FREDERICO MORIARTY – Quinta feira, 13 de outubro de 1977, Geisel anuncia a demissão do ministro da Guerra Sylvio Frota, partidário da linha dura. Ainda teríamos sete longos anos do regime ditatorial. Naquela mesma noite, o time da massa, o time do povo, que viu sua torcida crescer exponencialmente no maior jejum de títulos da sua história, decidia a final do Campeonato Paulista de Futebol. O Sport Club Corinthians Paulista enfrentava pela terceira vez a Associação Atlética Ponte Preta de Campinas.
Nos dois jogos anteriores, cada agremiação venceu uma partida. Que viesse a terceira, antigamente (e totalmente politicamente incorreta) dizíamos: a “negrinha”. Jogo tenso, truncado, nervoso. Mais de 90 mil corintianos rasgando todas as unhas. Um árbitro fanfarrão que gostava de aparecer mais do que os jogadores (e corintiano fanático), Dulcídio Vanderlei Boschilla.
Aos 37 minutos do segundo tempo, após um bate e rebate na área da Macaca (apelido da Ponte), Basílio enfia uma bomba no canto esquerdo do goleiro Carlos. Gol do Corinthians! Veja nas imagens abaixo o gol histórico e a narração incomparável de Osmar Santos (torcedor do Santos, diga-se de passagem).
Eu, garoto de quase 10 anos, palmeirense roxo, não gostei nada daquele gol. A cidade de Sorocaba parecia em guerra. Durante vários minutos, a urbe festejava o gol do alvinegro. A terra rasgada parecia tremer. Dez minutos depois veio a consagração: Dulcídio pede a bola e declara encerrada a partida. Injustamente foi acusado de interferir no resultado. O Corinthians venceu porque foi melhor. A fiel, a torcida que nunca desiste, poderia gritar depois de 23 anos – é campeão!!
As ruas da cidade foram tomadas pelas caravanas que misturavam desabafo, orgulho e fim do sofrimento. Mal sabiam que após aquela longa seca o time passaria a colecionar glórias. A partida foi em São Paulo. Na década de 70, as tevês passavam um jogo por mês e olhe lá. A final dependia do sinal. Na capital ninguém assistiu. Sobravam pra gente três alternativas: ir ao jogo, ouvir pelo velho radinho de pilha ou comprar o Jornal da Tarde do dia seguinte.
O extinto diário era do grupo Estado. Tinha uma leitura mais leve e.dedicava muitas páginas ao esporte. Entre os 70 e 80 dois cartunistas, Gepp & Maia, faziam desenhos dos gols da rodada. E foi assim, pelas páginas do Jornal da Tarde, que milhões de corintianos viram o gol mais importante dos primeiros 70 anos do time.

O Jornal da Tarde nasceu em 1966, em plena ditadura. Trazia uma linguagem mais jovial e menos parnasiana daquela usada por seu “pai” editorial, O Estado de São Paulo, jornal mais antigo em circulação no Brasil. O jovem jornalista Mino Carta foi chamado para ser o editor-chefe. Destacavam-se o fotojornalismo, a linguagem menos rebuscada, as grandes reportagens-denúncia.
No futebol, além das charges de Gepp & Maia, os textos eram agradáveis com vários narradores. O Jornal da Tarde “entrava” na partida. Descrevia lances, entrevistava atletas e dialogava com os torcedores da arquibancada. Fazia a gente se sentir no meio do gramado.
Sempre fui fanático por futebol e esportes. Em casa havia assinatura da Folha e do Estadão. Mas nas segundas e quintas, dias seguintes à rodada de futebol, tinha Jornal da Tarde também. Quando fui fazer faculdade em São Paulo nos anos 80, a grana era curta pra comprar dois jornais. Era difícil escolher entre estes gigantes, o que me fez optar pelo JT. Não me arrependo. Tenho na memória algumas edições marcantes.
Copa da Espanha de 1982. Aos 14 anos, eu teria o privilégio de ver o Brasil campeão do mundo. O técnico Telê Santana montou um time fantástico. Jogava bonito, fazia gols, ganhava com facilidade de adversários difíceis como nos 4 a 1 contra a Alemanha na semifinal do Mundialito de 1981 ou o massacre sobre a então campeã Argentina, com o espetacular Maradona – o melhor que vi jogar até hoje – no torneio citado.
A certeza no título era tão grande que pedi e minha mãe mandou costurar um terno inteiro amarelo e uma camisa azul social. Compramos uma gravata verde e pronto: era um figurino que vi num torcedor fanático na Copa do México, em 1970. Não me preocupava o Brasil ter perdido os dois maiores centroavantes do planeta e ter de levar dois artilheiros perebas. Careca operou o menisco e Reinaldo estava com uma lesão. Telê não teria seu quadrado mágico. Serginho Chulapa era goleador, guerreiro, mas era como colocar um elefante num palácio de cristais.
No fanatismo, gravei uma fita com todos os gols do Brasil na rádio. Foram 4 vitórias convincentes. No jogo que nos levaria à semifinal enfrentaríamos a Itália. Seleção até então capenga, que havia passado pra fase decisiva no milagre, com 3 empates e 2 gols a favor. O artilheiro do time era um tal de Paolo Rossi, que ficara dois anos afastado do futebol por ter vendido jogos para a Lottocalcio, a loteria italiana.
Quando entrou em campo Paolo Rossi estava há quase dois anos sem fazer gol e o Brasil precisava apenas empatar. Onde será a festa? Combinávamos com os amigos. Mas veio a tragédia do Sarriá. Rossi faz 1 a 0, o Brasil empata. Rossi faz 2 a 1 e só no segundo tempo empatamos. Aos 30 e poucos, Rossi faz o terceiro dele e da Itália. Passamos os oito últimos minutos martelando o gol de Dino Zoff e nada. Itália 3 a 2 no Brasil. Eliminados.
Chorei por um bom tempo. A cidade de Sorocaba morrera. O sol aparentava estar quebrado ao meio. Joguei a fita com os gols no meio do mato. Nunca uma derrota me doeu tanto. No dia seguinte, em meio ao silêncio sepulcral do país (só repetido na morte de Ayrton Senna), o Jornal da Tarde fez uma das mais perfeitas capas da história jornalística do país.

Nesse mesmo ano, o Jornal da Tarde encerrou uma “aposta” com o governador de São Paulo nomeado pela ditadura, Paulo Salim Maluf. Quando assumiu o governo Maluf criou uma estatal de petróleo paulista, a Paulipetro. O repórter do JT questionou o “Doutor Paulo”:
– Governador, todos os pesquisadores da USP afirmam que é impossível existir petróleo em São Paulo, pois a formação geológica do estado foi em outra era…
– A USP só sabe pesquisar a importância do milho no uísque…
– O senhor assume o risco?
– Sim! Em 1.000 dias vai jorrar petróleo em São Paulo!
E veio a aposta no JT. Gepp & Maia desenharam um Maluf que aparecia na contracapa. Abaixo da pequena charge os dizeres “faltam 999 dias para Paulinóquio achar petróleo em São Paulo”. E assim foi: 900, 800, 400, 200 e 100. Nesse dia a charge passou para a primeira página. No alto e à direita, ao lado do nome do jornal. Faltando 50 dias o nariz do Maluf crescia.
Nos últimos dez dias já ocupava meia página, cortando reportagens. Veio o dia fatídico. Corri às bancas e estava lá: o Maluf no canto direito, parte de baixo. O nariz atravessava toda a primeira página e continuando na última página. Os dizeres: “Paulinóquio não encontrou petróleo em São Paulo”. Nada mais nas duas páginas. Jornal corajoso. O povo como sempre, tomou chá de esquecimento, mesmo com a história e o prejuízo de US$ 20 bilhões e a cidade elegeria Maluf prefeito 10 anos depois.

Esquecimento maior teve a população da cidade de São Paulo em 1985. Numa eleição com antigos líderes da esquerda, como Rogê Ferreira e dois intelectuais em início de carreira política, Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Suplicy, o povo escolheu o ex-presidente golpista e autoritário Jânio Quadros. Jânio ganhou a Presidência em 1960. Com apenas setevmeses no cargo, simulou um golpe e fracassou, terminando por ter a renúncia aceita. Sumiu da política por quase 20 anos. Voltou nos braços do povo. Quem era mais insano na história nunca saberemos. Mais uma vez a capa do JT foi primorosa em captar o momento.

Muitas capas, muitos textos e muita reportagem. Quem sabe um dia as faculdades de comunicação “percam tempo” estudando o JT .
Num 31 de outubro de 2012. Exatos 35 anos do título do Corinthians. Próximo ao título mundial do clube, o Jornal da Tarde fechou suas portas, agradecendo a cidade de São Paulo. Tenho certeza de que se ainda existisse em 2019, ao contrário do tom elogioso e suave comemoração dos órgãos de imprensa com a eleição de Bolsonaro, o Jornal da Tarde traria uma capa semelhante a que publicou no dia seguinte à derrota das diretas já em 1984.

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