Roberto Godinho*
Blogueiro convidado do Blog Aquele Sabor Que Me Emociona
CABO DE ENXADA
Sempre gostei de observar um cabo de enxada com um bom tempo de uso. Nasci e cresci no meio de lavradores, em Canguera, um bairro rural de São Roque.
O cabo tem brilho, parece vitrificado, que foi sendo produzido pelo contato das mãos calejadas do lavrador e pelo suor do trabalho pesado. Um cabo de enxada de longo uso tem a dignidade e beleza de um discreto troféu.
Representa trabalho, vivência, experiência e luta. E tem de ser de madeira boa e apropriada. De alguma forma, as pessoas mais experientes me lembram um cabo de enxada já bem polido pelo uso.

As pessoas vão vivendo e vão sendo lapidadas pelas mãos calejadas e pelo suor dos acontecimentos. Cada um carrega sua história, com diferentes graus de polimento, conforme as dificuldades encontradas nas terras lavradas.
Os brilhos são todos dignos – mas são diferentes. O processo é individual e único e conduz a uma impressão digital que identifica o indivíduo. Tem gente que carrega um brilho mais vítreo, fruto de uma vida mais sofrida e de uma atitude sempre resistente.
Tem gente que chama minha atenção mais que outra: parece um cabo de uma enxada mais lavradora, que trabalhou solos mais duros, encontrou mais pedras e nunca perdeu o fio.
Tem dias e acontecimentos que me fazem lembrar das enxadas da minha infância e de pessoas queridas que a vida escolheu para polir e fazer brilhar.
MINHA PRIMEIRA VEZ NO CINEMA
Passa um filme na minha cabeça branca.
Eu era apenas um menino, descalço, de calças curtas, que chutava minhas bolas, escalava minhas árvores, cavalgava minha bicicleta, ia contrariado para a escola e vivia feliz naquele pequeno mundo inocente, onde a vida andava devagar, sem pressa de me tirar dali.
Meu pai, ali no sítio, criava galinhas e, pisando em ovos, plantava milho, batata, pimentão, tomate, cebola e outros alimentos. Minha mãe ajudava em tudo e cuidava da vaca e do porco, pisando no estrume, que fertilizava a horta.

Meu pai era um sonhador. Botava sua cabeça em travesseiro de pena de galinha e perdia o sono imaginando outras colheitas. Foi para São Paulo, comprou um projetor de cinema, alugou um pequeno galpão e montou um cinema em Canguera, nos longínquos anos 50. Quanta ousadia, tantos sonhos!
Montou o projetor numa armação de madeira, precariamente construída e acessada por uma pequena escada de madeira.
Os bancos eram feitos de tábuas assentadas em caixotes de querosene, daqueles usados para encaixotar tomate. Lembro do foco de luz saindo da cabine, através daquele buraco, que desenhava o caminho da projeção e que ficava mais visível quando alguém fumava.
Os rolos chegavam pela jardineira da tarde e eram montados cuidadosamente por meu pai, que depois passou a incumbência para o Roquinho, que tinha a paciência necessária para a delicada tarefa.

A cada rolo trocado, a projeção era interrompida, as luzes da sala acesas, o rolo era rebobinado e só então recomeçava a projeção do novo rolo. Tantas interrupções quantos rolos tivesse o filme.
Fora as vezes que o filme se quebrava e havia necessidade de fazer aquela engenhosa emenda. Era um roteiro que nunca ocupou as ideias do autor.
Hoje, quando me lembro desse cenário onde assisti ao meu primeiro filme, me invade uma profunda emoção, que chega a me levar às lágrimas. Não pelo filme – que já nem lembro mais qual era – mas pela beleza e a magia dessa história de pureza e do sonho que vivi.
Uma história sem fim.

ROBERTO GODINHO (*) é químico aposentado. Canguerense de São Roque - com muito orgulho -, ele é nascido num reduto histórico da colônia portuguesa da cidade vizinha, cujas terras férteis foram cultivadas por agricultores e vinhateiros pioneiros. Quando não está produzindo vinho, cerveja e caninha da boa ou brincando com os dois netos, Roberto vira cronista, poeta e escritor de olhar sensível e apurado. Seus textos autorais tratam das raízes são-roquenses de modo singelo e nostálgico que tocam a alma e falam ao coração.
Roberto, muito bom. Dá vontade de tricotar uns trxtos e causos contigo
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