Amante da vida, a ‘bruxa’ Frida Kahlo, a mais hedonista das artistas mexicanas, pintou a si mesma, a vida e a morte, o sete e a boa mesa

MARCO MERGUIZZO – Ao lado do olhar desafiador e quase messiânico do guerrilheiro argentino Ernesto Che Guevara (1928-1967), os traços fortes, altivos e ao mesmo tempo doces e lascivos da pintora mexicana Frida Kahlo (1907-1954), imortalizados pela indústria cultural ao longo do século 20 e das últimas décadas, fizeram por certo dos rostos estilizados dessa icônica dupla as personalidades latino-americanas mais retratadas e idolatradas de todos os tempos. (Capa / Crédito: Flammarion Vieira Guimarães)

Além de uma profícua e intrigante produção artística que passeia livremente por várias vertentes como o surrealismo, o modernismo, a arte naïf, o realismo mágico, o simbolismo, o naturalismo, o primitivismo, o realismo social e o cubismo, a mais célebre pintora mexicana era uma nacionalista e ativista política de quatro costados, uma feminista de primeira hora, além de amante da vida e da boa mesa.

Negava peremptoriamente que era uma pintora surrealista ao dizer que “não pintava sonhos mas a minha própria realidade”. Ou seja, pintou a si mesma, a morte, a vicissitudes humanas e, como bissexual assumida e hedonista de carteirinha, o sete e os prazeres da vida.

Em seu ideário político-cultural de transgressões ao status quo e establishment da época, defendia o resgate à cultura dos Astecas, povo pré-colombiano que habitou o território mexicano entre os séculos 14 e 16, como forma de oposição ao sistema imperialista cultural europeu. Mais: a forma como se vestia desafiava as questões de gênero da retrógrada e machista sociedade mexicana.

O trabalho de Kahlo como artista permaneceu relativamente desconhecido até o final dos anos 1970, quando ela foi redescoberta por historiadores de arte e ativistas políticos. No início dos anos 1990, ela se tornou não apenas uma figura reconhecida na âmbito artístico, mas um ícone para o movimento feminista Chicanos e a causa LGBTQ.

Nos dias de hoje, o precioso legado de Frida Kahlo é celebrado internacionalmente como um dos mais emblemáticos para as tradições nacionalistas e indígenas do México, feministas e simpatizantes do LGBTQ, pelo que é visto como uma narrativa pictórica intransigente da experiência e do modo socialmente inclusivo de ver o mundo.

As icônicas caveiras de “la bruja” Frida: tela a tela, o Dia de Los Muertos

Além dessa gigantesca projeção midiática em todo o planeta, a feminista bissexual de monocelha e buço libertadores e o médico revolucionário marxista são, cada um à sua época, os maiores símbolos do século 20 da contracultura da rebeldia e do sonho libertário dos países da América de fala espanhola.

Classe de 1907, nascida em 6 de julho na cidade de Coyoacán, Magdalena Carmen “Frieda” (nome composto grafado originalmente assim mesmo, em alemão, por causa de sua ascendência germânica, mas abandonado por ela durante a ascensão do nazismo e do hitlerismo, nos anos 1930 e 40) Kahlo y Calderón é considerada por biógrafos e por uma legião de admiradores de sua obra, no mundo todo, como uma mulher à frente de seu tempo.

Além de uma profícua e intrigante produção artística que passeia livremente por várias vertentes como o surrealismo, o modernismo, a arte naïf, o realismo mágico, o simbolismo, o naturalismo, o primitivismo, o realismo social e o cubismo, a mais célebre pintora mexicana era uma nacionalista e ativista política de quatro costados, uma feminista de primeira hora, além de amante da vida e da boa mesa.

Negava peremptoriamente que era uma pintora surrealista ao dizer que “não pintava sonhos mas a minha própria realidade”. Ou seja, pintou a si mesma, a morte, a vicissitudes humanas e, como bissexual assumida e hedonista de carteirinha, o sete e os prazeres da vida.

Em seu ideário político-cultural de transgressões ao status quo e establishment da época, defendia o resgate à cultura dos Astecas, povo pré-colombiano que habitou o território mexicano entre os séculos 14 e 16, como forma de oposição ao sistema imperialista cultural europeu. Mais: a forma como se vestia desafiava as questões de gênero da retrógrada e machista sociedade mexicana.

O trabalho de Kahlo como artista permaneceu relativamente desconhecido até o final dos anos 1970, quando ela foi redescoberta por historiadores de arte e ativistas políticos. No início dos anos 1990, ela se tornou não apenas uma figura reconhecida na âmbito artístico, mas um ícone para o movimento feminista Chicanos e a causa LGBTQ.

Nos dias de hoje, o precioso legado de Frida Kahlo é celebrado internacionalmente como um dos mais emblemáticos para as tradições nacionalistas e indígenas do México, feministas e simpatizantes do LGBTQ, pelo que é visto como uma narrativa pictórica intransigente da experiência e do modo socialmente inclusivo de ver o mundo.

O México, por sinal, o pátria-natal da pintora, está presente de forma eloquente em cada fase de sua obra, representado em cada nuance, em cada tradição popular e nas suas múltiplas e mais variadas manifestações culturais. Isso inclui a rica e instigante culinária mexicana e suas pronúncias regionais (o que exclui a manjada gastronomia tex-mex de sotaque americanizado, com seus tacos e guacamoles isoporizados) e a outro tema recorrente na obra da artista: os crânios e as caveiras icônicas que levam os traços inconfundíveis de Frida Kahlo, uma referência às tradições do Dia de Los Muertos, festejado efusivamente por lá no dia 2 de novembro, com desfiles de rua e muita comilança por todo o país.

Expostas tanto em museus importantes, como o Museo Dolores Olmedo, na Cidade do México, e o Museum of Modern Art (MoMA) de NY, quanto massificadas pela indústria cultural e os meios de comunicação nas últimas décadas, as indefectíveis caveirinhas de Kahlo rivalizam em exposição midiática com as abóboras plastificadas do Dia das Bruxas, o Halloween da cultura saxã, o qual se comemora, por sinal, nesta quinta-feira, 31/10.

Dia de los muertos: festa e comilança

De exótica à fruta da moda, a pitaia e o esqueletinho pincelados por Frida

Tive a satisfação de viajar ao México por duas únicas vezes. Muito pouco tempo, eu sei, para conhecer em detalhes a sua história milenar e o enorme fascínio que a pátria ancestral dos Maias, Toltecas e Astecas exerce sobre seus visitantes. Porém, o suficiente para desfrutar de alguns de seus impressionantes tesouros históricos e naturais e de seus atrativos à mesa. Como as pirâmides majestosas de Teotihuacán e Kukulcán. A caótica mas cativante Cidade do México. A cenográfica costa de Ixtapa, Zihuatenejo e Akumal. A sua gente acolhedora. E, claro, a sua comida repleta de simbolismos. cheiros e sabores originais.

Tradição tipicamente mexicana, o Dia dos Mortos, o nosso finados de lá ou o Halloween dos países saxões (em inglês, o termo “All Hallow’s Eve” significa “véspera de Todos os Santos, já que é comemorado um dia antes do feriado de 1º/11 em como os Estados Unidos, principal divulgador da festa e cujo principal símbolo são as globalizadas abóboras fantasmagóricas) é festejado de forma esfuziante como o nosso carnaval, com dança nas ruas, caveiras coloridas e muita comida em homenagem a aqueles que já se foram.

Pan de muerto: tradição mexicana feita com “crânios e ossos” de pão doce

Foi lá, portanto, que provei pela primeira vez o pan de muerto (ou pão de morto, em bom português) – uma criação local preparada especialmente para o Dia dos Mortos ou mesmo no período de festividades que antecede à data, que podem durar semanas ou até meses, dependendo da região. Ele não é portanto um pão de consumo cotidiano. Moldado no formato de um crânio humano e caprichosamente decorado com tíbias e fêmures, a massa de paladar doce é salpicada de açúcar e raspas de laranja. Em outras partes do México, há variações que levam gotas de chocolate (outra delícia mexicana) e gergelim.

Há donas de casa e panederos (padeiros) artesanais que meticulosamente escrevem à mão dedicatórias especiais ao defunto. Na região de Oaxaca, por exemplo, situada na parte Sul do país, o pan de muerto, cujo formato imita uma figura humana, é moldado de açúcar e representa a alma do homenageado. Tradição gastronômica macabra?

Como no meu post anterior, no qual falei sobre tabus alimentares (se ainda não leu, clique aqui), tais tradições devem ser tratadas como manifestações culturais genuínas dentro de um contexto antropológico e histórico, sem preconceitos e juízos de valor rasos.

Tragédia juvenil
(Fotos: Arquivo)

Para que preciso de pés quando tenho asas para voar?” (Frida Kahlo)

Mesmo com a vida marcada por uma saúde frágil, Frida Kahlo levou ao mundo as cores vibrantes e a energia do povo mexicano em suas pinturas, roupas e adereços. Vítima de uma poliomielite na infância e de um gravíssimo acidente de ônibus, já na adolescência, que lhe custou três dezenas de cirurgias e sérias e permanentes sequelas em uma das pernas, a artista era deficiente física. Carregou as dores por toda a vida mas buscou transcender tal fragilidade através da pintura.

Ao contrair a doença aos meros 6 anos, a artista teve de conviver com o desprezo e o bullying dos colegas de escola, que a chamavam de “Frida da perna de pau”. A deficiência fez com que adotasse o que seria uma de suas marcas no futuro: as longas e chamativas saias. E, para superar suas limitações físicas, praticava esportes até então considerados masculinos, como o futebol, a luta de boxe e a natação.

Foi na infância que ela começou a despertar precocemente para as artes. Filha do fotógrafo alemão Wilhelme Kahlo e também neta de um fotógrafo, ela viu na fotografia uma forma de retratar o mundo à sua volta. Com parte da infância vivida entre tiroteios e disputas entre camponeses na Revolução Mexicana de 1910, Frida denominava-se como “filha da revolução”. Já sua adolescência foi em meio às festas populares e a uma efervescência cultural que emergia no México.

Na Escola Nacional Preparatória de San Ildefonso, na Cidade do México, onde estudou, teve contato com grupos estudantis de diferentes áreas, ficando mais próxima dos adeptos das Artes e da Filosofia. O momento crucial para a vida e a arte de Frida veio quando ela tinha 18 anos. Um caminhão bateu no bonde em que estava, acidente no qual uma barra de ferro atravessou o seu corpo, atingindo a barriga e a pelve. O acidente a deixou de cama por muito tempo. Com o corpo imóvel e totalmente engessado, ela achou na pintura um modo de expressar seus sentimentos ante o indesejado infortúnio.

A tela como espelho

“Pinto autorretratos porque fico sozinha muitas vezes e porque sou a pessoa no mundo que eu conheço melhor.”

Autorretratista de primeira hora, Frida começou a pintar, logo após portanto ao fatídico acidente. Esboçava autorretratos com base na visão que tinha a partir de um espelho em sua cama, pois dizia que queria pintar o que via com os próprios olhos, ou seja, algo que ela conhecia totalmente. Frida, portanto, retratava sua vida na tela sempre com cores fortes e traços marcantes, características únicas das obras de Kahlo.

O primeiro quadro foi o Autorretrato em vestido de veludo, de 1926, obra que fez para presentear seu então namorado, o jovem Alejandro Gómez Arias. Já adulta, seu relacionamento conturbado com o muralista Diego Rivera (1886-1957), o grande amor de sua vida e com quem teve um casamento tumultuado até a sua morte, passou a ser um dos temas presentes em sua pintura.

Em um de seus rompimentos, Frida cortou as suas típicas tranças, que o marido gostava, e fez um autorretrato com os cabelos curtos, com várias mechas jogadas ao chão, para mostrar a mudança que viria em sua vida. Apesar das brigas de Rivera e Frida, assim como as idas e vindas, Kahlo sentia enorme admiração pelo marido.

Ela retratou a importância de Diego em sua vida no quadro “Diego e eu”, de 1949, no qual o muralista aparece como um terceiro olho na testa da artista mexicana. Sua obra ficou mundialmente conhecida após morar fora do México. No entanto, somente próximo a sua morte é que Frida conseguiu presenciar uma exposição sua no país que tanto amava e ajudava a divulgar pelo mundo.

O maior de seus maiores amores

“Houve dois ótimos acidentes na minha vida: um foi o do ônibus; o outro, Diego. Diego é, de longe, o pior.” (Sobre o marido Diego Rivera)

O grande amor de Frida, como ela mesmo descrevia, foi o muralista mexicano Diego Rivera. Eles se conheceram quando, após retomar os movimentos do corpo, a jovem decidiu mostrar suas pinturas ao já famoso pintor. Frida e Rivera casaram-se quando ela tinha 21 anos e ele, 41. Eles tornaram-se parceiros não só afetivamente, mas também na política, já que os dois faziam parte do Partido Comunista Mexicano.

Apesar da paixão entre os artistas, Rivera foi infiel durante todo o seu casamento. A paixão e sofrimento pelo marido era grande. Mesmo sabendo que ele teve seis filhos com a irmã caçula, Cristina, a pintora depois de separar-se de Diego, volta para ele. Bissexual assumida, ela teve vários romances, mas era o marido que estava sempre em primeiro lugar: “Diego está na minha urina, na minha boca, no meu coração, na minha loucura, no meu sono, nas paisagens, na comida, no metal, na doença, na imaginação”, dizia.

Mas com as constantes traições, Frida divorciou-se de Rivera, período em que focou na carreira, turbinando sua produção artística. A pintora mexicana também passou a sair com outros homens e mulheres. Teve relacionamentos com diversos nomes das artes e política. Como o intelectual marxista e revolucionário bolchevique Leon Trotsky (1879-1940), o segundo homem da Revolução de Outubro e um dos ideólogos do Comunismo soviético. Trotsky foi hóspede de Frida, juntamente com sua mulher por cerca de dois anos.

Mas, em 1940, casava-se novamente a Diego Rivera. Tão tempestuoso quanto o primeiro, a sua segunda união com o famoso muralista é marcada por brigas violentas. Apesar disso, permaneceriam juntos até os últimos dias de vida de Frida.

Ao voltar para Rivera, Frida Kahlo construiu uma casa igual à dele, ao lado da residência em que haviam vivido antes. Ambos eram ligados um ao outro por uma ponte mas sem morar juntos. Encontravam-se na casa dela ou dele em tórridas madrugadas. Embora tenha engravidado mais de uma vez e tido vários abortos, a pintora nunca teve filhos.

Bissexual, feminista e apaixonada pela vida

“Eu sou aquele humano desajeitado, amando, amando, amando e amando. E nunca mais saindo.”

Frida Kahlo trouxe para as Artes algo que até então não era abordado pelos pintores: as questões íntimas femininas. Abortos, partos e feminicídio foram alguns dos assuntos tratados em suas obras. Uma de suas obras mais marcantes chocantes é “Unos Cuantos Piquetitos”, de 1937. Na tela, é possível ver uma mulher nua e ensanguentada em uma cama e um homem a seu lado, segurando uma faca.

A pintura foi inspirada em um caso dos anos 30 que escandalizou a sociedade mexicana, no qual um marid, que matara violentamente a esposa por ciúmes, na tentativa de defender-se diante do juiz teria dito cinicamente que teria provocado “apenas alguns pequenos corte na esposa.”

O pungente Unos Cuantos Piquetitos!: feminicídio visto de modo nu e cru

A própria fragilidade física da pintora era exposta em suas pinturas. Em obras catárticas, ela não tinha medo de revelar ao mundo as consequências do acidente que sofrera na juventude, como se vê em “A coluna partida”. Na obra de 1944, a artista retrata a coluna exposta e fraturada, com pregos por todo o corpo, denunciando as dores que passou a sofrer e que a acompanharam durante toda a vida.

Vulnerabilidade mortificada

“A dor, o prazer e a morte não são mais do que um processo de existência. A luta revolucionária neste processo é uma porta aberta à inteligência.”

A exposição de sua vulnerabilidade física em contraponto à sua força como mulher, da persistência que teve e na luta contra as dores, as dificuldades no relacionamento com Rivera e a tristeza de não ser mãe são os principais razões que a levaram à identificação com as mulheres do mundo todo, o que chamou a atenção dos movimentos feministas. Frida não se intitulou feminista em sua vida, mas isso não impediu que a sua importância no meio político e artístico fizesse com que se tornasse referência para a luta feminista, durante a primeira metade do século 20.

Frida também chamou a atenção por seu visual, digamos, peculiar, e fora dos padrões da épocas. Sempre manteve as sobrancelhas grossas e marcantes. Mais: abusava das cores e estampas florais e étnicas em seu vestuário. E usava grandes bijuterias de influência mexicana, além de levar consigo a atmosfera do México em seus móveis, enfeites e demais objetos, independentemente do local onde fosse morar.

“A coluna partida”, de 1944: autoimolação e catarse das dores sofridas

Essa excentricidade de Frida fazia com que ela fosse uma mulher notada por todos, colocando-a no centro das atenções. No entanto, o mesmo artifício para ser marcante também era usado para encobrir sua fragilidade física. As roupas coloridas e amplas tapavam as diversas cicatrizes e também a perna da qual mancava.

Frida levou seu estilo único até para os seus coletes ortopédicos, enfeitando-os com flores, adereços e pinturas. Mas o uso constante e obrigatório dos aparelhos a incomodava. Mesmo sentindo-se prisioneira e desaprovando-os, eternizou-os em suas pinturas.

Em 13 de julho de 1954, Frida que havia contraído uma forte pneumonia, foi encontrada morta. Seu atestado de óbito registra embolia pulmonar como sua causa mortis. Porém, não se descartou à época que tenha morrido de overdose, devido ao grande número de remédios que ela consumia, podendo ter sido acidental (ou não) a sua morte.

A última anotação em seu diário dizia: “Espero que minha partida seja feliz, e espero nunca mais regressar”, o que permite a hipótese de suicídio da artista. Com base na autópsia de Frida, pesquisadores acreditam que ela pode ter sido envenenada por uma das amantes de seu marido. Diego Rivera escreveu em sua autobiografia que o dia da morte de Frida Kahlo teria sido o mais trágico de sua vida.

Das telas às panelas

“Na cozinha você pode ser ignorante, mesquinho ou descuidado, mas nunca as três coisas juntas.”

Para atravessar o calvário de dores, Frida fez um pacto com a quejumbrosa (ou “chorona”, apelido que ela deu à morte). Para manter-se viva, todos os anos, no Dia dos Finados, a artista fazia pratos variados e montava verdadeiros altares, com fotos, imagens religiosas, velas, pães, fitas, caveirinhas de açúcar, entre outros objetos. Seu pacto extinguiu-se quando, aos 47 anos, morreu de modo precoce vítima de pneumonia.

Este percurso turbulento fez Frida passar a anotar as suas receitas favoritas num pequeno livro preto. Só não era um livro de receitas comum, desses que a gente só encontra receitas. Além delas, no livro da artista constava seus pensamentos, dores, desabafos e declarações de amor. E tinha até um nome: El Libro de Hierba Santa (ou, em bom português, O Livro da Erva Santa).

A ligação de Frida com a gastronomia também pode ser encontrada em obras como Frida’s Fiestas, de Guadalupe Rivera e Marie-Pierre Colle, com receitas e reminiscências da artista, e O Segredo de Frida Kahlo, do mexicano Francisco Haghenbeck. Este último, em especial, apresenta relatos sobre o tal Livro da Erva Santa, onde Frida anotou todas as receitas de sua existência: de pratos que preparou para Diego Rivera, o grande amor de sua vida, calvário e ruína, a Trotski e o sem-fim de artistas e revolucionários que frequentavam as festas louquíssimas em sua Casa Azul, encontros estes regados a tequilas, sangritas, picos de gallo, quesos panela e antojitos.

“Bebo tequila para afogar mágoas mas as danadas aprenderam a nadar.”

O Livro da Erva Santa era quase que uma espécie de guarda-memória gastronômica de Frida. Estavam lá as as deliciosas receitas de sua ama de leite e aquelas que a sua irmã Matilde preparava-lhe após o grave acidente de ônibus que sofreu. Bem como as de origem italiana de sua grande amiga e amante Tina (cuja presença em sua vida foi de fundamental importância), até as que aprenderia mais tarde com a mais improvável das rivais, Lupe, a primeira mulher de Diego, de personalidade forte, e que preferia sofrer acompanhando sempre a trajetória tórrida de amor incessante de Diego a não vê-lo e não tê-lo de jeito algum.

Acontece que, com a morte da artista muitos de seus pertences passaram a ter um sobrevalor tanto artístico quanto monetário. E o pequeno livro preto, El Libro de Hierba Santa, que pode ser encontrado entre os objetos do museu localizado na calle de Londres, no bonito bairro de Coyoacán, cidade onde a artista nasceu, converteu-se num valioso achado, que seria exibido pela primeira vez na monumental exposição em homenagem à Frida, no Palácio de Belas Artes, por ocasião de seu aniversário de nascimento. Sua existência confirmava a paixão e o tempo que ela dedicava a erguer os seus famosos altares dos mortos. Mas no dia em que a exposição foi aberta ao público, o livrinho desapareceu. Mistério…

Volúpia à mesa: celebração à vida esculpida na cor rubra da melancia

Por sorte, várias receitas foram resgatadas. Muito ligada à cultura e ao folclore do México, Frida tinha essa influência no vestir e nos pratos que gostava. A comida, por sinal, era uma forma que buscava para manter sempre perto o corpulento e comilão Diego Rivera, chamado carinhosamente por ela de gorducho.

Com ele, a pintora morou um tempo nos Estados Unidos, que se referia como “Gringolândia”. Lá se encantou com as apples pies (tortas de maçã) da Mommy Eve. Chegou a escrever sobre sua experiência no país de Tio Sam: ‘Não gostei nada de comer no meio dos branquelos. Eu só queria um ovo mexido com sua pimentinha e uma pilhazinha de tortillas, mas não havia jeito, tinha que ficar quieta e engolir os insultos para desfrutar do mundo moderno’.

E a sua bebida, claro, era a tequila, a bebida nacional mexicana: ‘Bebo para afogar as mágoas. Mas as danadas aprenderam a nadar”, brincava após entornar vários copos.

A refeição de Trostsky e Breton


Antes de criar a receita de “A refeição de Trotsky e Breton”, Frida descreveu suas impressões sobre a sua convivência com o revolucionário russo: 

“O Piochitas (diminutivo de piochas, plaquinhas. Possível alusão aos óculos pequenos usado por Trotsky) gostava de ser surpreendido. Não havia muito para dizer, pois Diego me roubava a palavra, a mim e a qualquer um que estivesse perto de Trotsky, por isso eu só cozinhava, pois conseguia dizer mais com meus sabores sobre minha visão de um mundo do que poderia ter dito com palavras. Os dois desejávamos apenas isso: um mundo melhor. Quem é que não quer isso na vida…?”

Frida viveu intensamente seus desejos, embora tenha convivido com dores extremas por toda a vida (dores físicas e emocionais. Ela mesma costumava dizer que morreu duas vezes: a primeira no acidente de bonde e a segunda ao casar com Diego Rivera), Frida viveu fervorosamente os prazeres do sexo, da comida e da bebida. A dor, a morte, a traição, a pulsação, o desejo e o prazer foram parte do seu cotidiano. Seu tumultuado relacionamento com o artista Diego Rivera teve momentos de extrema felicidade, mas de brutal sofrimento também. Frida não costumava se importar com as rotineiras traições do marido com as gringas, como ela chamava. Ela mesma teve vários amantes – homens e mulheres ao longo da vida – no entanto, Frida nunca engoliu a traição de Rivera com sua irmã Cristina.  A vingança viria anos depois, justamente com Trostsky.

 “Ao vê-lo pela primeira vez, Frida achou-o arcaico, velho, passado de moda, entediante, chato, solene; um daqueles móveis que a gente herda da avó e encosta num canto do quarto. Apesar disso era um herói revolucionário. Todos os comunistas do mundo o admiravam; nenhum deles lhe oferecia asilo (…). Frida aceitou sem melindres.”

Assim, Trotsky e sua esposa Natália viveram por dois anos na Casa Azul. Diego pedira a ela que abrigasse os dois e Frida aceitou sem reservas a incumbência.  Rivera possuía uma admiração profunda por Trostsky, ele mesmo fez o intermédio com o presidente do México para conseguir asilo político. Em sua presença, segundo descrevia Frida, parecia um bobo concordando com tudo que Trotsky falava e tentando agradá-lo de todos os modos.

“Talvez para competir com Diego, talvez pelo desejo de destacar-se, ou ela simples razão de que era capaz disso, decidira ganhar o apreço do homem a quem seu esposo mais admirava. Frida desejava que Trotsky se rendesse a ela e lhe permitisse executar sua vingança”. Assim foi feito. Frida começou a seduzir Trotsky justamente pelos sabores.  

Cada bocado deste prato me faz pensar que a comida no México se rebelou contra os cânones europeus. Luta por sua autenticidade. Mas a insurreição é uma arte, e, como todas as artes, tem suas leis”, disse Trotsky numa manhã, ao encontrar Frida na cozinha. Para ajudá-lo a despertar, deleitaram-no com uma xícara de café de Olla. Ao vê-lo refeito, encostado ao batente da porta com um grande sorriso, Frida lançou-lhe um olhar avaliador, atraente e cheio de sensualidade. E depois voltou ao trabalho na cozinha, deixando o aguilão do desejo cravado em Trotsky. “Quais são as leis da cozinha, Frida?”, perguntou ele.

(…)

“São mais simples do que o senhor pensa. A primeira é que ninguém se mete na cozinha de uma mulher sem a autorização dela, é uma falta tão grave quanto deitar com o marido dela. Talvez até mais grave, começou Frida sentando ao lado dele. Na cozinha você pode ser ignorante, mesquinho ou descuidado, mas nunca as três coisas juntas, e por isso sempre tem alguém mexendo o arroz quando ferve, deixando de por algum ingrediente porque esqueceu de comprar, cozinhando ao mesmo tempo a massa e o molho, fritando a carne com mais óleo que o lago de Chapala, servindo feijão queimado.”

Em Trotsky foi se desenhando um sorriso que se ampliou numa gargalhada, e, sem querer, suas risadas se tornaram tão altas que fizeram com que o senhor Cui-cui-ri que andava ciscando restos de comida, saísse correndo dali.

(…)

“Tem algo de bruxa na senhora que encanta e deslumbra. Talvez esteja me envenenando com sua comida, pois desde que cheguei ao México estou vendo tudo de outro modo.” Frida jogou o corpo para trás, ao mesmo tempo que soltava fumaça de seu cigarro. No fundo da cozinha, Agustín Lara cantava no rádio “Solo tú”. “Por acaso agora o verde do pasto faz você lembrar da melancolia, o sangue lhe lembra as cerejas e a felicidade contagiante de uma tarde lhe lembra um doce de mel?”, perguntou Frida.

“Isso mesmo, isso mesmo”, respondeu Trotsky com movimentos afirmativos, muito próprios dele. De professor, de encantador de palavras. “Então, devo estar lhe passando alguma coisa minha com o sal, pois para viver essa vida é preciso temperá-la. O senhor já vê que estou doente, por isso acabo ficando tolerante, embora às vezes a vida seja danada além da conta, pois ou faz você sofrer ou faz você aprender. Para isso é que se coloca tomilho, pimenta, cravo e canela, para tirar o gosto ruim. Frida pegou-lhe a mão e ficou passando a almofada de seus dedos pelas rugas dos nós dos dedos dele. Se não veja, o senhor sem pátria e eu sem pata.”

GALERIA DE IMAGENS

FRIDE-SE – E VIVA A VIDA!

(Fotos que ilustram este post: Arquivo e Bancos de Imagens variados)
RECEITAS
PAN DE MUERTO
INGREDIENTES
  • 2 xícaras (chá) de farinha de trigo
  • 1 colher (sopa) de fermento
  • ½ xícara (chá) de água
  • ½ xícara (chá) de açúcar
  • 1 xícara (chá) de manteiga
  • ½ xícara (chá) de banha
  • 2/3 xícara (chá) de açúcar refinado
  • 2 ovos
  • 7 gemas
  • 5 colheres (sopa) de água de flor de laranjeira
  • 1 pitada de raspas de laranja
  • 5 colheres (sopa) de água de anis (faça um chá com semente de anis)
  • 1 ½ xícara (chá) de frutas cristalizadas de sua preferência
  • 1 ovo para passar por cima
  • ¼ colher (chá) de sal
  • Açúcar para polvilhar
PREPARO
  1. Dissolva o fermento em 8 colheres de água morna. 2) Acrescente um pouco da farinha até formar uma pasta que dê para fazer uma bola. 3) Em seguida, deixe num lugar morno até que dobre o volume. 4) Peneire o resto da farinha com sal, açúcar e misturar com ovos, gemas, água de laranjeira, água de anis, raspas de laranja e manteiga, amassando tudo muito bem até obter uma pasta suave. 5) Acrescente o fermento já pronto e continue amassando. 6) Unte a massa com um pouco de banha e coloque numa bandeja. 7) Cubra com um pano umedecido e deixe até dobrar o volume. 8) Amasse de novo. 9) Reserve um quarto da pasta e com o resto faça uma bola e reserve mais uma vez numa bandeja engordurada. 10) Com a outra massa, faça lágrimas e ossos e cole por cima do pão, usando o ovo como cola. 11) Deixe descansar novamente até dobrar de tamanho. 12) Banhe com o resto do ovo e coloque no forno a 200ºC durante 30′ ou até que estejam bem cozidos e levemente dourados. 13) Misture 1 colher de fécula de milho em pouca água e coloque no fogo até que tenha a consistência de um creme espesso. 14) Tire do fogo e banhe os pães frios e polvilhe por cima o açúcar e sirva ainda quente.
MOLE POBLANO

De acordo com os biógrafos de Frida Kahlo, a pintora mexicana cozinhou este prato no dia do seu casamento, para comemorar e eternizar o seu amor por Diego Rivera. 

INGREDIENTES
Para os medalhões

4 peças de 200g de filé mignon (altura de 3 cm) temperados com sal e pimenta do reino. Azeite para dourar os filés. 4 batatas cozidas tamanho médio. 4 colheres de sopa de arroz branco cozido. Sal. 50g de queijo parmesão ralado bem fino. Azeite.

Para o molho de Mole Poblano

2 pimentas habanero ou dedo de moça. 100g de manteiga. 1 dente de alho. ½ cebola fatiada. 1 tortilha de milho. ¼ de pão de sal. 25g de passas pretas. 60g de amêndoas. 30g de gergelim branco. 1 colher (chá) de grão de erva doce. ¼ de colher (chá) de cravo em pó. ¼ de banana. 30g de amendoim cru sem casca. ¼ de grão de coentro. 6g de canela em pau. ¼ de colher (chá) de pimenta do reino em pó. 1 colher (chá) de pimenta chilli em pó. 40g de chocolate meio amargo. 60g de tomate pelado.

PREPARO
Do molho

1) Em uma frigideira grande, doure as pimentas na manteiga, retire-as e coloque-as em uma panela com 1 litro de água e deixe-as cozinhando até que amoleçam. Reserve. 2) Na mesma frigideira com a manteiga, coloque e mexa nesta ordem: alho, cebola, tortilha, pão, passas, amêndoas, chilli, gergelim, amendoim, erva doce, cravo, coentro, canela, chocolate em lascas, tomate pelado. No final, adicione as pimentas. 3) Deixe esfriar e passe a massa em processador ou liquidificador, aos poucos, acrescente a água que cozinhou as pimentas. 4) Retorne ao fogo para alcançar um molho denso, mas cremoso e, se precisar, coloque um pouco mais de água. 5) Acerte o sal, ao final.

Dos medalhões de batata

1) Misture o arroz com a batata e o sal, faça 8 medalhões, tipo hambúrguer, e empane-os nos 2 lados no parmesão ralado e reserve. 2) Doure os filés em uma frigideira antiaderente com um fio de azeite. Quando estiver quente, coloque de 2 em 2 filés, deverão ficar mal-passados. 3) Doure os medalhões, selando-os de ambos os lados.

FRIDA KAHLO (DOCUMENTÁRIO)

UM TESOURO HISTÓRICO

Meses atrás, o México tornou público um inédito registro radiofônico que pode ser o único existente da pintora Frida Kahlo. Nele, a artista descreve o marido, o muralista e também pintor Diego Rivera, como “um menino grande, imenso, com rosto amável e olhar triste. Seus olhos saltados, escuros, inteligentíssimos e grandes quase não param, estão quase fora das órbitas por causa das pálpebras inchadas”. Clique abaixo e ouça este registro histórico da voz da pintora. 

PARA VER E CURTIR:
FRIDA (2002) – TRAILER (*)
(*) Em exibição na Netflix
MARCO MERGUIZZO 
é jornalista profissional 
especializado em gastronomia, 
vinhos, viagens e outras 
coisas boas da vida. 
Escreve neste Coletivo 
toda sexta-feira. 
Me acompanhe também no Facebook e no Instagram, 
acessando @marcomerguizzo  
#blogaquelesaborquemeemociona 
#coletivoterceiramargem
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