Mercadoria como fetiche e arte como mercadoria

          Um amigo contava uma história muito curiosa e reveladora, que pode parecer até um pouco inverossímil, mas que ele jurava ser verdadeira. Dizia ele que certa vez, em um mercado, deparou-se em suas compras com um xampu para cachorro. A embalagem era muito bonita e atraente. Ao abrir o frasco, sentiu um cheiro delicioso e muito agradável. Não teve dúvidas: precisava adquirir aquele sensacional produto. Foi só quando chegou ao caixa para pagar suas compras que se lembrou de um detalhe: não tinha cachorro. Talvez algo parecido em outras circunstâncias já lhe tenha acontecido. Afinal, o que se esconde por trás da mercadoria? Quais as forças que nos fazem ver e perceber a mercadoria, seja ela qual for, como objeto de desejo, a nos iludir e atrair como uma espécie de fetiche?

          Fetiche é um termo utilizado na descrição de determinadas práticas religiosas, particularmente o animismo (crença dos povos primitivos de que almas e espíritos animam todas as coisas vivas e inertes do universo), utilizado pela primeira vez em 1757 em francês, mas originada do termo português feitiço, que por sua vez decorre do latim “facticius” (artificial, fictício). Em linhas gerais, consiste em atribuir algo mágico ou místico a um determinado objeto que vai além daquilo que ele é material e objetivamente. Posteriormente, o termo foi utilizado por Immanuel Kant em 1764, em sentido depreciativo de certos aspectos religiosos e por Sigmund Freud em 1927, para caracterizar determinadas preferências sexuais que envolvem a erotização de objetos ou partes do corpo não usualmente erógenas, sendo este possivelmente o uso mais popular do termo hoje. Outros pensadores como Voltaire, Hegel e Comte também fizeram uso do termo, em sentidos diversos.

Fetiche Portinari
Cândido Portinari: Fetiche (1959)

          Karl Marx toma o termo fetiche em 1867, em sua obra magna “O Capital”, para explicar como se atribui um valor e uma importância à mercadoria que não lhe é intrínseca, ou seja, como a mercadoria esconde o valor social e de uso do objeto que nela se torna. Para Marx, há certo “mistério” no modo pelo qual um produto torna-se mercadoria e passa a ter um valor determinado não por aquilo que materialmente é, mas por aquilo que passa a representar como objeto de desejo de um mercado consumidor. Dizia ele que “uma mercadoria aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise resulta em que ela é uma coisa muito intricada, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos”. Marx está, como muitas vezes o faz, sendo um tanto irônico, pois aquilo que seria um aparente mistério, no sentido de não se poder perceber de forma imediata e clara em um primeiro momento, explica-se pela transformação de valores do produto ao se tornar uma mercadoria: de valor de uso, passa ao valor de troca. O valor de uso é aquilo que é próprio de cada produto, que passa a ter valor pelo uso que se necessita fazer dele de modo a suscitar, inclusive, a transformação material pela qual, por exemplo, a madeira torna-se uma mesa. Mas quando este produto passa a ser considerado a partir da relação de trabalho entre aquele indivíduo que realiza a transformação da matéria em produto e que deverá ser quantificado para que se possa dar um valor, mas de troca, daquilo que agora ganha o status de mercadoria é que surge o místico sentido dessa nova relação, que de social passa a ser fetichista, visto que se pode atribuir a uma mercadoria o valor que se desejar com justificativas que não se encontram no campo da objetividade. Quando um objeto torna-se mercadoria, passa a circular num mundo nebuloso de relações que vão além daquilo que os homens podem compreender a não ser por meio de símbolos e convenções por vezes obscuras e artificiais, que nada tem de natural. E por mais que o tempo de trabalho despendido para a produção de algo seja sempre uma grandeza que se impõe, a mercadoria não terá seu valor de troca apenas firmado nisso. Grosso modo, o fetiche da mercadoria consiste em esconder o aspecto social e prático do trabalho contido na mercadoria, para fazer crer que a mercadoria por si mesma possui algo intrínseco que garante seu valor. O fetiche da mercadoria é, portanto, como o significado em latim que originou o termo, artificial e fictício.

fetiche da mercadoria

          Embora não esteja diretamente relacionado ao uso do termo por Marx, considerar uma mercadoria como um fetiche quando se passa a desejar algo que, no fundo, não se tem real necessidade imediata, material e prática, que de algum modo é desenvolvida e criada por meios sociais e psicológicos em tempos de consumismo desenfreado como o nosso também cabe muito bem. E mais: esta suposta necessidade que se passa a ter em relação à mercadoria é produzida pelo próprio mercado. Muitas vezes, o processo pelo qual se atribui valor a uma mercadoria não apenas aliena o trabalho de quem a produziu, mas também torna o seu consumidor em um refém que desenvolve para com seus raptores uma relação que pode ir do amor e ódio, tal qual a relação do viciado e do traficante, até chegar a uma espécie de “síndrome de Estocolmo”, pois passo a ter um apego e afeto por aquele que me explora, seja por suas práticas comerciais abusivas, seja pela engambelação de uma “gourmetização” fajuta para justificar o preço escorchante. Pois, afinal, necessito da mercadoria e gosto tanto dela que passo a apreciar quem a produz e comercializa. Não me contento só em consumi-la, mas quero ter e colecionar tudo que se relacione com ela. E se me perguntarem por que, direi apenas que é porque preciso, e pronto.

          Esta mesma condição apontada por Marx em relação à mercadoria de modo geral vai poder ser observada também no campo artístico e cultural, a partir do momento em que a arte também se torna uma mercadoria. Como vimos no artigo “Reprodução, arte e transformação”, quando ocorre a reprodutibilidade técnica da obra de arte ela não apenas passa a ter a possibilidade de ser reproduzida, mas passa a ser elaborada para ser reproduzível e consumível. Será em uma marcante e visionária obra filosófica de 1947, escrita a quatro mãos, onde encontraremos os primeiros e geniais apontamentos sobre o fetiche da mercadoria aplicado a arte. Trata-se de “Dialética do Esclarecimento, de Theodor Adorno (1903 – 1969) e Max Horkheimer (1895 – 1973), expoentes da Teoria Crítica da sociedade, corrente interdisciplinar surgida em Frankfurt, também chamada em certos círculos de Escola de Frankfurt, que buscou reinterpretar as teses de Karl Marx para o seu tempo presente de modo crítico e não utópico. Nessa curiosa obra, dividida em capítulos aparentemente assistemáticos e alguns excursos (espécies de desvios do tema principal, digressões), o objetivo é uma crítica ao papel instrumental e dominador que a racionalidade, tão louvada e destacada no projeto iluminista, passa a representar principalmente no capitalismo industrial, representada pela técnica e a ciência. E é nessa obra que se desenvolve o conceito de indústria cultural, que de certo modo irá explicar a fetichização da arte como mercadoria.

          Apesar da Dialética do Esclarecimento ter sido escrita a quatro mãos por Adorno e Horkheimer, como já mencionado, há certa concordância entre os estudiosos sobre ser o capítulo “Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas” claramente mais associado ao percurso intelectual de Adorno, por isso nos referiremos apenas a ele de agora em diante. Sua análise sobre o que chamou de indústria cultural surge em parte de impressões que teve do famoso texto de Walter Benjamim sobre a reprodutibilidade da obra de arte, mas há uma clara discordância entre eles. Ambos consideram largamente o papel do cinema em suas análises, mas enquanto Benjamim via o cinema como uma possibilidade revolucionária, Adorno o enxerga como um elemento de alienação e mistificação instrumentalizado pelo poder econômico.

mercado e mercadorias

          Para Adorno, o conceito de indústria cultural deve diferenciar-se de cultura de massa, até para evitar alguma real possibilidade de se confundir suas teses com o surgimento de uma cultura procedente das massas a influenciar a sociedade de baixo para cima, mais ou menos o que chamamos hoje de cultura popular. Pelo contrário, o que ele passa a compreender em seu exílio nos EUA a partir de 1938 (como judeu alemão que fugia da perseguição nazista) é que o capitalismo desenvolveu um meio de controle de cima para baixo da própria sociedade a partir daquilo que se considera como arte e entretenimento. O termo indústria não deve ser compreendido literalmente, a despeito de certas atividades, como a cinematográfica e fonográfica até comportarem tal designação, mas referente, sobretudo, à racionalização dos procedimentos de planejamento e a consequente padronização do produto. Esta padronização tornou-se capaz de produzir produtos em anseios previamente desenvolvidos na sociedade, mesmo que alguma aparente variedade seja apresentada como possibilidade de uma ilusória escolha para o consumidor dos produtos da indústria cultural. Mesmo o outsider, aquele indivíduo que se vê como não pertencendo a qualquer grupo determinado e como rebelde, é previsto pela indústria cultural em sua oferta de mercadorias de consumo. O estilo passa a ser, portanto, uma mera ilusão, pois aquilo que originariamente na arte distinguia o particular do todo, agora com as mercadorias culturais promove uma falsa identidade do particular com o universal, já que tudo pertence, em última análise, à indústria cultural. Ou seja, não há escapatória. E como agora a arte não mais tem a ver com qualquer critério de autonomia ou unicidade, mas de consumo e vendagem, é preciso adestrar o consumidor de tais mercadorias para que ele prontamente identifique novidades e tenha interesse em produtos que são, no fundo, idênticos. A racionalidade e a técnica permitem que se desenvolvam certos truques de linguagem padronizada e efeitos que fazem despertar no indivíduo o pronto interesse por consumir a mercadoria cultural que supõe ter escolhido de forma subjetiva e pessoal.

          Para que tudo isso ocorra, Adorno entende que a indústria cultural operou uma apropriação do “esquematismo kantiano”. Muito simplificadamente, o que o filósofo alemão Immanuel Kant pretendeu com tal esquema em sua “Crítica da razão pura” foi defender que o intelecto não tem acesso à coisa em si, mas a uma representação dela por meio dos sentidos, bem como os conceitos puros do intelecto não podem acessar o objeto. Haveria a necessidade de uma mediação, representada pelo esquematismo, que se dará por meio de categorias que existem no intelecto antes de qualquer sensibilidade, como tempo e espaço. A indústria cultural passaria a tomar o lugar, de certo modo, deste esquematismo, principalmente por meio dos recursos audiovisuais, alterando e controlando nossa forma de percepção da realidade sensível e consequentemente a maneira como percebemos o mundo. Adorno diz que “quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam os objetos empíricos (relativos à experiência), mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme”. Mais uma vez, não há como escapar de tamanho controle, e ele sequer chegou a conhecer a realidade virtual.

          A indústria cultural age também de modo cruel e controlador, à medida que o próprio entretenimento seria uma forma de se manter o indivíduo pronto para o reinicio de suas atividades, sendo inclusive uma espécie de continuidade do próprio trabalho, no sentido de manter o indivíduo alienado da própria realidade e não permitir qualquer aprofundamento da subjetividade que possa levar a questionamentos, numa primazia do todo sobre o indivíduo. Sobre isso, é interessante ver que alguns chegam a assumir isso de modo claro e direto, seja a indústria cultural, seja o indivíduo: um forte segmento de conteúdo não reflexivo, longe da introspecção, o desejo de “não pensar”, de apenas ser levado pelos conteúdos culturais, artísticos e de entretenimento que nos “relaxam” e preparam para o retorno das atividades “sérias”. Qualquer aprofundamento ou criticidade em meio a isso é chata e não relaxante.

           Em termos específicos de sua fetichização como mercadoria, a arte e a cultura assumem um papel que Adorno considerou paradoxal: ela não se submete à alternância entre valor de uso e valor de troca, pois o que interessa não é a posse realmente, mas uma espécie de “finalidade sem fim”, na qual o que de fato importa não é qualquer prazer estético, mas “estar por dentro” e a conquista do prestígio que daí advém, não qualquer real experiência com o objeto artístico.

          Talvez após as considerações sobre a mercadoria tornada fetiche e a arte tornada mercadoria, devêssemos nos perguntar o que realmente tem orientado nossos hábitos de consumo e mesmo de suposto gosto. É muito importante dar-se conta de que muito do que fazemos e decidimos não é realmente fruto de nossa decisão consciente, pois é tal o nível de influência e coerção social ao qual somos submetidos que atos como o de um indivíduo que compra xampu para cachorro sem ter cachorro passam a ser “fichinha” perto do que fazemos sem realmente saber de modo plenamente consciente que estamos fazendo ao consumir, comprar, vestir-se, ouvir música e assistir filmes, por exemplo, e achar que somos as mais originais e autênticas das criaturas.

          É importante dizer que Adorno mais tarde reviu suas posições tão negativas quanto ao que ele chamou de indústria cultural e não por confusão ou inconstância, mas por ter a compreensão, muito presente na teoria crítica, de que uma constante reformulação na teoria é necessária a cada contato com seus objetos, para mudar a teoria se o objeto tiver mudado. E em 1966, ele chega a afirmar que “a ideologia da indústria cultural contem o antídoto contra sua própria mentira”. Mas será preciso uma atenção e uma crítica contínua para que, ao invés de ser enredado pelos mecanismos de controle da indústria cultural e pelo poder quase mágico das mercadorias, as utilizemos como elementos de transformação da sociedade. Momentos de crise quase sem precedentes como os que vivemos hoje podem fazer com que nos apropriemos dos bens e mercadorias da indústria cultural não só para o lucro a todo custo e o controle de mentes e vontades. Mas isso já é assunto para outra prosa.

 

Para saber mais:

O Capital, de Karl Marx, Livro I (o conceito de fetiche da mercadoria encontra-se na seção I, capítulo 1, item 4): https://bit.ly/2S3c6Kw

Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer (as questões aqui tratadas estão no capítulo Indústria Cultural): https://bit.ly/3eNr7tS

Imagem destacada: Salvador Dalí. As imagens não legendadas são de vasto uso na internet e não houve sucesso e se encontrar seus autores. Se eles se manifestarem, prontamente terão os créditos associados a elas.

 

3 comentários em “Mercadoria como fetiche e arte como mercadoria

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  1. A atracao pelo frasco de xampu não teria a ver com a apreciação da arte contida na apresentação do mesmo? Alguém, ainda que em muitas mãos, projetou aquele objeto…Claro, ele poderia restringir -se a admirá- lo como um quadro de museu. Há quem roube objetos de arte para “possuir” aquela arte, há quem domine o ser amado como um objeto de arte possuído só para si…Não seríamos todos, afinal, fundamentalmente capitalistas?

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    1. A história ilustra como a mercadoria exerce um poder quase místico sobre as pessoas, que não só não se perguntam pelo que está por trás do valor do produto nem sobre o por que temos necessidade dele. A “arte” do designer por trás desse produto, conquanto possa colaborar nesse processo, não seria determinante e nem deve ser confundida com os aspectos centrais da indústria cultural. Quanto a sermos todos capitalistas, isso decorre em boa medida daquilo que experimentamos como ideologia, nos termos de Marx: passamos a pensar com os valores e convicções de outros. A apropriação do esquematismo kantiano pela indústria cultural também explica isso.

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