Woodstock: quando as paredes dos nossos ouvidos foram derrubadas

FREDERICO MORIARTY (Pipocando La Pelota) – Vários artigos têm demonstrado uma visão crítica a Woodstock. Desorganizado, emaconhado, despolitizado, artistas sem consciência, fiasco financeiro e nada do mais importante: a simbologia da música e do amor. Nikki e Bob eram dois jovens de 20 e poucos anos em 1969. Eles e três amigos foram a Woodstock. Em meio ao show do Jefferson Airplane, debaixo de chuva e cansados, os dois se abraçam com paixão e amor. A imagem andou pelo mundo nos últimos 50 anos (é a foto de destaque e que abre esse artigo). As roupas coloridas e vivas dos hippies e da contracultura, o amor puro, o rock’n’roll, a paz e a esperança.

Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs e Gregory Corso são os expoentes da geração beatnik, nascida na metade da década de 50 nos Estados Unidos. Críticos contumazes ao “sonho americano” e ao american way of life, os beatniks trouxeram a vida sem rumo e muita estrada, as drogas alucinógenas, um certo orientalismo e uma criatividade ímpar para as artes. A última vanguarda literária do mundo até hoje.

Foi com Miles Davis que eles tiveram a ideia da escrita espontânea, em seus longos e desconexos solos. Kerouac adaptou um rolo de papel de mais de 40 metros e escreveu On the Road (na íntegra) em três semanas. Acreditava que o mero ato de tirar uma folha da máquina de escrever e colocar uma nova em branco já seria suficiente para perder a inspiração original. A escrita havia de ser como um solo de Miles Davis.

Allen Ginsberg compôs o poema da geração Uivo (na íntegra o poema) também numa tacada só: 30 páginas de metáforas, metonímias e versos autobiográficos livres. Sujos, muito sujos. O oposto da maravilhosa família tradicional norte-americana de classe média. Trumman Capote, autor de um livro medíocre baseado num crime “A sangue frio”, falava que os beatniks não eram escritores e, sim, datilógrafos.

Miles Davis: fonte de inspiração da estética beatnik

Os beatniks foram os pais dos hippies. Estes apareceram nos anos 60. Levaram as ideias da contracultura ao extremo. Queriam não só a crítica ao establishment e uma vida no udigrudi. Era necessária uma nova ordem de Aquário, trazendo a paz e o amor. Os hippies defendiam o amor livre, o nudismo, foram os primeiros vegetarianos, acreditavam que as drogas alucinógenas e o haxixe nos permitiriam atingir estados superiores da alma e nos aproximar de Deus (os deuses). Defendiam uma economia cooperativa, eram meio ambientalistas e toda uma cultura alternativa, influenciada pelo orientalismo (budismo, confucionismo, xintoísmo, hinduísmo).

Não eram politizados. Isto coube aos Yippies, o Partido Internacional da Juventude, fundado em 1967 por Abbie Hoffman e Jerry Rubin e ao Partido dos Panteras Negras, os Black Panthers, fundado um ano antes. Hoffman escreveu um livro naquela época e deu o nome “Roube este livro”. O título não era brincadeira, ele defendia que pra derrubar o capitalismo era importante minar suas forças econômicas. Que os leitores entrassem nas livrarias e surrupiassem o livro.

A bandeira negra, rubra e verde do Partido Internacional da Juventude

Se os beatniks eram fãs de blues e jazz, os hippies ouviam rock’n’roll. Uma música subversiva, nascida entre a comunidade negra e cantada por adolescentes e jovens sem nenhum compromisso com uma vida pacata. Nos primeiros anos, os roqueiros compunham musiquinhas melosas, curtas, falando de amor eterno. Levavam as meninas e moças à histeria. “Ame-me sim”, ” Ela me ama” eram repetidos por Beatles e Rolling Stones.

Mas na segunda metade dos 60 a estética começou a mudar. Bandas como Led Zeppelin, Jefferson Airplane, Beach Boys (na segunda fase), The Doors, Pink Floyd, The Who, além de artistas como Bob Dylan, Joan Baez, Jimi Hendrix e Janis Joplin, começaram a transformar a música. Letras longas, alucinógenas e alucinadas, críticas políticas, orientalismo, novas formas de amor, muitas metáforas e alegorias. O Rock amadurecia.

Os Beatles entraram em parafuso, foram atrás de um guru indiano, fizeram o álbum meio experimental Revolver, depois o revolucionário Sargent Peppers. Os Rolling Stones ficaram dois anos longe dos palcos, vieram passar férias em Matão, no interior de São Paulo, fugindo da polícia após brigas no réveillon carioca de 1968. Na Bahia, assistiram ao sincretismo religioso dos católicos com o candomblé. Escreveram Sympathy for the Devil. Novos públicos eram necessários.

Os Stones e o demônio

Junte toda essa atmosfera cultural dos anos 50 e 60 com os protestos contra a escalada do Vietnã e a tensa situação política nos Estados Unidos e no mundo, temos o cadinho cultural de Woodstock. Beatniks, Hippies, Yippies, Black Panthers, Blues, Jazz, Rock, Nudismo, Amor Livre, Anti-Psiquiatria (Timothy Leary usava LSD para liberar a mente das neuroses), Orientalismo, Vegetariasmo e Ecologia são os elementos da Contracultura.

Em 1969, os Estados Unidos possuíam 650 mil soldados no Vietnã e gastavam US$ 20 bilhões ao ano no conflito. Despejaram entre 1968 e 1970 mais de 70 milhões de toneladas de litros de napalm e agente laranja nos perigosíssimos vietnamitas. Para se ter uma ideia dos números absurdos: no auge da guerra do Afeganistão, após os ataques do World Trade Center, havia 280 mil soldados americanos na Ásia Menor. Atualizados os valores, o Vietnã custou US$ 2 trilhões aos cofres americanos (equivalente a um PIB brasileiro). A quantidade de armas químicas descarregadas sobre o Vietnã superaram tudo o que Hitler utilizou na 2ª Guerra.

Os perigosíssimos vietnamitas

Se o mundo vivia em meio à Guerra Fria, os Estados Unidos atravessavam tempos de violência. Assassinatos de J.F. Kennedy, Robert Kennedy, Malcom X e Martin Luther King. Lutas pelos direitos civis, conflitos raciais, retorno da Klu Klux Klan, feminismo, comunismo e, claro, os protestos estudantis que sacudiram o mundo em Maio de 1968. No fim dos anos 60 o mundo efervescia.

Após um anúncio publicado no New York Times e no Wall Street Journal dizendo ” jovens com capital ilimitado procuram parceiros”, Michael Lang, John Roberts, Joel Rosenman e Artie Kornfeld formaram o grupo que organizaria o maior festival da história musical. Max Yasgur, um fazendeiro da cidadezinha de Bethel, alugou o local por US$ 45.000 (ou US$ 300 mil, nos dias de hoje, incluindo um seguro de destruição).

As maiores bandas de rock da época foram convidadas. The Doors e Jethro Tull desistiram por medo da desorganização. Os Beatles estavam em processo de separação. Led Zepellin desistiu na última hora. Bob Dylan, que, anos depois, se tornou o primeiro compositor popular a ganhar o Nobel de Literatura, recusou o convite alegando despolitização dos participantes.

Richie Havens em Woodstock, há exatos 50 anos

Os shows iriam acontecer no fim de semana de 15, 16 e 17 de agosto de 1969. Mas as chuvas constantes adiaram várias atrações. Jimi Hendrix entrou no palco somente às 8h30 da segunda feira, 18 de agosto, com pouco mais de 30 mil pessoas nos gramados encharcados da fazenda. Hendrix e Bob Dylan, por sinal moravam no vilarejo que ficava a 70km dali: o modesto Woodstock, que eternizou seu nome com o festival.

Os organizadores alegam que tiveram um prejuízo brutal e tiveram de pagar contas por 19 anos. Deveriam fazer uma pesquisa mais aprofundada do “prejuízo”. Os ingressos arrecadaram US$ 2,5 milhões ou US$ 16 milhões em 2019, todos com vendas antecipadas. Os cachês pagos aos 31 artistas custaram US$ 150 mil (ou US$ 1 milhão, em 2019), apenas 6% do total arrecadado. O suposto prejuízo vem seguido do número de penetras: 350 mil pessoas entraram sem pagar. No ano seguinte, o filme documentário de 3h30 foi vendido para as grandes redes de TV, aumentando a renda do evento.

Vale a pena assistir a algumas apresentações até hoje. No primeiro dia, destaques para Richie Havens e seu violão e a cantora folk de protesto Joan Baez. No sábado, 16 de agosto, Jefferson Airplane, Grateful Dead, Santana, The Who e Janis Joplin. No domingo, 17, as interpretações de Johnny Winter, Crosby, Still, Nash & Yong são monumentais. Nesse mesmo dia, a interpretação de Joe Cocker, do clássico dos Beatles with a little help from my friends, é um dos maiores virtuoses de toda a história do rock.

E para encerrar, claro, Jimi Hendrix, com direito a um protesto contra a Guerra do Vietnã ao tocar de forma dissonante Star spangled banner, o hino marcial norte-americano. Essa é decerto a maior homenagem aos 50 anos de Woodstock: assistir ao documentário e ouvir as suas mágicas interpretações.

Joe Cocker e o espírito de uma época

Menos de cinco meses depois, Altamond na Califórnia mata o sonho com a violência sem fim dos Hells Angels no festival organizado pelos Rolling Stones. Mortes, assassinatos, overdoses, atropelamentos. A paz e o amor jogados no ralo do velho e abandonado autódromo americano. Entre julho de 1969 e início de 1971, a morte de overdose dos four jeis, abala o Rock. Brian Jones (ex-Stones), Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison desapareceram precocemente. Artistas de talento e expoentes do rock deixando lacunas.

Jimi Hendrix, o rei de Woodstock

E, por fim, 1970 marca o ocaso da maior banda da história: os Beatles. John Lennon, o vocalista da banda (assassinado dez anos depois, em dezembro de 1980), profere o epitáfio logo após os eventos do fim dos anos 60 e começo dos 70: the dream is over!

Woodstock é um símbolo de tudo aquilo que sonhavam os jovens (e alguns adultos) dos anos 60: paz, amor e rock’n’Roll. Uma alegoria de meio milhão de pessoas tomando chuva, fumando haxixe sossegadamente e fazendo amor ao ar livre em contraponto a um mundo caótico, violento, consumista e conservador. Contra as flores, o canhão. Um mundo em que as paredes tinham ouvidos, mas que se tentou abrir as paredes dos nossos ouvidos.

Um mundo em que o sonho da paz e amor era forte. Lennon, tristemente, acreditava no término da esperança. Cinquenta anos depois, Nikki e Bob permanecem juntos, talvez para nos lembrar que três dias são muito pouco para o amor.


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