A ignorância como fermento para a banalidade do mal

 

Marcello Fontes 

  Tive um professor muito curioso na minha graduação em Teologia. Era, ao mesmo tempo, absurdamente conservador e amigo íntimo de Rubem Alves, alguém que era tudo, menos conservador, seu colega de turma na mesma instituição em que agora lecionava. Dizia ele, citando um teólogo conservador (como não poderia deixar de ser) de nome Herman Bavink, que “a questão da origem do mal é o maior enigma da vida e a cruz mais pesada que o intelecto tem de carregar”. Esta impactante frase sempre permaneceu em minha mente, conquanto com ela não concorde. Aí se fala do mal como uma categoria ontológica, ou seja, como algo que teria uma misteriosa existência quase que independente a desafiar mentes e espíritos piedosos quanto à sua insistente e enigmática existência a despeito da própria existência de Deus e do bem. Mas, de fato, o mal é algo muito mais objetivo e próximo, nada transcendental ou enigmático.

     Antes que eu aborreça o leitor com mais escritos sobre a tal origem do mal, quero reconduzi-lo a um momento na história relativamente recente no qual o mal, mais do que presente em ações e pensamentos, foi tornado trivial, comum, corriqueiro. Falo daquilo que ficou conhecido como “solução final” (do alemão Endlösung der Judenfrage) referindo-se ao plano nazista de genocídio da população judaica de todos os territórios ocupados pela Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial. Embora pululem nesses tempos sombrios figuras que vão desde defensores do terraplanismo, opositores das vacinas e mesmo negacionistas do holocausto, termo pelo qual ficou conhecido o extermínio de cerca de seis milhões de judeus, há dados e documentos comprovadores desta cruel matança que, além destes seis milhões de judeus, também atingiu de forma genocida ciganos, poloneses, comunistas, homossexuais, prisioneiros de guerra soviéticos, Testemunhas de Jeová e deficientes físicos e mentais.

      Embora o antissemitismo não tenha sido uma invenção nazista, estando presente em praticamente toda a Europa desde o período medieval e até mesmo disseminado por uma das mais proeminentes figuras da história da Alemanha, o reformador Martinho Lutero, ninguém jamais havia perpetrado um ataque tão nefasto a este povo em termos tão cruéis quanto os seguidores de Hitler. O choque causado pela violência destes atos abalou a maior parte do mundo, mas em particular aqueles que deles foram vítimas diretas e indiretas. Uma destas pessoas foi a filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt. Ela, que foi aluna de Karl Jaspers e Martin Heidegger, tendo com o último inclusive um relacionamento amoroso, refugiou-se nos EUA, onde se tornou professora, inicialmente da Universidade de Chicago e depois da New School for Social Research até sua morte. Curiosamente, não gostava de ser descrita como filósofa, preferindo que suas publicações fossem consideradas teoria política. Sua obra mais conhecida é “Origens do totalitarismo”, na qual, para desgosto de parte da esquerda, classifica o regime de Josef Stalin como também sendo totalitário. Foi já como uma autora e pesquisadora de renome que passou a escrever para a prestigiada revista The New Yorker, que a convidou para cobrir um evento marcante do pós-guerra: o julgamento de Adolf Eichmann, um dos principais gestores da solução final nazista, que ocorreu em Jerusalém, após Eichmann ter sido capturado pelo serviço secreto israelense em Buenos Aires. De sua atuação neste evento procede uma de suas mais marcantes obras: “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”, que guiará nossas considerações sobre o aspecto nada misterioso do mal, antes bem claro e palpável em termos reais.

    É importante frisar, antes de qualquer coisa, que Arendt não desconhecia as clássicas concepções teológicas e filosóficas quanto ao mal, tendo inclusive frequentado cursos com os teólogos Paul Tilich e Rudolf Bultmann. Mas foi no filósofo Immanuel Kant e sua teoria do mal radical que ela encontrou, a princípio, referências mais claras para suas teses sobre o mal, inicialmente elaboradas em “Origens do Totalitarismo”. Para Kant, o mal é uma possibilidade intrinsecamente humana, não um ser à parte ou uma entidade particular, que seria representado pela liberdade humana em eventualmente escolher um móbil ou motivo mal para suas ações. O famoso imperativo categórico kantiano foi criado para que o bem estivesse ali contido, mas existe a possibilidade de que se ceda ao mal e ele assim se difunda.

    Entretanto, após considerar seriamente sobre isso e sob o impacto de ter conhecimento dos campos de extermínio nazista e assistir o julgamento de um dos principais responsáveis por eles, Arendt muda de opinião. O mal não estaria ligado à liberdade, mas à não liberdade. Aquele que perpetra o mal não é um “monstro” ou um ser necessariamente perverso ou cheio de motivações aterrorizantes, mas acima de tudo um Homem comum. E isto é mais verdadeiro principalmente dentro da realidade do totalitarismo, que exclui o indivíduo da sua condição de sujeito político, lançando-o na situação de Homem de massa, conduzido e sem liberdade, ainda que julgue possuí-la. Uma assustadora normalidade cerca o mal, que para Arendt evidencia-se principalmente no aspecto político e histórico, sem que se tenha qualquer evidência de que foi cometido por crueldade absoluta, mas principalmente por omissão e ignorância. O perpetrador do mal, para Arendt, nada tem a ver com o vilão tradicional ao qual muitas vezes nos acostumamos: “não estamos aqui interessados na maldade, com a qual a religião e a literatura tentaram lidar, mas com o mal; não com o pecado e com os grandes vilões que se tornaram heróis na literatura, e normalmente agiram por inveja ou ressentimento, mas com esse todo mundo que não é perverso, que não tem motivos especiais e por isso mesmo é capaz de um mal infinito; ao contrário do vilão, ele jamais encontra sua mortal meia noite”.

         Esse era exatamente o caso de Eichmann. Ele não era um monstro, mas um homem terrivelmente comum, medíocre e limitado. Nem sequer era originalmente antissemita. Entrou na famigerada SS nazista por interesse em, enfim, ter algum sucesso na sua vida até então totalmente fracassada. Arendt destaca que suas respostas baseavam-se em irritantes clichês e lugares comuns, fruto de seu evidente despreparo intelectual e de sua incapacidade de refletir e colocar-se no lugar do outro. Ele cumpriu ordens e o fez de modo cego, abrindo mão de sua liberdade. Poucos homens no mundo foram responsáveis por tantas mortes e ainda assim incapazes de dar uma explicação plausível para o seu porquê. Eichmann era, segundo Arendt, um ser irritantemente banal e isso torna então o mal por ele praticado como algo também tristemente trivial.

         Uma das grandes lições de toda esta situação descrita por Arendt é que abrir mão da capacidade de pensar ou não se preparar para ela pode ser a abertura para o mal. A violência que se torna banal é fruto de homens que encontram uma condição institucional que assim o permite, de um vazio de pensamento que impede uma abertura para o mundo que deveria nos impactar e mesmo surpreender. O mal é assim, principalmente, o resultado de pessoas banais, que encontramos na rua todos os dias, as quais, sem disposição para pensar e espantar-se, aceitam e obedecem mesmo às ordens mais absurdas e são capazes de cometer, com normalidade assustadora, atos maus, cruéis e horríveis para quem os contempla com uma mínima capacidade de pensamento, que deveria levar à empatia. Esta perda da capacidade de compreender gestos e ações absurdas do dia a dia como más, como o segurança que humilha pessoas nos bancos, a funcionária nos pronto socorros que ignora o sofrimento alheio, o policial que age de forma truculenta e injustificada com pobres coitados e tantos outros agentes comuns é consequência de não reputar suas ações como más, e sim como obedientes à uma normatização que espera exatamente ações não refletidas. Eichmann era um homem comum e tolo, que colocado por circunstâncias peculiares na posição que ocupou, agiu como agiu.

       A banalidade do mal que ainda assistimos é, portanto, filha direta da ignorância, principalmente daquela perigosa ignorância dos que não se consideram ignorantes, mas que, assim como Eichmann, munidos de clichês e lugares comuns, agora facilmente encontrados no universo virtual que, como já afirmou Umberto Eco, deu voz ao idiota da aldeia, destilam suas explicações absurdas, incongruentes, repetitivas e toscas para seus atos ou omissões. Temos também assistido pasmos à condução de figuras, à semelhança de Eichmann, tão patéticas e desprovidas tanto de capacidade intelectual mínima quanto empatia, a postos chave da administração pública; não se deve esperar o “bem” procedente destes indivíduos.

      Em suma, a vacina contra o mal do qual aqui se falou é uma só: conhecimento. Mas como ativar tal vacina em tempos nos quais o saber e o ensino tornam-se até motivo de escárnio? Eis um dilema de dificílima mas necessária solução.

Para saber mais:

Entrevista lendária de Hannah Arendt em alemão legendada em português:

Filme sobre Hannah Arendt que aborda seu papel cobrindo o julgamento de Eichmann:

https://youtu.be/wwbH7HQ27gs

Obra que trata exaustivamente do tema da banalidade do mal segundo Hannah Arendt:

https://bit.ly/3asnsP9

 

Imagem de Tom und Nicki Löschner por Pixabay

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