Teresa Neele, a sul-africana feliz

PEDRO CADINA – O carro preto de dois lugares, com cabine coberta e faróis acesos estava abandonado, atravessado no limite de uma trilha deserta. Eram aproximadamente 8h da manhã nebulosa de 4 de dezembro de 1926, em Newlands Corner, na Inglaterra, e o jovem cigano George Best estranhou a cena e chamou a polícia. O local, a poucos metros de córrego Tillingbourne, ficava longe das fabricas de papel e curtumes na área e a mais de 3 quilômetros da cidade mais próxima, Shere. No interior do veículo marca Morris Cowley havia apenas uma mala com roupas e uma carteira de motorista no nome de Agatha Mary Clarissa Miller Christie

Um mistério de Agatha Christie que nem Hercule Poirot, Miss Marple, Conan Doyle ou Dorothy L. Sayers conseguiram resolver.

Naquele momento de sua carreira, Agatha Christie, com seis romances publicados, já era um nome familiar aos britânicos. Apontada com a possível sucessora de Arthur Connan Doyle, agora se dedicando ao espiritismo, a autora havia apresentando aos seus leitores o detetive almofadinha Hercule Poirot em 1920 no seu livro de estreia O misterioso caso de styles. Alguns meses antes, lançou O assassinato de Roger Ackroyd, que vendia muito bem e se tornaria um dos clássicos da literatura policial.

Imagem em preto e branco que mostra um carro Morris Cowley abandonado e atravessado entre a estrada e o canteiro. Atrás, alguns homens com capas de frio e chapéu.
O carro de Agatha Christie, abandonado à beira da estrada.

Casal feliz

Na véspera do Natal de 1926, Agatha completaria 12 anos de casamento com o Coronel Archibald Christie, um oficial do Royal Flying Corps, que lutou na I Guerra Mundial. Quando o conheceu, ela descreveu Archie como “um moço alto, louro com cabelos encaracolados, um nariz arrebitado e uma boa dose de confiança”. Sobre a vida com o oficial das forças armadas britânicas, alguns anos antes, a escritora declarou-se “felizmente casada”. Sua filha, Rosalind, estava com sete anos e a família vivia na cidade de Sunningdale, na casa comprada em 1925, que chamaram de Styles House.

Mas na noite de sexta-feira, 3 de dezembro, por volta das 21h30, Agatha levantou-se de sua poltrona e subiu até o quarto de Rosalind, que dormia. Beijou a menina e deixou-a só com os criados, saindo da casa sem avisar ninguém. De acordo com o boletim de ocorrência, ao desaparecer a autora vestia uma blusa verde, casaco e saia de crochê cinzas, um chapéu de veludo pequeno e não usava aliança.

Foto em preto e branco do Coronel Archibald Christie em uniforme militar.
Coronel Archibald Christie, primeio marido de Agatha Christie

Busca com aviões

Uma das primeiras hipóteses da polícia e dos jornais da época foi o suicídio. A poucos metros do local onde estava o Morris Cowley, havia uma fonte natural chamada Silent Pool, onde uma jovem e seu irmão tinham se suicidado alguns anos atrás. Durante dias, a possibilidade de Agatha ter se afogado levou dezenas de mergulhadores ao local, além da drenagem do córrego Tillingbourne e da fonte.

As buscas envolveram cães farejadores, mergulhadores, cerca de mil homens da polícia, a população e, pela primeira vez, aviões. Em pouco dias, mais de 15 mil pessoas apareceram no local, em caravanas incentivadas pelo prêmio de cem libras oferecido pelo jornal Daily News para informações sobre a escritora.

Capa em preto e branco do jornal Daily Mirror, com fotos da busca por Agatha Christie por populares, avião, e carros.
Buscas pela escritora nas primeiras páginas de jornais

Mas alguns fatos indicavam para Archie Christie como suspeito de assassinato. Ele parecia mais preocupado com as partidas de golfe que estava deixando de jogar do que com o sumiço da esposa. Um pouco antes de sair de casa, Agatha teve uma discussão com o marido, que anunciou que estava deixando o casamento para ir morar com sua amante, a ex-secretária Nancy Neele, de 25 anos, que conheceu dois anos antes trabalhando na Imperial Continental Gas Association. Era a segunda vez que Archie saia de casa, após uma primeira separação corrida no mesmo ano.

Golfe, uma religião

O coronel patrocinou durante os anos de casamento a atividade de romancista de Agatha, que ele classificava como um pouco mais que pequenas diversões, comparadas a “bordado ou jardinagem”. Então, começou a evitar a esposa, passando noites em um clube e os finais de semana jogando golfe, um interesse que parecia “uma religião”, segunda ela. Na primavera de 1926, Clara, a mãe de quem Agatha era muito próxima, morre de bronquite. A atitude de Archie foi de aversão e insensibilidade ao luto e ao sofrimento da escritora, que o descreveu depois como alguém que odiava “doença, morte e problemas”.  Algumas semanas depois, ele contou que estava apaixonado por outra mulher, pediu o divórcio e saiu de Styles House pela primeira vez. Na noite de 3 de dezembro, um dia antes do carro de Agatha ser encontrado, Archie deixou sua casa e foi para residência de um amigo, onde lhe aguardava a festa de noivado com Nancy Neele.

As buscas por Agatha Christie ganharam a primeira página dos principais jornais da Inglaterra e chegaram até o New York Times. A imprensa começava a especular sobre um possível golpe publicitário para que a autora vendesse mais livros. Até o ministro do interior na época, o anti-semita William Joynson-Hicks, envolveu-se, pressionando a polícia para resolver logo o caso.

A polícia não conseguia qualquer pista, sobre por onde ela havia andado ou se hospedado naquela noite fria de outono. Alguns moradores sugeriam que ela poderia ter ficado em um Bed & Breakfast, outros que ela dormiu no carro ou em um celeiro de uma casa da fazenda próxima.

O espírita Conan Doyle

Dois escritores famosos foram então convocados para desvendar o que aconteceu: Sir Arthur Conan Doyle e Dorothy L. Sayers, autora da série de Lord Peter Wimsey, que visitou a cena do desaparecimento e usou o fato no ano seguinte em seu romance Unnatural Death.

Ao invés de usar lupa, cachimbo e raciocínio lógico, o criador de Sherlock optou por uma solução menos ortodoxa. Conan Doyle levou um par de luvas de Agatha Christie a um médium que, após pressionar o objeto contra a testa, revelou: “A proprietária está um pouco atordoada, de forma um pouco intencional. Ela não está morta, como muitos pensam. Vocês vão ouvir falar dela, eu acho, na próxima quarta-feira.” E citou ainda uma percepção de água.

Foto da fachada do Old Swan Hotel, com mostra da entrada e das janelas na parte da frente do hotel.
Old Swan Hotel, em Harrogate, Inglaterra

Dez dias depois que o cigano encontrou o carro, em 14 de dezembro, o músico Bob Tappin avisou a polícia sobre a localização de alguém que reconhecia como Agatha Christie. Apesar de ser um nome familiar para os ingleses, a autora se recusava a tirar fotos e a dar entrevistas, sendo suas únicas imagens encontradas nas contracapas de seus livros. Hospedada no Swan Hydropathic Hotel (hoje Old Swan Hotel), um SPA do século XVIII na cidade de águas termais de Harrogate, a mulher, não se reconhecia e nem se registrou como Agatha Christie. Além disso, suas atitudes não eram as mesmas da autora de romances policiais. A timidez havia sumido: geralmente estava animada, vestia roupas brilhantes, cantava e tocava piano no bar. E reservou um quarto com o nome de Teresa Neele, sobrenome da amante do marido (Teresa é um anagrama da palavra teaser, provação em inglês, uma brincadeira com palavras bem ao gosto da autora).

Os jornais publicaram a notícia em 15 de dezembro, uma quarta-feira. Archie foi ao Swan buscar Agatha assim que avisado pela polícia, mas permaneceu sozinho, esperando no lobby por horas, enquanto a autora dizia se vestir para o jantar. O coronel declarou então que ela sofreu perda total de memória, provavelmente como resultado do acidente que deixou seu carro pendurado na borda da trilha em Newlands Corner.

Retrato inacabado

O divórcio de Archibald veio em 1928 e, em 1930, Agatha se tornou a senhora Mallowan, casando-se com o famoso arqueólogo Sir Max Mallowan. Após a estadia em Harrogate, com a pequena diversão de autora, ela consolidou-se como Rainha do Crime, escrevendo 80 romances e contos e dezenas de peças de teatro, que venderam mais de dois bilhões de livros em mais de 45 línguas. O excêntrico detetive belga Hercule Poirot e a curiosa Miss Jane Marple apareceram em 45 romances e 74 contos da autora.

Até hoje não se sabe o que fez a escritora entre deixar seu carro e ser encontrada muitos dias mais tarde em um SPA. O mais provável é que tenha tomado um trem de Shere até Londres e de lá até Harrogate. Agatha Christie escreveu sobre aqueles dias de dezembro de 1926 em seu romance autobiográfico Retrato Inacabado (Unfinished Portrait) por meio da personagem Célia. E falou sobre sua estada no Swan uma única vez: “Durante 24 horas, sonhei e me vi em Harrogate como uma mulher feliz, contente, que acreditava ter acabado chegar da África do Sul”

2 comentários em “Teresa Neele, a sul-africana feliz

Adicione o seu

Deixe uma resposta

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: