Marcello Fontes
Os bicudos dias atuais, com um avanço notório do conservadorismo por boa parte do planeta, tornam cada vez mais necessário pensar em justiça social. Uma democracia só pode merecer este nome se for justa socialmente, já dizia o filósofo americano John Rawls. E, ao menos abertamente, quase ninguém se diz não democrático.
Pensar em justiça social em geral nos leva a considerar tão somente questões de redistribuição dos recursos, erradicação da miséria e condução dos indivíduos a um patamar na escala social continuamente melhor. A questão que se coloca é justamente se isto basta para que efetivamente tenhamos justiça. Não será muito difícil concluir que não. A contemporaneidade apresenta uma demanda tão ou mais importante que a redistribuição: o reconhecimento. Mas o que efetivamente deve ser reconhecido? Segundo uma das mais importantes correntes do pensamento contemporâneo, o reconhecimento das identidades, tanto individuais quanto coletivas, é imprescindível para que haja efetivamente justiça inclusive no âmbito social. Esta corrente de pensamento recebe de forma geral o nome de Teoria Crítica da Sociedade.
O que seria reconhecer identidades? Não se pensa aqui no mero ato de definir nome, sobrenome e local de nascimento a alguém, mediante a outorga de um documento oficial. O que se quer é que a autenticidade de cada ser, bem como de cada grupo ao qual este ser pertence seja reconhecida não como uma excentricidade ou possibilidade exótica, mas como igual com direito a ser diferente. Nossas sociedades há muito deixaram de ser monoculturais e hoje vivenciamos em boa parte dos agrupamentos humanos aquela que talvez seja a marca distintiva de nosso tempo: o multiculturalismo. Esta marca é também a marca da democracia, pois é próprio dos totalitarismos de modo geral a uniformidade, o desejo de “pasteurização” dos indivíduos, que devem ater-se à “normalidade” estabelecida em termos culturais, religiosos, sexuais e principalmente políticos. Contra isso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos já afirmava em 1948, em reação à barbárie totalitária do nazismo e em prevenção a qualquer outra, que “Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” [veja vídeo sobre os 70 anos da Declaração dos Direitos Humanos, comemorados em 2018, no final deste texto].
Esta marca [o multiculturalismo] é também a marca da democracia, pois é próprio dos totalitarismos de modo geral a uniformidade, o desejo de “pasteurização” dos indivíduos, que devem ater-se à “normalidade” estabelecida em termos culturais, religiosos, sexuais e principalmente políticos
Uma sociedade democrática será necessariamente multicultural, à medida que os muitos grupos e identidades que a compõem deverão ter a liberdade de agir como lhes é peculiar, sem que isso represente uma ameaça ao todo da sociedade. Não, a democracia não é a ditadura da maioria, como querem alguns totalitários travestidos de democratas. É antes uma eventual maioria que tem profundo respeito pelas minorias e não as vê com temor ou suspeita.
Marcado por diversidade de etnias, gêneros, preferências, valores e, portanto, culturas, cada sociedade tem diante de si o desafio de reconhecer todas estas identidades, que passam a exercer uma justa luta por reconhecimento. Isto se dá à medida que percebo que existe uma distorção ou negação no reconhecimento de minha identidade como negro, LGBTQIA+, mulher, nordestino, surdo, cadeirante ou idoso, por exemplo. Talvez pior do que a negação seja a distorção, pois ela tem o poder de promover uma internalização conceitual errada sobre mim mesmo. A formação das identidades individuais e coletivas depende do real reconhecimento que tenham por parte do outro, do diferente, a fim de que possa se autoafirmar como tal. Este reconhecimento é conceitual e mesmo jurídico: para ser um cidadão é preciso que se perceba que posso ser o que sou identitariamente e ter o devido reconhecimento. Não será preciso “branquear” um negro, “masculinizar” uma mulher, “sudestizar” o nordestino ou “jovializar” o idoso, culturalmente falando, é claro, para que isto aconteça. Cada indivíduo ou grupo deve ter sua identidade reconhecida, pois como dizia o filósofo canadense Charles Taylor “o reconhecimento errôneo não se limita a faltar ao devido respeito, podendo ainda infligir uma terrível ferida, aprisionando suas vítimas num paralisado ódio por si mesmas. O devido reconhecimento não é uma mera cortesia que devemos conceder às pessoas. É uma necessidade humana vital”.
A temática do reconhecimento só é polêmica para quem não quer ou não sabe lidar com as diferenças intrínsecas dos seres humanos. Somos diferentes em termos identitários e determinadas identidades carecem mais de uma luta por serem reconhecidas justamente porque, historicamente, foram e são muitas vezes vistas como menores, anormais, desprestigiadas e irrelevantes. Identidades majoritariamente reconhecidas não têm, obviamente, tal necessidade de lutar por reconhecimento, daí serem absurdas e tristes as afirmações dos que, ao verem tais lutas por reconhecimento sendo travadas por grupos desde sempre não reconhecidos plenamente em seus direitos, afirmem tratar-se de privilégios.
Não há como falar em democracia sem que todos tenham suas identidades reconhecidas. E não há como falar em justa distribuição em termos econômicos sem que antes se fale em reconhecimento de cada um, com equidade, ou seja, igualdade de oportunidades.
Para saber mais sobre o assunto:
Curso Livre de Teoria Crítica, por Marcos Nobre
Luta por Reconhecimento, por Axel Honneth
Da redistribuição ao reconhecimento, por Nancy Fraser
Multiculturalismo: Examinando a política de reconhecimento, por Charles Taylor
*Marcello Fontes é professor de Filosofia e mestre de cerimônias, interessado em democratizar a filosofia e levá-la para além das salas de aula e muros acadêmicos, mantendo sua autenticidade e característica, ainda que por vezes entristecedora.
Bacharel e licenciado em Filosofia pela USP, bacharel e mestre em Teologia pela EST – São Leopoldo, licenciado em Pedagogia pela UNICID, especialista em Ensino de Filosofia pela UFSCar, foi professor na UNISO e colunista do jornal Folha de Votorantim por vários anos. Atualmente é professor efetivo da rede pública estadual.
Ilustração
Fotograma do filme “The Wall” (Reino Unido, 1982), com direção de Alan Parker para roteiro de Roger Waters e músicas da banda de rock Pink Floyd.
Deixe uma resposta