A mais-valia vai acabar, senhor Edgar. O dramaturgo Vianinha

FREDERICO MORIARTY – Esta semana diversos membros do governo, além do guru esotérico-terraplanista Olavo de Carvalho, voltaram suas armas para o maior dramaturgo brasileiro: Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha. O novo diretor da Ancine acusou Vianninha de ser um agente comunista nas artes brasileiras e um “gramsciano empedernido”. Pré-indicado ao Nobel de Literatura há 3 anos, Vianninha respondeu com bom humor: “É a ascensão dos néscios. O pântano que pensa ser ribeirão”.

Vianninha: talento precoce (Crédito: Funartr)

Carioca nascido em 1936, filho do escritor Oduvaldo Vianna, Vianninha desde cedo meteu-se com as artes. Aos 15 anos participava do grupo Teatro de Arena, com jovens talentosos como Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. Oficinas de Teatro, interpretação, seminários com os clássicos, o Arena era uma usina de conhecimentos dramatúrgicos. Em 1958, uma obra de Guarnieri salva o grupo da bancarrota: Eles não usam Black Tie. Sucesso de crítica e público, a história retratava a vida de um casal de operários.

Entrada do Teatro de Arena na década dos 60 (CP doc. FGV)

Era necessário ir além. Formava-se o Grupo Opinião, ligado aos Centros Populares de Cultura (CPC), iniciativa da União Nacional dos Estudantes (UNE). A arte precisava transformar a realidade. Uma profusão de artistas críticos, criativos e geniais explodia no início dos anos 60. Vianninha, Ferreira Gullar, Millôr Fernandes, Zé Ketti, Guarnieri, Augusto Boal, Paulo Autran, Tereza Rachel estavam entre eles.

Encarte do CPC (Fonte: Itaú Cultural)

A ditadura militar (1964-1985) quase colocou fim à balbúrdia. Prisões, torturas, salas de teatro fechadas ou incendiadas. Vianninha resistiu. Escrevendo peças de combate de cunho ideológico, como a que deu título a este artigo.

Montagem da peça “A mais valia vai Acabar seu Edgar” no Teatro Opinião (1963) (Fonte: Itaú Cultural)

A TV Globo, canal oficial dos ditadores (empresa que cresceu absurdamente após o golpe de 64, engolindo as tevês paulistas de maior audiência e anunciantes, a Tupi e a Record), exibia atrações contraditórias. Em 1968 estreia o Jornal Nacional, verdadeiro diário oficial dos milicos, narrado em horário nobre por Cid Moreira e Sérgio Chapelin. Nos anos 70, uma coleção de escritores e artistas “comunistas” estavam na teledramaturgia da Vênus Platinada (o apelido da Globo). Dias Gomes, Guarnieri e, claro, Vianninha.

Dupla oficial do JN da longa noite de 22 anos: Cid Moreira e Sérgio Chapelin

Uma das produções memoráveis foi o Caso Especial. Episódios semanais que se estenderam de 1974 a 1993 (a maior sequência foi do início até 1981, período com pouco mais de 110 episódios dos 170). Janete Clair, Gilberto Braga, Daniel Filho, Aguinaldo Silva, Dias Gomes escreviam, adaptavam e dirigiam histórias que duravam de 50 a 70 minutos. Vianninha escreveu alguns roteiros. Sua verve artística amadurecera. Menos ideologia e didatismo, mais tensões humanas.

Ferreira Gullar e o CPC

Num dos episódios escritos por ele, “Enquanto a cegonha não vem”, José Wilker (um dos melhores atores que já passou por aqui) contracenava com a excelente atriz Renata Sorrah. Casal de jovens recém-casados, duríssimos. Ele, professor substituto numa escola pública do Rio, ganhando migalhas e estudando feito louco nas horas vagas, pois estava terminando o mestrado sobre a Revolução Praieira de 1848 e o seu líder mais carismático, o capitão Pedro Ivo (um republicano com leve influência do socialismo pré-manifesto comunista).

Ela, desempregada, descobre que está grávida. Comédia de costumes típica, com muito bom humor e críticas ácidas disfarçadas. Brigas, desesperos, desencontros, acusações mútuas e uma gravidez complicada são os percalços que todo casal enfrenta. Qual o segredo da vida? O amor. E isso havia demais entre os dois. Uma obra humana, profundamente humana.

Wilker e Sorrah contracenam em Enquanto a cegonha não vem

Naquele 1974 Vianninha escreveu duas peças de teatro que demonstravam toda a sua capacidade artística e o futuro brilhante. Mão na luva, mostra um casal em ruína, sentado dialogando sobre o divórcio que virá. Autobiográfico, afinal, logo depois, Vianninha se separaria da atriz Odete Lara. A outra obra foi Rasga Coração, sobre o conflito de gerações entre um pai comunista de carteirinha e um filho que só queria deixar os cabelos compridos.

Vianninha ainda encontrou tempo para escrever e criar uma das melhores séries feitas pela Rede Globo “A grande família”, relançada com muito sucesso nos anos 2000. O triste é saber que no auge da produção, um câncer no pulmão tirou o dramaturgo de cena. Vianninha faleceu aos 38 anos em 1974. Um legado de combatividade e esperança que nos faz muita falta. Uma crença inapelável no humano e nas batalhas éticas e verdadeiras.

Como a do Caso Especial citado acima. Enquanto a gravidez passava, a vida do casal parecia ir ao abismo. O gancho da história é um concurso para professor de História da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Exatamente no mesmo dia do concurso, Renata Sorrah começa o trabalho de parto. Ele desiste da prova; ela não deixa. O filho ou filha iria nascer de qualquer jeito. A esposa o convence. Ele corre pra prova.

Na antessala da universidade, aguardando ser chamado, ele recebe a notícia: nascera o filho, era um menino. Wilker entra na sala. A banca de doutores (todos muito sérios) começa com as perguntas. Um catedrático assertivamente questiona: Quem é Pedro Ivo?

José Wilker esboça o sorriso mais esfuziante que uma pessoa pode dar. Um misto de sonho, orgulho e certeza de que a vida pode derrubar a gente muitas vezes, mas que vale a luta, vale o sofrimento, vale a esperança:
– Pedro Ivo? Pedro Ivo é meu filho!!!

(*) A imagem de abertura deste post é da Central Globo de Comunicação. Nela, o elenco original da Grande Família; Eloísa Mafalda, Brandão Filho, Jorge Dória, Paulo Araújo, Osmar Prado, Luiz Armando Queiroz, Djenane Machado, Maria Cristina

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