
José Carlos Fineis
A menina parou de caminhar e olhou para o grupo que continuou em marcha na direção do poente. Olhou para trás e seus olhos encontraram os do companheiro deitado na neve. Uma perna quebrada o prendia ao solo, incapaz de prosseguir.
Não havia o que pensar: o modo de proceder da tribo de caçadores-coletores em situações como essa, ensinado de pai para filho desde sempre, era apenas um: quem não conseguia caminhar com as próprias pernas, por acidente ou doença, ficava para trás. E os que eram abandonados aceitavam esse fato até com certa resignação, pois lembravam-se, nessa hora, que também tinham deixado uns tantos para trás em seu caminhar.
A necessidade renovada a cada manhã de achar comida os impedia de conhecer a compaixão e os poupava de sofrerem pelos outros. Todos, com exceção das crianças pequenas, tinham fardos para carregar por longas distâncias. Não podiam levar nos ombros pessoas doentes ou feridas, por mais queridas, sábias, engraçadas ou amigas que fossem.
Mas a menina hesitou. Passou a mãozinha pela barriga que se contorcia.
Havia ali um bebê.
E havia algo além do feto que se revirava em suas entranhas, enquanto olhava para o homem de cabelos longos e desgrenhados sentado na neve. Um sentimento que ela nunca experimentara a impelia a ficar com ele, mesmo sabendo que também morreria de frio, na melhor das hipóteses, ou devorada pelas feras que acompanhavam o grupo a distância, alimentando-se de seus mortos e moribundos.
A menina tremeu quando seu pensamento avançou um pouco mais e abarcou a ideia, até então jamais pensada por alguém, de que podia romper com as regras da tribo. Seu coração pulsou forte quando percebeu que, se quisesse, podia ficar e morrer com aquele homem — o único, dentre todos, que a cobria de agrados, ora levando-lhe as frutas mais vistosas que conseguia encontrar, ora sorrindo para ela e abraçando-a, ora passando as mãos em seus cabelos.
Ele era seu protetor, provedor e amante desde que ela ainda brincava de esconde-esconde com as outras meninas. Quando ele não estava fora em caçadas, bastava sua proximidade para alegrá-la. Sentia de longe seu olhar carinhoso e isso a enternecia.
Seu desejo era ficar. Mas a outra vida dentro de seu corpo não aceitava a morte. Pedia calor, comida, segurança. Era como se aquele outro ser, ainda menor que um rato, pressentisse o perigo e implorasse, de um jeito que só ela podia ouvir, por sua própria existência.
A menina sentiu uma vertigem, uma vontade de desprender-se do próprio corpo e de não ter mais de pensar no que fazer. Porém, como se as pernas tivessem vida própria, começou a caminhar na direção do companheiro, arrastando os pés com dificuldade na neve espessa.
Ao perceber que ela voltava, o homem gesticulou impaciente e, girando o corpo em torno de si, enterrou os braços na neve em busca de uma pedra ou pedaço de pau com que pudesse ameaçá-la e fazê-la voltar. Por fim, com uma expressão dolorida, resignou-se a atirar punhados de neve contra a menina. E, enchendo os pulmões o mais que pôde, soltou um grito que ecoou no horizonte branco e indivisível:
“Vá!”
Ela, no entanto, continuou a caminhar como se não o tivesse ouvido e ajoelhou-se diante dele. Olhou para trás. O grupo agora era uma mancha cinzenta na paisagem. O homem ferido pegou sua mãozinha entre suas mãos enormes e puxou-a para si, fazendo-a sumir entre seus braços forrados de peles. Depois, segurou-a pelos ombros, afastou-a e ordenou mais uma vez:
“Vá.”
A menina empurrou-o com uma expressão de raiva e ficou de pé, mas não se afastou. Em vez disso, voltou-se para a direção em que o grupo seguia. Já agora mal podiam ser vistos no pouco que restava de luz. Ela sabia que naquela vastidão sem barreiras seu grito poderia ser ouvido do alto de uma montanha. Um a um, apelou aos homens e mulheres da tribo para que voltassem e ajudassem o companheiro. Chamava-os pelos nomes:
“Ó forte Obi, ele ajudou você a vencer aquele leão.”
“Bela Radi, ele contava histórias engraçadas para seu filho quando ele adoeceu.”
“Maj, Ngoi, Yuc, ele não pode mais caçar, mas pode fazer lanças afiadas para vocês caçarem.”
A menina continuou a gritar até a noite cair. Depois, sentindo que o grupo já se distanciara a ponto de não mais ouvi-la, desabou ao lado do companheiro, que procurou aquecê-la. Ficaram imóveis e abraçados sob as peles enquanto os flocos de neve caíam à luz vaga do luar e iam cobri-los lentamente.
Estavam exaustos e meio adormecidos quando perceberam um fogo dançarino que se aproximava, proveniente da direção em que o grupo seguira.
Era Nmaj, o velho.
“Trouxe fogo e alguma lenha. Trouxe peixe. Vim ficar com vocês.”
O casal trocou olhares surpresos. O homem ferido baixou a cabeça e ergueu a mão direita em reverência. Não precisavam perguntar o que Nmaj fazia ali. Sabiam que havia desistido de permanecer no grupo. Não era incomum que anciãos cansados se deixassem ficar pelo caminho. Um dia a exaustão os vencia. Sem aviso, desaceleravam o passo e observavam, retendo as lágrimas, o grupo que se afastava em sua marcha uniforme.
Acomodavam-se em algum lugar entre pedras ou árvores, procurando esconder-se das feras, e deixavam que um sono frio e derradeiro penetrasse em seus corpos. O que pensavam enquanto olhavam para as estrelas pela última vez? Nunca ninguém sobreviveu para contar, mas certamente recordavam a primeira caçada ou as brincadeiras de criança. Talvez rissem ao lembrar de algum incidente que os fez sentir medo, mas do qual, de alguma maneira – enfrentando ou fugindo – haviam sobrevivido.
O velho acendeu uma fogueira e acocorou-se o mais perto possível das chamas. Ficaram os três em comunhão silenciosa com a noite e o fogo. Tremiam por baixo das peles e, como ainda não tivessem deuses, de suas bocas não se desprendiam preces, ao passo que seus olhos esbranquiçados não deixavam entrever qualquer esperança.
Não passou muito tempo e os homens adormeceram. A menina, batendo os dentes de frio, tentava acalmar a cria que se movia dentro de si, massageando-a com as mãos. Foi quando avistou os vultos de dois homens fortes, iluminados por tochas. Carregavam peles espessas de algum tipo de urso.
Os homens chegaram sem nada dizer. Tentaram acordar Nmaj, mas desistiram quando viraram seu corpo e perceberam que estava rijo como o gelo. Sem demora, voltaram-se para a garota e o ferido, que acordara e olhava-os interrogativo, tentando imaginar o que faziam ali.
“Viemos buscar vocês. Encontramos abrigo” – disse um dos gigantes.
A menina agora corria em volta do grupo. A paralisia da morte dera lugar a uma dança desengonçada com gritos e pulos.
O fogo e a lenha foram colocados em um cesto forrado de folhas verdes. As peles de Nmaj foram recolhidas – agora ele não precisaria mais delas. Os homens começaram a caminhar puxando uma grande pele para sobre a qual o ferido fora carregado, e em que ele se agarrava com ambas as mãos. Enquanto o arrastavam, o homem sentia sob seu corpo o terreno que ficava para trás: camadas de neve alternavam-se com tocos, pedras e a aspereza irregular da terra congelada.
Por algum motivo estranho que nenhum deles sabia explicar, haviam decidido, com os outros do grupo, não deixar ninguém para trás. Infelizmente para Nmaj, demoraram-se demais no debate ruidoso sobre os prós e os contras daquela decisão.
Na caverna, a tribo se aquecia em volta de uma grande fogueira. Alguns saíram de seus lugares para receber os que haviam chegado.
A menina e seu companheiro foram colocados perto do fogo. Alguém trouxe bebida quente. Um grupo se reuniu em torno do grandalhão Nioi, que contava detalhes do resgate com gestos teatrais.
Todos comeram carne e roeram raízes em volta do fogo. Conversaram sobre caçadas e riram de lembranças dentro da noite, acomodados sobre peles, a olhar para as faíscas que se desprendiam da lenha.
Sua alegria deixou de crepitar no ritmo em que as brasas se transformavam em cinzas e as crianças adormeciam. Alguns pensavam em Nmaj, que haviam se acostumado a ter por perto desde que nasceram. Outros tentavam imaginar se a perna de Gadji – esse o nome do caçador ferido – ficaria boa e como fariam para arrastá-lo por aí, caso não conseguisse mais andar.
E assim adormeceram, sem a mais vaga suspeita de que ao voltar para resgatar o caçador ferido, o velho e a menina – e ainda que não tivessem chegado a tempo de salvar Nmaj –, haviam inventado algo mais transformador do que o fogo, mais necessário do que as lanças e as peles, maior e mais poderoso do que o sol, os rios e as montanhas, as estepes geladas e as tempestades.
Ilustração principal: fotograma do filme “A Guerra do Fogo” (Canadá/França, 1981), direção de Jean-Jacques Annaud.
Que lindo texto, meu amigo…..a vida ensina…sempre! E transforma o EU em NÓS!!
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Um dos mais inspirados textos que já li. Existem mestres no manejo da palavra que nos deleitam pela forma mas ficam a dever a mensagem. Aqui o escritor não deixa nada a dever.
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O que se tem de maior importância na vida senão ela mesma. Benditos os que acreditam nessa transformação.
Bela estória.
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Muito obrigado, Renata, Nilo, Cristina, pela generosidade de seus comentários. Vocês não imaginam como essas palavras de incentivo são importantes para mim!
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Instigante, como a perspectiva de quem escreve amplia os horizontes e se antecipa na captura de informações que, posteriormente, serão confirmadas por estudos ou pela ciência. Talvez a grande magia de quem escreve esteja nessa capacidade de clarear o que permanecia oculto.
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