Marcello Fontes
Desde os meus primeiros contatos com a matemática, espantavam-me as operações com os chamados números inteiros quando estas envolviam números positivos e negativos. Talvez o termo espanto seja um disfarce para a confusão que por vezes eu fazia quando tinha, por exemplo, que multiplicar um número negativo por um positivo e o resultado deveria forçosamente ser um número negativo. Por que raios tinha de ser assim? A matemática parece ser uma questão de fé, já disse o personagem Calvin das tirinhas de Bill Waterson e alguns, como ele, descobrem-se “ateus em matemática”…
Estas recordações me vêm à memória a propósito de uma reflexão necessária e urgente nos dias atuais: até onde poderemos tolerar os intolerantes? A intolerância em seus mais variados graus e espécies seriam manifestações de expressão e, portanto, deveriam ser respeitadas e tornadas livres para que não se incorresse em censura da liberdade de expressão? Deveríamos, por assim dizer, ser tolerantes com os intolerantes, a fim de que não nos tornemos exatamente intolerantes? Como defensores de uma democracia justa, seria então necessário que aprendamos a conviver também com os intolerantes, os vendo como mais um grupo identitário a ser reconhecido?
Mas, afinal, o que é a intolerância e por decorrência, o intolerante? Em linhas gerais, é a atitude de desrespeito, desprezo e mesmo aversão pelo outro quando se trata de um diferente. Esta diferença pode ser étnica, econômica, cultural, religiosa, política ou sexual, por exemplo. Intolerantes não suportam a convivência com o diferente. O intolerante “raiz” chega mesmo a desejar a eliminação de todos aqueles que não são como ele e se tiver meios, passará do desejo à ação. E é aí que reside o problema que buscamos enfrentar: essa intolerância pode ou deve ser tolerada? Quais seriam os custos de tal tolerância?
O tema da tolerância já foi tratado por alguns filósofos. Talvez um dos primeiros a utilizar a exata expressão foi John Locke (1632 – 1704), conhecido como o “pai do liberalismo”, doutrina política que enfatiza a responsabilidade e liberdade individual. Locke era inglês, e em tempos em que católicos e protestantes nutriam um ódio quase atávico uns pelos outros nesse país, com reis de uma e outra religião sucedendo-se no poder e impondo a sua religião a todos os súditos, escreveu suas Cartas sobre a tolerância, nas quais defendia que ninguém pode constituir-se como detentor de verdades absolutas e coagir os demais a aceitá-las, até porque isso causaria mais problemas do que paz. Suas ideias são influentes até hoje e considera-se que elas foram base para muitos preceitos dos direitos humanos atualmente constituídos. Lamentavelmente, é quase certo que aquele seu amigo da rede social que se diz liberal jamais tenha lido uma só linha sobre isso.
Mas foi o também inglês de origem austríaca Karl Popper (1902 – 1994) quem produziu uma das mais contundentes respostas ao problema que buscamos enfrentar aqui. Para ele, o intolerante, se for tolerado, causará em algum momento a destruição dos tolerantes e da própria sociedade que assim se posiciona. Isso porque o intolerante aproveitaria a tolerância a ele concedida para difundir e praticar suas ideias intolerantes, que incluem, como vimos, a eliminação de todo aquele que não for semelhante a ele. Seria uma tolice da parte dos tolerantes estenderem essa tolerância aos intolerantes. E essa tolice custaria muito caro. A isso, chamou-se “paradoxo da tolerância”. Dizia ele que “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada, mesmo para aqueles que são intolerantes, e se não estamos preparados para defender uma sociedade tolerante contra o ataque dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”. Nesse paradoxo, a intolerância seria como o número negativo na multiplicação de números positivos e negativos, ou seja, sempre converteria o resultado final em negativo. Assim, como iniciamos, tolerância x intolerância = intolerância.
Curiosamente, o intolerante sempre apela para sua liberdade quando pratica ações intolerantes. O racista gostaria de ter a liberdade de desprezar outras etnias que não a sua, o homofóbico quer ter a liberdade de agredir verbal e até fisicamente quem não for heterossexual caso sinta-se incomodado com sua simples presença, o praticante de determinada religião quer ter a liberdade de difamar ou mesmo atacar seguidores de outras crenças, o sujeito de direita quer ter a liberdade de odiar e perseguir o de esquerda e vice versa. Criou-se até uma expressão para tudo isso: “discurso de ódio”. É aquilo que você vê em tom de piada ou desabafo desde os pontos de ônibus até as postagens em redes sociais diversas. E que vão, com o exemplo de líderes políticos intolerantes, sendo normalizados. Tenta-se virar o jogo: o intolerante é aquele que não admite a difusão e a prática da intolerância. Um chato, refém da chamada “ditadura do politicamente correto”, porque não aceita piadas racistas, machistas, homofóbicas ou difamatórias, discursos propagadores de ódio ou atitudes persecutórias ao diferente. O secretário da cultura recém-demitido (ainda que apenas para manter as aparências) por ter imitado discurso de um líder nazista, acredita ter sido vítima de uma “ação satânica”, ou seja, entende ter sido prejudicado e perseguido.
O mundo tem lidado de formas diversas com isso. Nos EUA, podem-se ter discursos e mesmo organizações intolerantes e evocar a famosa primeira emenda da constituição para justificar-se; avalie o leitor se a tolerância à existência de entidades como a Ku Klux Klan, só para citar a mais tristemente conhecida, representou algo positivo para aquele país. Já na Alemanha, defender ou fazer propaganda do nazismo, paradigma da intolerância do século XX que marcou para sempre de forma abominável a história dessa nação, é crime passível de prisão. Popper afirmou que “devemos enfatizar que qualquer movimento que pregue a intolerância deva ser colocado fora da lei, e devemos considerar a incitação à intolerância e perseguição devido a ela, como criminal, da mesma forma como devemos considerar a incitação ao assassinato, ou sequestro, ou para a revitalização do comércio de escravos como criminoso”.
É tempo de resolvermos se realmente vamos incorrer na ingenuidade de continuar tolerando a intolerância, até que ela nos engula ou destrua a frágil democracia até aqui constituída ou se seguiremos os conselhos de alguém que conheceu de perto os totalitarismos intrinsecamente intolerantes que por pouco não destruíram por completo o pouco de justiça e tolerância que o mundo a duras penas estabeleceu.
Imagem de WikiImages por Pixabay
Uma reflexão necessária nestes tempos sombrios. O intolerante é um incivilizado por natureza e em sua própria essência. Rejeita o outro, o diálogo e quem o deseja. É um sabotador contumaz dos mecanismos de representatividade republicana e da democracia. Logo é um pária político e da boa e respeitosa convivência social, pois se autoexclui, dando-se a si cartão vermelho
dentro do jogo democrático (em tempo: não o da cor rubra que simboliza o movimento internacional comunista, mas o do esporte, que fique logo claro aos intolerantes binários). Ao intolerante, portanto, o seu próprio veneno: a intolerância dos tolerantes e dos verdadeiros democratas. Nem mais. Nem menos.
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