
Sandra Nascimento
Como milhares de brasileiros puderam testemunhar com seus próprios olhos, na segunda-feira, 19 de agosto, uma cortina de fumaça cobriu várias cidades do Estado de São Paulo, incluindo a capital, assim como áreas dos estados do Mato Grosso e Paraná. A enorme nuvem pôde ser vista do espaço e foi registrada pela Nasa (1) em imagens de satélite. Por trás da extensa mancha, constatava-se a dramática realidade de se ter grande parte de uma floresta em chamas. Nada mais, nada menos do que significativos trechos da Floresta Amazônica.
A Amazônia já estava queimando havia semanas em decorrência do período que provoca queimadas, tanto que, no começo do mês de agosto, o governador do Amazonas declarou “estado de emergência” para a região. Coincidência ou não, os focos de incêndios surgiram justamente em áreas de reserva que alguns madeireiros tinham a intenção de desmatar.
“Nunca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”
John Donne (1572-1631), escritor e clérigo anglicano
Incêndios na Amazônia
Tem-se conhecimento de que a temporada de incêndio na Amazônia, devido ao clima, costuma ser de agosto a outubro, com pico acontecendo sempre no começo da segunda quinzena de setembro. Mas por que, desta vez, a fumaça chegou a escurecer o dia? Por que chegou a lugares surpreendentemente tão distantes? E por que, como divulgado pelas mídias locais e de vários pontos do mundo, alguns fazendeiros naquela região comemoraram o “Dia do Fogo”?
No meio das chamas, a imagem de um tamanduá-mirim tentando fugir de uma zona queimada na Amazônia ganhou as redes sociais e a imprensa internacional. A cena, registrada pelo fotógrafo Araquém Alcântara, revela um Brasil surreal e insensato, que não sabe preservar as suas florestas e que sequer se importa com as sanções que venha a receber contra o seu próprio agronegócio ou mesmo com possíveis ameaças à soberania sobre a Amazônia.

Única em tamanho e biodiversidade
Reconhecida como ambiente ecológico que guarda e conserva uma multiplicidade de espécies, a Amazônia, até o início das queimadas, era a única floresta preservada em tamanho e biodiversidade em todo o mundo.
Ultimamente, os trabalhos ali realizados pela comunidade científica mundial trouxeram conhecimentos que justificam os vínculos que devem existir entre florestas tropicais e seres humanos.
Especialistas em climatologia atentam para as ações negativas do homem sobre o clima. Desmatamentos e queimadas na região da Floresta Amazônica provocam a falta de umidade e a escassez de chuvas, inclusive para o Sudeste brasileiro.
Estudos atestam que, na medida em que essas áreas são queimadas ou desmatadas, o fenômeno de aquecimento global se intensifica e os processos ecológicos, que levaram anos ou até milhares de anos para serem construídos, são consequentemente desmontados.
A Ciência revela ainda que a floresta, assim como os nossos rios, trocam grandes quantidades de água e energia com a atmosfera. A água liberada pelas plantas e a água que os rios despejam nos oceanos influenciam diretamente no clima do planeta e na circulação das correntes oceânicas.
E assim, a natureza dá o exemplo de coexistência: de um lado as florestas mantêm o clima; de outro, o clima oferece a sobrevivência das florestas e rios.

“– Sim seu moço,
sou mar em medos,
mas rio…”(Rosa de Saron Morais, poetiza pernambucana)
Preservar a floresta, eis a questão
Para garantir ações de preservação da Amazônia, em 2008, o governo brasileiro criou o “Fundo Amazônia”, um projeto para captar investimentos nacionais e estrangeiros que pudessem patrocinar a realização de atividades de preservação da floresta. A iniciativa previa a arrecadação de verbas que fossem geridas pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).
Preocupados em atuar contra as mudanças climáticas do planeta e inibir o desmatamento desmedido, dois países – a Noruega e a Alemanha – colaboravam com o Fundo pró Amazônia. Juntos, representavam perto de 99% dos recursos repassados. E, até recentemente, tais verbas eram encaminhadas para projetos de universidades, governos estaduais e municipais e até alguns da iniciativa privada. Isso significava, por exemplo, o controle aos desmatamentos, o monitoramento e a gestão de florestas e o combate a incêndios, além da recuperação de nascentes. Basicamente, segundo constatado em informações do site do Ministério do Meio Ambiente, vários desses projetos colaboram com a gestão de 65% de terras indígenas na Amazônia.
Outros rumos
No início de agosto, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), anunciou que, em julho de 2019, o desmatamento na Amazônia atingiu uma área de 2.254,9 km², contra 596,6 km de julho de 2018. Se comparados, esses números revelam um aumento de 278% de devastação.
Desde que o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, assumiu a presidência do país, questões sobre a política ambiental começaram a mudar radicalmente. Em maio, o ministro do Meio ambiente, Ricardo Salles, chegou a afirmar para a imprensa que existiam irregularidades nos projetos do Fundo Amazônia. E, contrariando a opinião dos ambientalistas e pesquisadores, demonstrou intenção de usar o Fundo para indenizar desapropriações feitas nas áreas de terras protegidas.
Mas todas as partes envolvidas – ativistas, pesquisadores, Noruega e Alemanha – opuseram-se a tal atitude do ministro, alegando não haver indícios de irregularidades contábeis nos projetos e argumentando que tais mudanças dariam espaço para outros desmatamentos. Os vários entraves entre as partes, resultaram em medidas como a demissão do diretor do Inpe, Ricardo Galvão, e na retirada, pela Alemanha e Noruega, dos repasses enviados para o Fundo Amazonas.
A primeira a sair foi a Alemanha, cuja decisão demonstra “uma grande preocupação com o aumento do desmatamento da Amazônia brasileira”, conforme informou a ministra alemã do Meio Ambiente, Svenja Schulze, ao jornal “Der Tagesspiegel” – diário alemão, cujo escritório principal está situado em Berlim.
Combatendo os rumos totalitários do governo de Jair Bolsonaro para o Fundo Amazônia, Ola Elvestuen, ministro do Clima e Meio Ambiente da Noruega, afirmou que a retirada de seu país foi decidida “após o governo brasileiro efetuar as alterações na formação do Comitê Orientador do ‘Fundo Amazônia’, sem fazer as devidas consultas prévias”.

Um alerta que ecoa através dos tempos
Certa vez, um índio chamado Seattle, da tribo Suquamish, localizada no Estado de Washington/EUA, recebeu uma proposta do governo de seu país, sugerindo a venda da terra ocupada pela sua comunidade indígena. Em resposta ao presidente Franklin Pierce, ele escreveu uma carta que se tornou conhecida mundialmente como um manifesto ecológico. A autoria da carta atribuída ao chefe Seattle é contestada por algumas fontes, porém sua mensagem foi adotada mundialmente como referência para a preservação do planeta. Os Estados Unidos homenagearam o chefe Seattle dando seu nome a uma cidade do Estado de Washington em 1853.

“É possível comprar o céu ou vender o calor da terra? Essa ideia é estranha para nós. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como pode comprá-los? Cada pedaço desta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha de pinheiro, o grão de areia na praia, cada bruma nas densas florestas, cada clareira e cada inseto a zumbir, tudo é sagrado para o meu povo, porque a seiva que percorre o interior das árvores, leva em si a memória do homem vermelho.
Os mortos do homem branco esquecem a terra onde nasceram, quando empreendem as suas viagens entre as estrelas; ao contrário, os nossos mortos jamais esquecem esta terra maravilhosa, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs. Os veados, os cavalos, a majestosa águia, todos são nossos irmãos. Os picos rochosos, a fragrância dos bosques… O calor do corpo do cavalo e o do homem pertencem à mesma família. Assim, quando o grande chefe em Washington envia a mensagem manifestando o desejo de comprar as nossas terras, está pedindo demasiado para nós.
O grande Chefe manda dizer ainda que nos reservará um sítio onde possamos viver confortavelmente uns com os outros. Ele será então nosso pai e nós seremos seus filhos. Se é assim, vamos considerar a sua proposta sobre a compra de nossa terra, mas isto não é fácil, já que esta terra é sagrada para nós:
A límpida água que corre nos ribeirões e nos rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Se vendemos a terra, precisará recordar e lembrar aos seus filhos que ela é sagrada e que cada reflexo nas claras águas evoca eventos e fases da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz do pai do meu pai.
Os rios são nossos irmãos e saciam a nossa sede, levam as nossas canoas, alimentam os nossos filhos. Se vendermos a terra, deve lembrar e ensinar aos seus filhos que os rios são nossos irmãos, e que também são irmãos deles. E deve, a partir de então, dispensar aos rios o mesmo tratamento e afeto que dispensa a um irmão.
Nós sabemos que o homem branco não entende o nosso modo de ser. Ele não sabe distinguir um pedaço de terra de outro qualquer, pois é um estranho que vem de noite e rouba da terra tudo de que precisa. Ele não faz da terra sua irmã, mas sua inimiga. Depois de vencida e conquistada, ele vai embora à procura de outro lugar, deixando atrás de si a sepultura de seus pais e nem se importa. Mas a cova de seus pais é a herança de seus filhos! E ele a esquece.
O homem branco trata a sua mãe, a terra, e seu irmão, o céu, como coisas que se compram, como se fossem peles de carneiro ou contas brilhantes sem valor. Seu apetite ainda vai exaurir a terra, deixando atrás de si só desertos. E isso eu não compreendo.
O nosso modo de ser é completamente diferente do seu. A visão de suas cidades faz doer os olhos do homem vermelho. Talvez porque o homem vermelho é um selvagem e não compreende… Nas cidades do homem branco não há um só lugar onde haja silêncio, paz. Não há um só lugar para ouvir o desabrochar das folhas na primavera, o zunir das asas de um inseto. Mas talvez eu seja um selvagem que não pode compreender.
O vosso ruído insulta os nossos ouvidos. Que vida é essa onde o homem não pode ouvir o pio solitário da coruja ou o coaxar das rãs nas margens dos charcos e ribeirões ao cair da noite? Um índio prefere o suave sussurrar do vento esfolando a superfície das águas do lago ou a fragrância da brisa purificada pela chuva do meio dia, aromatizada pelo perfume dos pinhais.
O ar é inestimável para o homem vermelho, pois dele todos se alimentam. Os animais, as árvores, o homem, todos respiram o mesmo ar. O homem branco parece não se importar com o ar que respira. Como um cadáver em decomposição, ele é insensível ao mau cheiro. Mas, se vendermos nossa terra, deve recordar que o ar é precioso para nós, que o ar insufla o espírito e todas as coisas que dele vivem. O vento que deu aos nossos avós o primeiro sopro de vida é o mesmo que recebe deles o último suspiro.
Se vendermos nossa terra, deve conservá-la à parte, como sagrada, como um lugar onde mesmo um homem branco possa ir saborear a brisa aromatizada pelas flores dos bosques.
Por tudo isso, consideraremos a sua proposta de comprar a nossa terra. Se decidirmos aceitar, poremos uma condição: o homem branco terá que tratar os animais como se fossem seus irmãos. Sou um selvagem e não compreendo outro modo de vida. Tenho visto milhares de bisontes (3) apodrecendo nas pradarias, mortos a tiro pelo homem branco de um comboio em andamento. Sou um selvagem e não compreendo como o fumegante cavalo de ferro pode ser mais importante que o bisonte que caçamos apenas para sobreviver.
Que será dos homens sem os animais? Se todos os animais desaparecem, o homem morrerá de solidão espiritual, porque o que suceder aos animais afetará os homens, tudo está ligado. Por isso, deve ensinar a seus filhos que o solo que pisam é a cinza de nossos avós. E para que respeitem a terra, ensina que ela é rica pela vida dos seres de todas as espécies. Ensina o que nós ensinamos aos nossos filhos: a terra é a nossa mãe. Quando o homem cospe sobre a terra, cospe sobre si mesmo.
De uma coisa temos certeza: a terra não pertence ao homem branco; o homem branco é que pertence à terra. Todas as coisas estão relacionadas como o sangue que une uma família, tudo está associado. O que fere a terra fere também aos filhos da terra.
O homem não tece a teia da vida, é antes um de seus fios. O que quer que faça a essa teia, faz a si próprio. Nem mesmo o homem branco, cujo Deus passeia e fala com ele como um amigo, não pode fugir ao destino comum.
Por fim, talvez, e apesar de tudo, sejamos irmãos.
Mas uma coisa sabemos, e isso talvez o homem branco venha a descobrir um dia: o nosso Deus é o mesmo Deus. Hoje, pensa que ele é só seu, tanto quanto quer possuir a terra e não pode. Deus é o Deus do homem e sua compaixão é igual tanto para o homem branco quanto para o homem vermelho e esta terra tem um valor inestimável para ele. Ofender a terra é insultar o seu criador.
Devo dizer também que os brancos acabarão um dia, talvez mais cedo do que todas as outras tribos. Contaminem os seus rios e uma noite morrerão afogados nos próprios resíduos.
Contudo, procurem caminhar para a destruição iluminados pela força do Deus que os trouxe a terra e, por algum desígnio especial, deu-lhes o domínio sobre ela e sobre o homem vermelho.
O destino é um mistério para nós, não conseguimos compreender o dia em que último bisonte for dizimado, os cavalos selvagens domesticados, os recantos secretos das florestas invadidos pelo odor do suor de muitos homens e a visão das colinas brilhantes bloqueada por fios falantes.
Onde estará o matagal?
Desapareceu.
Onde estará a águia?
Desapareceu.
Termina a vida, começa a sobrevivência.”
Foto principal
Cláudia Lira, céu de Sorocaba em 19/8/2019, por volta de 14h
Notas
(1) Nasa, sigla do inglês National Aeronautics and Space Administration (Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço)
(2) Vídeo “Índia chora ao ver floresta em chamas na Amazônia”
Fonte: observatóriomanaus.com
(3) O mesmo que bisão, grande mamífero da família dos bovídeos.
Referências
Ministério do Meio Ambiente (https://www.mma.gov.br/apoio-a-projetos/fundo-amazonia.html); O Estado de São Paulo; revista Veja; O Globo; Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (site); https://www.brasil247.com/; https://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/areas_prioritarias/amazonia1/bioma_amazonia/porque_amazonia_e_importante/
Excelente 👏👏
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