
Rubens Nogueira
(Texto publicado originalmente no jornal Nosso Tempo, semanário de Foz de Iguaçu, edição de 09 a 15/11/90, página 04. Mais 49 crônicas seguiram-se a esta.)
Rapaz pobre, ambicioso, autodidata, lia muito. Sempre leu muito. Trabalha desde tenra idade. Com carteira assinada, quarenta e três anos. Quando aposentou-se aos sessenta e três, perguntado o que iria fazer, com todo o tempo a seu dispor, respondeu: ler e escrever…
O autor do texto que segue está há tempo disposto a manter uma coluna semanal neste jornal, sob o título isto mais aquilo, escolhido por ele. Mas ele prefere esconder o nome e usar apenas as iniciais (R.N). Por quê? Não se sabe. Mas vai assim mesmo. E, por esta vez, o artigo é posto à seção Tribuna. Pretendemos, porém, abrir um espaço fixo, especial para o R.N. E para isso sugerimos que escreva um texto com no máximo 40 linhas, por razões de racionalização do espaço. Valeu? Então vamos em frente.
Gostava da ideia de um trabalho em andamento, “work in progress”, o qual, tendo um planejamento completo desde o início, fosse se desenvolvendo paulatinamente. Como o construtor de uma casa, sem o dinheiro suficiente para terminá-la de vez. Hoje, uma parede, amanhã uma porta, um assoalho, e assim por diante. Suas dificuldades, entretanto, eram de todas as ordens.
Sonhava desde tenra idade com a glória literária. Leu muito. Escreveu sempre. Em conversas, muitas vezes surpreendia com imagens, comparações, citações recentes e antigas e uns e outros o estimulavam. “Por que não escreve um livro?” Ele mesmo acalentou essa ideia com muita força. Não basta querer. É preciso poder. “Um indivíduo só deve escrever se sentir que morre se não o fizer.” Ele não morreria por isso. E o livro nunca saía. Não encontrava o estilo, o “santo não descia”, a inspiração… A preguiça invencível, os mil pretextos para adiar, adiar, adiar sempre.

Tentou o caminho da objetividade, parágrafo curtos, tal uma reportagem. Não gostou. Releu Thomas Mann e deliciou-se com as minuciosas descrições da “montanha mágica”. Seria assim que contaria a sua história. Com todos os detalhes. Seu assunto estava ali, pronto e acabado. Era um grande enredo para qualquer indivíduo explorar, mormente ele, que vivera intensamente, que se consagrava por inteiro e conhecia os meandros daquele gigante de pedra e aço (*).
Faltava-lhe o principal – um arquivo de referência, as famosas notas. Tirar tudo da memória poderia ser um caminho perigoso. Se escrever é difícil, tomar notas é muito mais. Requer método, disciplina, força de vontade. Lia Joyce e babava de inveja. Aquele sim era um gênio, um determinado. Onde estivesse, em qualquer pedaço de papel, num simples guardanapo, registrava ideias, frases, lembranças para em qualquer tempo resgatar o momento em que aquilo foi escrito. Mann, Joyce, Miller, Veríssimo, Montello, Machado, Sabino, Rubem Braga, Hardy, Afrânio Peixoto, Alencar, Eça, Hemingway, Homero Homem, Gide, Morgan, Camões, Cecília, Drummond, Tolstoi, Balzac, Dostoievsky, Otoniel, Graciliano, Lins do Rego, Guilherme de Almeida, Borges, Camus, Pessoa, Nabuco, Arinos, Carlinhos, Pongetti, Joel, Lacerda, Castelinho, Musset, Paulo de Tarso, Barth, Lhosa, Lessa, Francis, Castro Alves, Bilac, Unamuno, Loti, Lamartine, Steinbeck, Maugham, Papini, Greene, Amado, Gabeira, Rilke, Beauvoir, Twain, Corção, Hansun, muitos mais, santos de especial devoção, espíritos companheiros.
Ser como eles, viver como eles, quantas fantasias! Chegava a misturar sua pobreza com as pompas descritas naqueles livros mágicos. Ouvia os tambores de São Luiz, passeava de carruagem pela rua do latoeiro, marcava encontros em Belo Horizonte, acompanhava o voo da borboleta amarela e se extasiava com o esporro das cigarras nas tardes veranis da Cinelândia, caminhava para o mercado de Londres com gansos para vender, circulava pelos salões da velha república, certo de que a literatura era mesmo o sorriso da sociedade. Vivia como um índio, por entre as palmeiras do Ceará em busca de Iracema, buscava repouso e bem-estar nas serras portuguesas, enfrentava rinocerontes além do rio, entre as árvores, e se embebedava como doce vinho que escorria do corote nas praças de Pamplona.
Seguia, fascinado, as aventuras aéreas do menino de asas, acompanhava em recato os sombrios pensamentos gideanos, repetia, com adaptações, as detalhadas descrições do Sanatório de Davos-Platz, reconstituía as vinte e quatro horas de um dia qualquer, balbuciava expressões cruas e se imaginava “clochard”, contemplava do alto do megatério uma Porto Alegre imaginária.
Vagava pelos campos da Inglaterra, atormentado feito Piers, enfrentava os ventos, as ondas, as sereias, em busca de novas terras e “se mais houvera lá chegara”. Toda cachorrinha era a “Baleia”. E se “de tudo fica um pouco”, nesses devaneios restava uma secura na boca, um calor no rosto, uma angústia e aperto no coração, e, mesmo com tudo se evaporando no ar, como as bolhas de sabão, “tudo valia a pena”…
Loucura, paixão, desejos. A importância em transmitir ideias, pensamentos, mas de que se trata? Qual o objetivo? A noite pode vir no próximo segundo, suave, sem sofrimento – “Vien douce mort”…
Por que é tão mais fácil pensar? Tudo flui, como nos sonhos. Pôr no papel é que são elas. Tomar notas. Muitos anos depois a tarefa será factível. Cansaço físico. Lassidão. No fundo da cabeça o assunto. Quase pronto. Meu Deus, já se passaram quinze anos. Vai durar mil anos. Ou quarenta. Pensava: “não estarei aqui para ver”. Começou a caraminholar a história nos anos seguintes, não antes, bem antes, assim como se dominasse o tempo. A eternidade em suas mãos. “Time on my hands.” Era um compromisso sério, “not to be postponed”, e intransferível. Saber inglês, mas inglês da Inglaterra. Sempre quis. O professor lhe dava aulas em troca de trabalho de cobrar prestações do plano de poupança. As cartelas eram cor de rosa. Quem pagava os cinco paus observava o menino colar o selinho no quadradinho e uma prestamista, dizia, todas as vezes, você é muito engraçadinho. Era cansativo. Puxa vida: com dez para onze anos, queria mais era brincar, e as distâncias enormes, preferia ir a pé, às vezes o sol lhe queimava os miolos. Mas nas noites de aula compensava. Um dia, muitos anos depois, poderia dialogar com o ainda poderoso Henry Kissinger, ouvi-lo e entender: “Look Nancy, the engineer came to see you.” A mulher, pálida, muito alta, ainda com sinais da diarreia, mal sorriu agradecida. Ele não era engenheiro, mas para aquele homem famoso, as explicações, com tantos termos técnicos…
Por falar em inglês, onde andaria, viveria ainda aquele amigo, cinéfilo. Juntos assistiram mais de dez vezes o mesmo filme e se divertiam no “Rick’s Café” imitando os artistas: “Put that gun down. Put it down!” A estrela do filme ficou para sempre como símbolo da mulher amada, o nariz buscado e encontrado ali mesmo na cidade, sua dona transformada na musa daqueles anos dourados, amada em silêncio, para todo o sempre, amém! No mesmo filme, o casal do leste europeu exibindo para um patrício atônito, coloquialmente seus conhecimentos: ele para ela : “What’s watch?” – “Ten Watch.” Ele, admirado: “Such much?”
A longa amizade juvenil, interrompida por mais de quarenta anos, nesta bela manhã de sábado, na fronteira com Paraguai e Argentina, com rumor da passarada no quintal, volta essa amizade com todo o frescor dos verdes anos, e ao pobre homem só resta saudar a todos que se amam uns aos outros, e no recesso do seu coração e mente cantar a aleluia da vida, salve salve.
“Pauvre Lellan,
meu desgraçado amigo,
se tu soubesses
como estou contigo,
na noite deste
ano em que faz
cem anos que nasceste!”
Guilherme de Almeida
Nota do editor
(*) O autor foi relações públicas durante 15 anos de Itaipu Binacional, o “gigante de pedra e aço”, onde conheceu muitos chefes de Estado e o lendário secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger.
Imagem de Steve Johnson por Pixabay
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