FREDERICO MORIARTY – Como sobreviver a uma pandemia? Como resistir física e psicologicamente a uma quarentena? No final do século XIV, o século da crise medieval, o professor e escritor italiano Giovanni Boccaccio nos ofereceu uma alternativa: retiro artístico, amizade e estórias. Decameron é um conjunto de 100 estórias e contos escritos, entre 1348 e 1353 – tempos da peste bubônica na Europa. Boccaccio dá voz aos jovens num antídoto contra o tédio do isolamento e o desespero perante à praga impiedosa.
Boccaccio e seus mestres
O escritor florentino teve dois grandes mestres: Santo Ambrósio (século IV) e Dante Aleghieri (XIII). Ambrósio reescreveu o Gênesis na obra Hexameron (palavra grega que significa ” seis dias” ). Nela, Deus criou a luz. Depois, o céu e o firmamento, a Terra e as águas no terceiro dia. Em seguida, veio o Sol, a Lua e as estrelas, as plantas, os animais marinhos e as aves no quinto dia. No sexto e derradeiro dia, o Senhor criou os homens, as mulheres e os bichos terrestres.
O Santo nos brinda com uma das mais belas interpretações bíblicas: no sétimo dia, Deus descansou eternamente em sua criatura. Ou seja, toda a obra divina foi realizada para os homens e mulheres. Deus está em todos nós, pois ao mesmo tempo em que nos criou, ao descansar em nosso interior, passou a ser parte e confundir-se com nossa existência. Por isso, Deus é onipresente, em verdade porque somos um só. Comungamos.
Do poeta maior italiano, Boccaccio tirou o esmero e a arte. Passou a vida estudando e dando conferências sobre Dante. Ele admirava de tal forma A Comédia que, em suas palestras, só citava a obra como “A Divina Comédia”. Talvez seja o único caso na história literária que um admirador tenha alterado o nome original da obra. De cada um deles Boccaccio tirou um pouco. Do Santo seguiu a estrutura: 10 dias ou decameron, em grego. Do poeta, tentou imitar o estilo e a maestria.

O contexto medieval e a estrutura de Decameron
O século XIV é conhecido na história como o “século da crise”. Anterior a ele, após quase dois séculos de guerras contra o Oriente, batizadas de Cruzadas, o Ocidente cristão reabre as rotas comerciais mediterrâneas. Aos poucos as cidades começam a renascer. Feiras, comércio ambulante e ofícios diversos se espalham por entre os feudos e às vezes no entorno destes. Nasce uma classe social: a burguesia. Circulação de mercadorias necessitam de irrigação de moedas e financiamentos. O capital inicia a sua jornada. A evolução econômica é freada, porém, com as quatro grandes crises do século XIV.
Entre 1310 e 1330, a Europa passou por três invernos rigorosíssimos que fizeram despencar a produção agropecuária e levar fome para milhões de servos. Após a “grande fome”, os feudos passaram a buscar novas técnicas agrícolas e formas de armazenar melhor e em maior quantidade seus alimentos. Inglaterra e França mantiveram conflitos militares dispendiosos e permanentes. A Guerra dos Cem Anos se estendeu entre 1337 a 1453. Formava-se o exército nacional e os reis se fortaleciam, apoiados pelo dinheiro da burguesia.

Nos feudos, a revolta na segunda metade do século era crescente. Nessa época, o nome mais comum dos servos entre os franceses era Jacques. Em 1358, explode a maior rebelião dos trabalhadores servis em todo a Idade Média. Lutavam contra a fome, a exploração no trabalho e a violência do senhor feudal. Os senhores feudais se armam e massacram os insurgentes. Mais de 45.000 servos são mortos nas batalhas conhecidas como “Jacqueries francesas”.

Por último, temos a grande peste bubônica. A doença entrou na Europa em 1348 e deixou um rastro de morte sem precedentes na história. Em 1352, quando a imunização natural derrotou o bacilo, aproximadamente um terço da Europa morrera da peste. Algo em torno de 150 milhões de pessoas. Portugal perdeu 420 mil dos seus 700 mil habitantes. A Igreja e a sociedade medieval elegeram seu primeiro culpado: os judeus. Muitos deles foram presos, outros apedrejados em praça pública e centenas deles mortos por puro preconceito.
Depois e por muitos séculos ainda, a culpa passou para os ratos. Vindos do Oriente, os ratos pretos (rattus rattus), domesticados pelos hindus, trouxeram a doença negra (a cor do vômito dos mortos). Somente no fim do século XX, os estudos revelaram a verdade: a doença era transmitida pela pulga que vivia nesse rato. Muito parecido com a história dos coronavírus surgidos no século XXI. Animais antes selvagens passam a conviver entre homens, seja pela destruição do seu habitat ou por se tornarem alimentos.
Portadores dos vírus, como o atual Covid-19 (abreviatura de Corona vírus Desease 2019), estes animais acabam por transmitir a doença aos homens. Com a peste, o excesso populacional desaparecera. Sobravam terras aos senhores. Os reis começam a concentrar terras. Os burgueses que financiavam as dívidas da população desesperada e doente, enriqueceram brutalmente com a dor e o sofrimento de milhões.

Foi nessa atmosfera que Boccaccio escreveu Decameron. A novela se passa entre os anos de 1348 e 1353, anos da peste. Na história, sete jovens mulheres (Filomena, Elissa, Pampineia, Neifile, Lauretta, Flammetta e Emilia) e três jovens homens (Dioneo, Panfilo e Filostrato) retiram-se para um palácio nos altiplanos de Florença. Ali, durante dez dias, eles entregam-se a um passatempo para enfrentar a peste: contar histórias. Cada um tem de contar uma história nova todo dia.
Ao final da décima narrativa, os dez jovens cantam, dançam e recitam poemas. Depois, escolhem o rei ou a rainha do dia seguinte. O escolhido deverá apresentar um “mote” para as histórias a seguir. Por 10 dias, os jovens contam as 100 histórias do Decameron. A grande maioria era conhecida da população europeia. Boccaccio apenas recriou-as, deu-lhes maior força narrativa e entrelaçou-as à perfeição.
Mesmo a narrativa da peste é cópia de um texto do século VIII. Boccaccio permanece porque reuniu todo um arsenal de tradições medievais e deu-lhes um novo colorido. Mas podemos destacar também suas inovações: o papel da burguesia, uma crítica sutil ao teocentrismo e a importância do amor na vida humana, como no conto de Lisabetta da Messina e a panela de manjericão.
Nesta narrativa, desenvolve-se o contraste Amor/Fortuna. Lorenzo é um simples vendedor, bonito e gentil, com todas as qualidades para despertar o amor numa jovem. Lisabetta, que pertence a uma família mercante originária de San Gimignano, personifica a energia heroica daqueles que resistem à fortuna apenas com a força do silêncio e das lágrimas de quem ama. Os três irmãos são os garantidores da honra familiar, eles não toleram o relacionamento da irmã com alguém de posição mais baixa.
O trio é forçado a intervir para trazer as coisas de volta e restaurar o equilíbrio subvertido pela loucura de amor de Lisabetta. Lisabetta é um exemplo de amor com aspectos trágicos. Na obra de Boccaccio existem outras figuras femininas trágicas nas quais o escritor realiza a plenitude de vida e a inteligência que ele chama de “grandeza da mente”.
Aliás, em várias passagens, ele dedica toda a obra às mulheres que, segundo o florentino, são as únicas capazes de absorver a riqueza da literatura – um feminista em pleno século XIV. No final da narrativa, Dioneo convence a todos de que a população de Florença iria estranhar o sumiço de três homens e sete mulheres, e isto levaria a acusações virulentas contra as moças. Passados os dez dias, os 10 amigos descem das colinas e voltam à Florença. Os três moços ficam pelas ruas e as sete moças entram na igreja de Santa Maria. Estavam elas protegidas de duas pestes: a doença e a língua humana.
Dois contos de Decameron
As 100 estórias possuem temas diversos. Sempre revelando aspectos da sociedade florentina do século XIV. Traições políticas, intrigas sociais, aproveitadores, parábolas com lição de moral, tragédias, comédias, sexo e relações humanas conturbadas. Boccaccio navegava com fluidez por todos os estilos. Fiquemos em dois exemplos:
A narradora é a jovem Elissa: Monna Tessa é uma esposa virtuosíssima. Tão virtuosa que prepara um jantar especial para seu amante, Frederico. Só que naquela noite o marido Gianni voltou inesperadamente. Monna Tessa tenta disfarçar e serve-lhe o jantar. Logo após, deitam-se e Monna finge cair no sono. Gianni a acorda e fala que alguém estava a bater na porta.
– É um fantasma!, diz a esposa.
O amante enciumado escuta a voz dela e volta a bater. Monna dá uma ordem a Gianni:
– Eu vou rogar uma praga e depois você cospe no chão: ‘Suma, seu fantasma! Volte para as profundezas. Fantasma, fantasma noturno, você veio pra cá em rabo de pé. Em rabo de pé daqui se vá. Passe no pessegueiro e coma o esterco das nossas galinhas pra nunca mais voltar.’ Pronto, agora cospe no chão, Gianni. Vamos Gianni!
E, ao ouvir o nome do marido, passou o ciúme e Frederico fez meia volta segurando o riso. No caminho havia um galinheiro e o amante meteu uma bica e as galinhas pularam assustadas e cacarejaram alto. Gianni tinha seu fantasma e Frederico poderia voltar outro dia para encontrar a bela amante Monna.

A outra história é a parábola dos três anéis contada por Filomena. Saladino era um egípcio que por meio dos negócios e da astúcia chegou ao cargo de sultão, líder político e moral de uma região. Profundamente endividado com as Cruzadas, ele vê o seu reinado em perigo. A única solução era conseguir dinheiro emprestado com o mais rico judeu do Oriente, o usurário Melquisedeque. O judeu, porém, possuía fama de avarento. Saladino primeiro pensa em aprisioná-lo, mas vê que seria difícil o intento. Então, o convida para uma reunião em seu palácio. Ali, Saladino lança-lhe um desafio:
– Qual Deus é maior? O Deus hebraico, o cristão ou o mouro?
Melquisedeque começa a contar a história dos três anéis:
“Certa vez, um homem muito honesto, rico e perto do fim da vida teria de decidir com quem deixaria a sua herança. Como ele teve muitos filhos, a escolha era difícil. E para não criar conflitos futuros, mandou talhar um lindo anel de ouro com uma inscrição do nome familiar. Na noite derradeira, chamou todos os filhos à sua cama e contou-lhes sobre o anel. Feito isso, entregou a joia ao filho mais valoroso e honesto. Este filho trabalhou a herança do pai, enriqueceu-a e, às vésperas da morte, escolheu o filho mais virtuoso para receber o anel.
E, assim, foram se sucedendo as gerações. Sempre o anel passando para o descendente mais respeitável. Até que um dia, um pai encontrou -se num dilema: os seus três filhos eram igualmente honestos, trabalhadores e íntegros. Não havia como escolher. O pai, então, procura o mais famoso ourives da região e manda talhar outros dois anéis idênticos ao original. Prontos os anéis, a semelhança era tão grande que ficaria difícil dizer qual era o original.
O pai reúne os três filhos, na última noite de sua vida, e conta sobre o anel, mas não sobre o segredo. À medida que cada um deles se despedia do patriarca, este entregava um dos anéis e dizia ser aquele o filho escolhido. E nenhum deles jamais soube a verdade. E ninguém jamais soube dizer qual o anel original.”
Saladino gostou tanto da solução dada por Melquisedeque que lhe conta a verdade: iria prendê-lo para conseguir o dinheiro, porém, havia desistido. O judeu empresta-lhe o dinheiro, o Reino floresce, o sultão paga tudo com juros e os dois tornam-se grandes amigos.
As duas histórias mostram uma sociedade medieval em transformação. A Idade Média e o tempo da moral cristã estavam passando. A família centrada no homem, típica do medievo, também desaparecia. Monna Tessa é uma mulher inteligente, que nos faz rir pelas estratégias utilizadas para permanecer em paz no casamento e ao mesmo tempo com o seu amante. Traição amorosa, virtude dúbia, possibilidades de filhos “bastardos”. Tudo aquilo que a Igreja lutou contra por séculos.
Saladino e Melquisedeque, por sua vez, são homens do renascimento comercial e da ascensão da burguesia. Uma história em que circula o dinheiro, um homem que vive do Capital. Uma parábola que descreve o direito à herança algo burguês, profundamente burguês. A “Idade das trevas” (como é pejorativa e erroneamente denominada) estava em seu outono.
Decameron e seu legado
A obra literária é um clássico universal e, portanto, eterno. Seja pela narrativa inovadora e com temas os mais diversos, seja pela força das ideias ali expostas. Mais do que isso, Boccaccio praticamente criou o dialeto florentino com Decameron. Em relação ao isolamento necessário em tempos de peste, Boccaccio nos mostra como a arte, a cultura, a poesia e a literatura podem entrelaçar as pessoas, formar amizades inesperadas, enfrentar preconceitos diversos, aproximar nossa alma do divino e ainda assim fazer passar o tempo de forma prazerosa, longe do desespero das mortes e da desesperança.

(Imagem em destaque na abertura deste post: “O Triunfo da Morte”. de Peter Bruegel, 1568)
LEIA TAMBÉM DO FREDERICO MORIARTY
Sobre Jorge Amado e Dona Flor
Sobre o filme Hair e a Guerra do Vietnã
Deixe uma resposta