
GERALDO BONADIO – Em 1963, então com 21 anos, por conta da aposta mais louca que Vitor Cioffi de Luca fez em sua vida de editor de jornais, troquei meu emprego de segunda a domingo na Rádio Cacique pela incumbência de produzir as seis edições semanais do Diário de Sorocaba.
Nunca havia trabalhado numa redação de jornal, mas o Vitor, acolhendo numa recomendação do mestre José Duarte Vannucchi, me confiou a difícil tarefa de suceder, no jornal que começara a circular quatro anos antes, Sérgio Coelho de Oliveira que, em razão de sua semelhança com o meia esquerda do melhor time que a Portuguesa de Desportos teve em todos os tempos, passou a ser conhecido Pinga.
O novo trabalho exigiu mudanças.
Troquei a Cacique, onde, durante três anos, passara por praticamente todas as funções, exceção feita à crônica esportiva e ao que se chamava à época de técnica de som, pela tarefa de conduzir a produção das edições quotidianas do jornal, que à época ainda funcionava num sobrado na esquina das ruas da Penha com a Maylasky.
Nos anos de Cacique minha jornada diária começava às 6 da manhã, quando o prédio da rádio, na Miranda Azevedo, próximo à Manoel José da Fonseca, era aberto e se iniciava a programação do dia, da qual eu era o locutor comercial. No Diário, a jornada começava no início da tarde e ia até o fechamento da edição. O mais complicado foi trocar as aulas noturnas da OSE, onde eu cursava a 3ª série do ginásio – equivalente ao atual 6º ano do ensino fundamental -, nas quais dividia o espaço da sala de aula com pessoas de idade semelhante à minha, passando a conviver com adolescentes, em média, seis anos mais novos.
Vivia o Brasil, naquele momento, um processo de efervescente debate político e eu, por conta disso, comecei a trocar minhas posições conservadoras por outras mais à esquerda. Tornei-me diretor do Grêmio Estudantil “Dr. Cyrillo Freire”, comecei a conviver com estudantes ligados à Juventude Estudantil Católica, na maioria alunos do Estadão, e, em pouco tempo, deixei de me empolgar com a brilhante retórica incendiária – mas empedernidamente direitista – de Carlos Lacerda e a me interessar por posições mais à esquerda. Nem sempre encontrava, na cidade, os livros que gostaria de ler e comecei a adquiri-los pelo Correio.
À época, morava com meus pais na rua Ubirajara, Vila Gabriel, e meu acesso ao Correio se fazia por uma agência situada na vizinha Vila Progresso. Um dia, recebi ali o aviso de uma encomenda, a ser retirada na Agência da rua São Bento, que tinha a certeza de não haver feito. Como eram livros e o valor do reembolso postal cabia no bolso, retirei o pacote.
Continha três livros de uma editora – a GRD – desconhecida para mim. Um destes, “Os prisioneiros”, reunia contos de um autor do qual nunca ouvira falar antes e cuja temática e vocabulário me deixaram entre surpreso e assustado. Tornei-me, assim, um dos primeiros sorocabanos a ler Rubem Fonseca, que morreu hoje, no Rio de Janeiro, aos 94 anos.
Mais de um quarto de século depois, durante um biênio em que residi em São Paulo, vim a conhecer o editor – Gumercindo da Rocha Dórea, baiano grapiuna, como Jorge Amado e Jacob Gorender, mas, ao contrário deles, integralista – que me contou a história do livro.
Fonseca, advogado da Light no Rio de Janeiro, confiava à secretária a tarefa da datilografia final dos contos, com a ordem de mantê-los ocultos numa gaveta. Ele os descobriu, impressionou-se com o estilo, conseguiu que ela lhe repassasse uma cópia dos textos e os editou sem que o escritor soubesse antecipadamente.
Isso assegurou a um dos mais bem sucedidos ficcionistas brasileiros, posteriormente membro da Academia Brasileira de Letras e ganhador do Prêmio Camões, um lugar no fantástico rol dos editados de Gumercindo. Pioneiro da ficção científica no Brasil – editou, inclusive, um dos primeiros brasileiros a se arriscar no gênero, o jurista Rubens Teixeira Scavone, que tive como professor de Direito Internacional na FaDi – seu leque de editados é o mais variado possível. Para ficarmos só nos brasileiros, abriga múltiplas tendências artísticas e ideológicas, vai de Benedito Rui Barbosa (o da novela Pantanal) a Nélida Piñon, de Abdias Nascimento a José Alípio Goulart.
O Guga, como o conhecíamos na Editora Convívio, quando lá trabalhei entre 1979 e 1981, editou ainda um segundo e não menos impactante livro de Rubem Fonseca, “A Coleira do Cão”, que li, também, na edição inicial.
Com mais de 90 anos, é hoje um dos mais vetustos editores brasileiros e, apesar dos poucos recursos com que sempre trabalhou, também um dos mais importantes.
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