre empurrava o dinheiro para suas mãos, dizendo que era para ajudá-la com o bebê e que não lhe faria falta. Larissa procurou escolher bem as palavras, pois sabia o quanto Joana estava machucada.

– Joana, há muito tempo eu não venho aqui pelo dinheiro, e você sabe disso. Acredito e espero que tenhamos nos tornado amigas em todos esses meses de convivência. As terças-feiras são dias alegres para mim, que eu espero com ansiedade, porque sei que virei pra cá e passarei ótimos momentos com você. Então, por favor, não seja isso um motivo a mais pra você ficar triste, porque eu gosto de você e, aconteça o que acontecer, estarei sempre ao seu lado.

Joana ergueu-se com os olhos mais arregalados deste mundo. As duas olharam-se longamente, como se tivessem sido tocadas por alguma forma de iluminação ou inspiração divina.

Larissa e Joana então se abraçaram. Um abraço longo e calmo e apertado e carinhoso, sem pressa de chegar ao fim. A noite caiu suavemente, empurrando para longe a luz do sol com suas certezas absolutas. E as estrelas, que esperavam ansiosas por aquele momento, finalmente puderam brilhar.

Sorocaba, agosto de 2019

Imagem de Felix Mittermeier por Pixabay (montagem)

O amor verdadeiro encontrará você, afinal

“True love will find you in the end” é a canção citada por Joana. Composta pelo músico e cantor norte-americano Daniel Johnston, a canção se tornou mais conhecida do público brasileiro graças ao filme argentino “Medianeras, Buenos Aires na Era do Amor Virtual”, de 2011. Daniel Johnston é uma lenda viva do rock. Nascido em 1961, foi diagnosticado com esquizofrenia e transtorno bipolar. Grande parte de sua produção musical foi registrada em fitas K7 que ele gravava uma a uma para dar aos amigos, até que foi descoberto pela MTV. Sua vida foi contada no documentário “O Diabo e Daniel Johnston”, de 2006, infelizmente indisponível na Netflix e YouTube. Ouça abaixo a música que inspirou o título desta parte do conto, citada pela personagem.

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