Negação dos fatos, má fé e risco civilizatório

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Marcello Fontes          

     Na Atenas do século IV a. C. surge com destaque a curiosa figura do sofista. Atenas havia se tornado um centro difusor e acolhedor de novidades científicas e filosóficas, mas parece que o que realmente os atraiu foi a democracia e a necessidade que os cidadãos passam a ter de persuadir seus pares a aceitar seus argumentos na Ágora, local onde tudo era debatido por eles. Sofistas valiam-se da retórica, na qual eram mestres, para ensinar sobre tudo, pois para eles tudo podia ser ensinado a praticamente qualquer um.  Sua influência e destaque são comprovados historicamente e também pela atenção que se deu a eles, no sentido de combater suas ideias. Platão dedicou diretamente três de seus diálogos (Protágoras, Górgias e Sofista) a este embate, fora aqueles em que tal intenção não é a principal, mas também aparece. Ninguém dedicaria tanto tempo e energia a um movimento (se é que o podemos chamar assim) insignificante. Sem entrar no mérito mais técnico da atual pesquisa em Filosofia Antiga sobre os sofistas e na espinhosa questão de diferenciação entre Filósofo e Sofista, o que se pode dizer é que, em linhas gerais, o sofista era um relativista. Avessos a verdades absolutas, costumavam defender a possibilidade de afirmação de qualquer discurso, dependendo da conveniência e da circunstância. Um dos mais renomados sofistas, Protágoras, cunhou a famosa expressão que diz que “o homem é a medida de todas as coisas, das que são e das que não são”. Górgias, outro conhecido sofista, afirmou que “o que parece a mim é para mim, e o que parece a ti é para ti”.

     Talvez tudo isso soe um pouco familiar, em função de expressões que comumente ouvimos hoje, tais como “essa é a sua verdade e eu tenho a minha” ou a indefectível “isso é questão de opinião”. E a razão para esta familiaridade decorre do fato de que, a despeito de toda má fama que a tradição filosófica lançou sobre os sofistas, culturalmente falando eles por fim venceram. O mundo contemporâneo é profundamente relativista e tem nessa forma de pensamento a base de muitas argumentações, inclusive as mais progressistas às vezes, uma vez que o relativismo é uma das formas de se opor ao dogmatismo, amante das verdades absolutas.

      Platão tanto se incomodou com os sofistas em função de seu (de Platão) idealismo, que bem grosso modo e em linhas bastante gerais entende que há uma realidade eterna e absoluta a referenciar tudo o mais que não pode ser ignorada e muito menos relativizada. O idealismo prosseguiu firme na História da Filosofia e das ideias de modo geral com nuances e acepções variadas a despeito dos ataques que eventualmente sofria de tempos em tempos. O marxismo no século XIX e o existencialismo no século XX por fim desferem duros golpes contra esta forma de pensamento. Cada vez mais, o idealismo ficará restrito a dogmas religiosos ou curiosamente, a radicais e idealistas que se recusam a examinar suas teses criticamente.

     Na esteira destes golpes ao idealismo e diante de seu nocaute é que o mundo contemporâneo retoma mais fortemente o relativismo herdado dos sofistas. Mas a questão que já há algum tempo se coloca é até que ponto pode-se seguir o caminho do relativismo. Não se trata, portanto, de assumir alguma forma de idealismo e afirmar verdades absolutas como meio de entender a realidade, mas de se perceber que, a despeito de qualquer coisa, há fatos. E, particularmente no campo da ciência ou das evidências claras e concretas, brigar contra fatos não é uma atitude razoável ou inteligente. Aquele indivíduo que, diante de fatos evidentes, inequívocos e empiricamente comprovados de diversos modos insiste em afirmar o oposto ou age de má fé ou tem dificuldades cognitivas sérias decorrentes de alguma patologia. Falaremos principalmente da má fé que faz com que se afirme algo nitidamente irreal.

     O conceito de má fé é mais familiar no universo jurídico, que consiste numa espécie de intenção maliciosa no ato de litígio, quando sei, por exemplo, que aquilo que alego é falso ou não se pode comprovar, mas mesmo assim o sustento, buscando obter alguma vantagem. A má fé, nesse caso, seria uma espécie de aposta ou blefe, como em um jogo. Na Filosofia, este conceito aparece principalmente na obra do existencialista francês Jean-Paul Sartre, que vê a má fé, bem resumidamente falando, como uma espécie de autoengano que afeta a consciência. Desse modo, ela difere da mentira, que seria dirigida a outrem.  A má fé então consiste em mentir para si mesmo e assim sobrepor à realidade uma espécie de realidade alternativa na qual passo a acreditar. Claro que existe também a possibilidade da mentira pura e simples para atender interesses práticos obtidos no convencimento de que os fatos claros, evidentes e demonstráveis não são os fatos, mas alguma conspiração maléfica.

     Temos visto com muita frequência situações nas quais, mesmo diante das mais fortes e demonstráveis evidências, pessoas insistem em afirmar o contrário do que a ciência, a razoabilidade e o bom senso demonstram. Isso não é uma novidade, como veremos, mas tem se acentuado nos últimos anos por meio da livre circulação de ideias no universo virtual. Umberto Eco disse em 2015 que “o drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”. Tais colocações foram vistas como excessivas ou mesmo preconceituosas por muitos à época, contudo cada vez mais se percebe que, embora um tanto malcriadas, são cada vez mais proféticas.

     Pouco tempo após o término da segunda guerra mundial e as terríveis revelações sobre o genocídio perpetrado pelo nazismo aos judeus, por exemplo, começaram a surgir os negacionistas do holocausto, com considerações que buscavam lançar dúvidas sobre a existência deste terrível fato, apontando para supostos exageros e vitimizações dos judeus, mesmo diante de testemunhos e evidências aos milhares apontando para esta triste realidade. Desnecessário dizer que os negacionistas tinham simpatia ora mais ora menos dissimuladas com os ideais do nazismo e ainda hoje, uma rápida busca na internet situará estas falácias em sites de cunho neonazista e de extrema direita, inclusive no Brasil. Mais recentemente, começam a ganhar vulto os surreais terraplanistas, com suas teses que afirmam estar toda a ciência enganada ou mentindo deliberadamente por motivos escusos sobre a esfericidade (ao menos aproximada) de nosso planeta. A despeito de toda sorte de evidência e demonstração científica compreensível até por crianças do ensino fundamental, terraplanistas defendem com unhas e dentes a ideia de que a Terra é plana e organizam-se em grupos virtuais e reais para, tais quais fervorosos missionários, defenderem suas convicções e as propagarem. O negacionismo está também presente em uma incrível recusa em se utilizar vacinas e mesmo na não aceitação do aquecimento global. E aqui temos de nos perguntar o porquê destas ações. Defendo que, em boa medida, trata-se de uma forma de má fé, ou seja, de algum modo se sabe que o que se está afirmando ou defendendo é falso, mas por interesses mais ou menos escusos, insiste-se na afirmação.

     Não deveria causar tanto espanto, portanto, que mesmo diante de todo um consenso científico e prático mundial sobre a atual pandemia do Covid-19 e a necessidade de isolamento social para conter as transmissões e evitar o caos do sistema de saúde e mortes em número ainda maior surjam pessoas a negar tudo isso e taxar como bobagem, histeria e exagero medidas que praticamente todos os países do mundo estão adotando. Mas quando uma figura eleita para o cargo mais importante da nação faz isso, estamos diante de um risco civilizatório. Claramente tem-se aqui um problema moral que no caso do negacionismo pode ganhar contornos danosos para a própria civilização quando tais posições são assumidas por figuras que foram alçadas a posições de destaque e passam a influenciar milhões de outros. Por um lado há porções de má fé que alcançam aqueles que parecem ser de alguma forma enfeitiçados por figuras que negam a realidade e as convencem de que os fatos são outros que não os demonstráveis diante de qualquer observação e análise mais atenta e crítica. Mas por outro lado, fica patente, principalmente à medida que, mesmo com a insistente demonstração do equívoco da negação por um crescente e abalizado grupo de especialistas, tratar-se possivelmente de mentira pura e simples ou a má fé no sentido jurídico, como um blefe, com o objetivo de gerar má fé em outros para assegurar posições ao custo do que for, inclusive caos e morte.

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     O curioso e porque não dramático de toda esta situação é que os que negam os fatos ancoram-se em valores caros à civilização, tais como a liberdade de expressão e o direito à própria opinião. Mesmo as considerações mais absurdas e perigosas passam a ser, para tais indivíduos “questão de opinião”. O forte relativismo colabora para que haja uma tolerância com idiossincrasias e particularidades de pensamento mesmo as mais exóticas e sem nexo. Tudo passa a ser visto como uma espécie de “rebeldia contra a ditadura da maioria”, numa busca de equiparação com posturas questionadoras que se opuseram a ideias por muito tempo tidas como válidas e enfrentadas por indivíduos contrários ao pensamento dominante. O “detalhe” esquecido ou propositadamente deixado de lado é que ideias, principalmente as científicas, combatem-se com dados empíricos, comprovações e argumentos racionais. O indivíduo que nega os fatos, por outro lado, trabalha com convicções. Ele não tem provas nem empíricas nem racionais, mas está cheio de certezas advindas de sua peculiar, confusa e desastrosa maneira de interpretar os fatos, como uma espécie de daltonismo social e moral. Confrontado, reage atacando, tal como os intolerantes: tenho direito à minha opinião!

   Enquanto tais posições situaram-se no campo das excentricidades e mesmo da comicidade, podíamos apenas rir delas. Mas, como o momento atual bem demonstra cada vez mais, a propagação de tais negações dos fatos constitui uma séria ameaça para a civilização em termos políticos, econômicos, ecológicos e sanitários. No caso da embasada necessidade de isolamento social para contenção da atual pandemia, isso passa por falsas oposições em nome da defesa do indefensável, tais como economia versus vidas e ciência versus empregabilidade. São oposições falsas e forçadas, pois desconsideram princípios éticos básicos de apreço pela vida em sociedade. E são, como tudo aquilo envolvido na negação dos fatos, má fé: não se está interessado no emprego alheio ou no desenvolvimento econômico como vetor de produção de riqueza social, mas na diminuição temporária do lucro de poucos e na manutenção do poder.

     As razões para que esta má fé filosófica ou jurídica estabeleçam-se não é simples de ser compreendida. Passam pela crise da educação, que como Darcy Ribeiro já disse não é uma crise, mas um projeto, que leva ao analfabetismo funcional e dificuldades com o raciocínio lógico; podem ter contornos psicológicos de cunho sociopático sobre os quais outros podem falar melhor. Mas é certo que o tempo de se tolerar tais posturas apenas como divertidas precisa chegar ao fim. Aliada a negação dos fatos, vem a reboque na maioria das vezes o desprezo pela ciência, pelo conhecimento e pela reflexão, teorias conspiratórias e toda sorte de alucinações práticas que são curiosas em obras de ficção, mas terríveis para a sociedade. À medida que tais posturas são amplamente difundidas, milhões as tomam como aceitáveis e a civilização corre sérios riscos.

     É preciso denunciar e impedir tais ações. Nesta última semana, o YouTube retirou do ar um vídeo do conhecido astrólogo brasileiro autointitulado filósofo no qual, sem meias palavras, afirmava que a pandemia do Covid-19 não existe. Nos últimos dias, foi a fez de Twitter, Facebook e Instagram removerem postagens presidenciais com conteúdo que, no entender das plataformas, pode levar ao equívoco e risco às pessoas. Teriam as plataformas e redes sociais agido com censura à liberdade de expressão destes indivíduos, violando um princípio básico da sociedade democrática ou apenas impedido a propagação de nocivas negações dos fatos em momento crucial? Se você não nega os fatos, fica claro que se agiu bem e seria oportuno que cada vez mais atos assim sejam tomados, sempre que a má fé da negação dos fatos puser em risco a humanidade.

     Embora o não saber seja um princípio para a busca do conhecimento quando não se é tolamente orgulhoso dele, é preciso lembrar, como já disse Barack Obama, incrivelmente repetido por Ronaldo Caiado nos últimos dias, que “na política e na vida, a ignorância não é uma virtude”.

Para saber mais:

Matéria do ”profissão repórter” com negacionistas: https://glo.bo/33PBoRh

Charges de Laerte Coutinho utilizadas com autorização da autora.

2 comentários em “Negação dos fatos, má fé e risco civilizatório

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  1. Parabéns pela matéria, Marcello. Vê-se o cuidado em trabalhar conceitos e definições do campo filosófico, além da capacidade argumentativa voltada à elucidação da razão, em detrimento da estupidez.
    Aliás, a depender de certas posturas de pensamentos e de práticas (em nome da (i)rracionalidade?), com certeza a sociedade correria o sério risco de mergulhar numa neoidade das trevas…
    E no entanto, tais forças estão aí, atuantes e logrando visibilidade, até porque têm recebido apoio de figuras alçadas a postos de influência.
    Ora, no universo latinoamericano, que praticamente acabou de sair de sua pré-história (pós-anos 1980) – e aqui nos referimos aos violentos regimes de exceção instaurados no pós-guerra, no contexto da Guerra Fria, ainda operam no vácuo da desinformação, do analfabetismo, e mesmo de políticas públicas sociais e educacionais de governos de uma democracia incipiente, voltadas à docilização das massas – e não à emancipação política no sentido da atuação de um Estado que tenha a intenção clara de formar uma cidadania que se proponha a romper com as forças políticas e produtivas que as escraviza, por assim dizer, mantendo o país na situação de atraso relativo, ou na expressão que utilizo na minha dissertação: desenvolvimento inacabado. Sugestivo, não?

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