
José Carlos Fineis
Sapatos trouxeram a desgraça para a vida daquela criança livre. Com eles, vieram a escola, o horário para acordar, as lições de casa, o bullying (usava óculos), a necessidade de tomar banho todo dia, o medo de errar, a competição para ser o primeiro da classe, a briga na porta da escola, a fossa de domingo à noite, a incerteza quanto ao futuro, a rejeição do primeiro amor (e do segundo, e do terceiro), a discriminação por ser um jovem pobre e não frequentar a boatinha do Ipanema Clube, a angústia pela Guerra do Vietnã e pela morte de John Lennon, a revolta contra a censura, o horror à repressão política, o sentimento de finitude. Ah, ia esquecendo: o cigarro e o medo de um câncer no pulmão.
Vieram coisas boas também, mas não tinham nada a ver com sapatos. A literatura. Os Beatles. A revista Geração Pop. The Who, Belchior, Bob Dylan. O violão. Woody Allen. Os amigos inseparáveis. A descoberta da poesia. Escrever, escrever, escrever. Os namoros. As motocicletas. O sexo. O amor verdadeiro. Os filhos. A luta honesta por um teto e pelo pão de cada dia. Um ofício que movimenta sonhos e ideais. A consciência de ter feito muitas escolhas certas e poucas erradas. A capacidade de sonhar aos 56, até mais do que aos 15. A admiração por Deus e pelo Universo. A compaixão. A esperança. A gratidão por estar vivo.
A vida foi boa, afinal, apesar dos sapatos e da sensação de que, ao amarrar pela primeira vez os cadarços, aquela criança perdeu para sempre o estado de graça em que vivia, livre para brincar de manhã até a noite na rua de terra, sem camisa, com as solas dos pés grossas como couro e a pele queimada de sol, numa época em que não havia insônia, nem a tirania do relógio, nem ansiedade, e em que até pegar caxumba ou sarampo era divertido.
Preciso reaprender a andar sem sapatos.
Imagem de Esi Grünhagen por Pixabay
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