Conhecer o Bem e examinar a própria vida: Sócrates e sua Ética

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Marcello Fontes

          Será que as pessoas realmente “têm” ou “não têm” Ética, conforme tantas vezes lemos e ouvimos falar nos vídeos e postagens que mais do que nunca inundam nossas redes sociais, programas televisivos e outras mídias? O que isso exatamente significa? Seria realmente a Ética uma espécie de virtude que se possui ou não? O que Ética tem a ver com Moral? Seriam variações para a mesma coisa?

      É interessante observar que, em função do crescente uso do termo Ética em campanhas as mais diversas, tanto no meio político quanto empresarial, talvez nunca se tenha falado tanto sobre algo sem que, no entanto, se compreenda o que realmente é. Isso certamente se deve ao fato de que se confunde Ética com moralismo ou conservadorismo, achando que se trata de algo de caráter emocional ou necessariamente religioso, ao menos em sua compreensão do senso comum, que acaba sendo o que se difunde com mais velocidade e penetração.

          Meu propósito é desmistificar e discutir a Ética, algo mais do que necessário na vida e nas relações de todos nós, sejam elas quais forem. E pretendo fazer isso por meio da abordagem das reflexões de diversos filósofos, que não serão concordantes com a maior parte de suas teses, a não ser pelo fato de entenderem a Ética como algo eminentemente racional. E nem poderia ser diferente, visto que a Ética é uma área da Filosofia, responsável pela reflexão, crítica e análise da moral e das ações humanas. Sim, Ética e Moral, ainda que muito relacionadas, não são a mesma coisa.

       A Moral pode ser definida como um conjunto de normas, regras, valores, leis e condutas adotadas por um determinado grupo mais ou menos amplo de indivíduos, em determinado tempo e lugar. E isso porque a moral não é algo imutável ou definitivo, como qualquer análise histórica bem demonstra, mas dinâmica e circunstancial, ainda que por vezes ciclos e circunstâncias tenham durado séculos ou milênios. O que foi moralmente aceito no passado, necessariamente não o é hoje. O que faço tranquilamente em determinada cultura pode ser extremamente ofensivo e inadequado em outra.

         As mudanças estão cada vez mais rápidas. Atos tidos como perfeitamente aceitáveis, portanto morais há pouco mais de um século ou bem menos hoje seriam vistos como absurdos e inaceitáveis, tais como possuir um escravo ou impedir uma mulher de votar e ser votada. Sim, acabamos de assistir mais uma vez um negro ser morto por um policial e uma rápida busca no Google nos fará encontrar pessoas que acham que mulheres não deveriam votar. Uma frase do ator Will Smith deixa claro o que isso significa: “O racismo não está aumentando, ele está sendo filmado”. A moral ocidental superou a moral escravagista e misógina, conquanto ainda tenhamos que permanecer atentos a intolerantes e a eventuais tentativas de retrocesso e mesmo resquícios destas condutas normalizadas no passado, mas majoritariamente rejeitadas hoje. As reações cada vez mais fortes a insistente presença de práticas já ultrapassadas moralmente falando comprova isso.

Então, temos na Moral um conjunto de normatizações válidas circunstancialmente.  E a Ética irá refletir sobre a Moral, podendo, inclusive, por meio de tais reflexões ajudar a produzir alterações momentâneas ou definitivas na Moral vigente.

          Então, temos na Moral um conjunto de normatizações válidas circunstancialmente.  E a Ética irá refletir sobre a Moral, podendo, inclusive, por meio de tais reflexões ajudar a produzir alterações momentâneas ou definitivas na Moral vigente. É interessante também considerar a origem do termo Ética, que vem do grego “êthos”, no sentido de modo de ser, caráter ou costume. A Ética parte dos costumes e do modo de ser das pessoas para se perguntar o seu porquê e criticamente examiná-los. A Ética, portanto, não é uma virtude, mas uma reflexão sobre, por exemplo, o que se considera virtude e por que razão.

         O primeiro filósofo a tratar de modo mais direto destas questões foi Sócrates, ateniense nascido por volta de 470 a.C. e morto em 399 a.C, que talvez seja um dos filósofos mais conhecidos, quase que associado à ideia de Filosofia. Um filósofo tão marcante na História da Filosofia quanto problemático no que diz respeito a real compreensão de seu próprio pensamento. Na Filosofia Antiga, existe inclusive um tema para isso: o famoso “problema de Sócrates”.

        O problema de Sócrates reside no fato de que ele nada escreveu e temos três importantes fontes que relatam aquilo que em tese teria sido dito por ele. Duas são elogiosas: Platão, com muito mais profundidade filosófica e Xenofonte, de modo mais simples, reconstroem, por meio de diálogos que tem no geral Sócrates como personagem principal, um exemplo de sabedoria, honradez e perspicácia. Outra fonte é bastante crítica: Aristófanes, comediógrafo ateniense, retrata um Sócrates caricato, tolo, espertalhão e interesseiro em sua peça “As Nuvens”.

Qual será o verdadeiro Sócrates? Provavelmente nenhum em sentido pleno. Jamais poderemos acessar completamente o pensamento do Sócrates histórico.

          Qual será o verdadeiro Sócrates? Provavelmente nenhum em sentido pleno. Jamais poderemos acessar completamente o pensamento do Sócrates histórico. Teremos que nos contentar com o Sócrates de Platão, por exemplo, para ficar no caso de maior sucesso histórico, dadas às qualidades literárias e filosóficas do autor, e procurar a duras penas separar o que é o próprio pensamento de Platão e o que reproduz em alguma medida o pensamento de seu mestre Sócrates.

       Quando iniciava meus estudos de Filosofia, lembro-me de ter feito uma pergunta nada original a um palestrante renomado, que depois seria meu orientador: – “Sócrates realmente existiu”? A resposta foi a base de uma das linhas para tratar do problema de Sócrates: -“Isso não importa. Toda a Filosofia foi construída com base na presunção de sua existência e considerando seus os pensamentos a ele atribuídos”. Sócrates permanece uma figura complexa e paradoxal para a Filosofia não apenas por esta problemática, como veremos.

      A frase mais conhecida e possivelmente mais mal interpretada da História da Filosofia é atribuída a Sócrates: “Tudo o que sei é que nada sei”. Esta consideração de Sócrates é desconcertante: como alguém tão marcante já em sua época afirma nada saber? O que realmente ele queria dizer com isso? E o que terá a nos explicar sobre as ações humanas alguém que assim se coloca?

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Alcibíades sendo ensinado por Sócrates, François-André Vincent, 1776.

          Alguns o viram como dissimulado, fingidor de ignorância e até mesmo de certa infantilidade, como o jovem político Alcibíades, retratado por Platão no Banquete. Outros, como Aristóteles, entendiam que tudo não passava de uma estratégia: “Sócrates assumia sempre o papel do interrogador, jamais do respondedor, pois ele declarava nada saber”. O sofista Trasímaco, presente no diálogo A República, irrita-se com outra característica de Sócrates associada ao não saber: “Eis tua ironia habitual. Eu bem sabia, eu predissera: tu recusas responder as questões, tu encontras escapatórias”.

“Sou sim mais sábio que este homem; pois corremos o risco de não saber, nenhum dos dois, nada de belo nem de bom, mas enquanto ele pensa saber algo, não sabendo, eu, assim como não sei mesmo, também não penso saber… É provável, portanto, que eu seja mais sábio que ele numa pequena coisa, precisamente nesta: porque aquilo que não sei, também não penso saber”.

          Nas palavras a ele atribuídas por Platão na Apologia de Sócrates, ao se defender das acusações de não crer nos deuses e corromper a juventude diante do Tribunal de Atenas, Sócrates dirá que tudo o que fez e faz é movido por ter ouvido do oráculo de Delfos, local onde havia um templo dedicado ao deus Apolo, que era o mais sábio dos homens. Inconformado com tal afirmação, pois não se considerava sábio, sem, porém, querer desacreditar das palavras divinas, passa então a dialogar com aqueles que declaravam possuir algum saber. Sócrates acreditava que, deste modo, poderia descobrir se de fato era sábio ou não. Sócrates descobre que aqueles que afirmavam ter um saber de fato não o tinham. Chega então a uma curiosa e inquietante conclusão, após um diálogo com alguém que dizia ser sábio e ter conhecimentos: “Sou sim mais sábio que este homem; pois corremos o risco de não saber, nenhum dos dois, nada de belo nem de bom, mas enquanto ele pensa saber algo, não sabendo, eu, assim como não sei mesmo, também não penso saber… É provável, portanto, que eu seja mais sábio que ele numa pequena coisa, precisamente nesta: porque aquilo que não sei, também não penso saber”. A evidente ira despertada naqueles que foram alvo de tais investigações por parte de Sócrates é um dos fatores aos quais Sócrates atribui sua má fama e as denúncias contra ele.

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O julgamento de Sócrates, English School, data desconhecida

          O Sócrates de Platão está convencido de que seu principal papel é ajudar os homens a parirem as ideias que já se encontram em sua alma imortal, fruto daquilo que foi contemplado em outro mundo. A rememoração é o meio para se adquirir conhecimento, e Sócrates, por meio de sua peculiar maneira de dialogar, propõe-se a ser um parteiro de ideias. Este método é conhecido como maiêutica, ou parto de ideias.

[…] conhecimento é igual à virtude. Se alguém conhece o que é a virtude, seria absurdo ou impossível, na visão socrática, que esse alguém não a praticasse. Conhecer o bem necessariamente levará a praticar o bem.

     Vem daí a mais tradicional compreensão da Ética de Sócrates, denominada intelectualismo moral, que pode se resumir a entender que conhecimento é igual à virtude. Se alguém conhece o que é a virtude, seria absurdo ou impossível, na visão socrática, que esse alguém não a praticasse. Conhecer o bem necessariamente levará a praticar o bem. O mal seria, portanto, fruto de ignorância, desconhecimento. Não haveria, nessa compreensão socrática, um erro voluntário, já que ele seria fruto de desconhecimento: se o indivíduo conhecesse o que é o bem e a virtude, de modo algum erraria agindo mal.

     Por isso, para Sócrates, seria tão importante ajudar as pessoas a buscarem conhecimentos verdadeiros. O conhecimento não seria, para ele, mero adorno do intelecto ou tão somente necessidade frente a alguma técnica que se precisasse dominar, mas acima de tudo o meio para se alcançar a virtude. Boa parte dos intérpretes vê no Sócrates apresentado por Platão aquilo que é chamado de unidade das virtudes, ou seja, não existiriam virtudes separadas que desenvolvo ou não. Se tiver conhecimento, a virtude congrega todas as ações boas (sabedoria, justiça, piedade, coragem, autocontrole).

        Ainda é possível perceber ecos desse intelectualismo moral de Sócrates, por exemplo em discursos religiosos, principalmente do cristianismo (que para Nietzsche não passava de “platonismo para o povo”): eu era “cego” e andava no “erro”, até conhecer a verdade; não sabia o que fazia, não tinha conhecimento de Deus, estava perdido e errante. Vez por outra essa forma de se encarar as ações humanas é também utilizada para justificar atitudes do passado mais ou menos remoto, justamente em função do desconhecimento de algum fato ou de sermos, à época, desprovidos do saber que agora temos.

        Contudo, é muito comum ouvir as pessoas dizerem que sabiam que algo era mau ou errado, mas mesmo assim acabaram por fazê-lo. Ou que tinham conhecimento do que deveriam fazer, do que era o bom e correto a fazer, mas mesmo assim, não o fizeram. Como, por exemplo, o diabético que sabe que para ele, doces são um mal em quantidades além do mínimo, mas que acaba não resistindo a um generoso pedaço de bolo. Sei que não devo trair minha companheira ou companheiro, mas acabo por me envolver com outra pessoa enquanto ainda tenho com ele ou ela um compromisso. Será que isso de alguma forma invalidaria por completo o intelectualismo moral de Sócrates?

     Antes de considerarmos falha a compreensão Ética de Sócrates, citando também exemplos de pessoas com muito conhecimento e capacidade intelectual que mesmo assim agiram mal, precisaremos relembrar o que Sócrates provavelmente tinha em mente quando falava em conhecimento, bem como as pessoas com quem Sócrates avistou-se que afirmavam categoricamente ter conhecimento do justo, do belo e de outras coisas mais, sem que, contudo, realmente conhecessem de fato.

         A resposta que muito provavelmente Sócrates daria a estas considerações e objeções seria algo como “você realmente não sabia do bem e do mal que envolviam suas ações. Provavelmente ouviu falar sobre isso, alguém lhe disse que tal ou tal ação não era boa, mas de fato não conheceu por si mesmo, caso contrário não teria feito o mal ou necessariamente teria feito o bem. Seu mal foi justamente a falta de esclarecimento e compreensão. Você não viu o bem, mas foi enganado por um prazer que se assemelhava a ele e agiu imaginando que faria algo bom. Jamais agimos pensando em fazer o mal conscientemente: no fundo, acreditamos que isso resultará em um bem. O desconhecimento nos leva a confundir mal com bem e a levarmos nosso desejo de bem, por ignorância, a fazer o mal”.

     Mas não podemos falar da Ética de Sócrates sem considerar outros aspectos igualmente importantes, que dizem respeito à sua própria vida, ao menos a que nos é apresentada nos textos que dele falam. A vida de Sócrates foi marcada por uma extrema coerência entre aquilo que cria e aquilo que vivia. E esta coerência foi tão radical que nem mesmo a iminente perda da própria vida dela o afastou.

        Após ser denunciado no Tribunal de Atenas, acusado de não crer nos deuses e corromper a juventude, Sócrates manteve a mesma postura que sempre o acompanhou. Procurou, ao invés de inventar uma desculpa ou simplesmente negar suas ações, explicá-las à luz de sua necessidade de autoconhecimento que ele traz do Oráculo de Delfos e busca tornar uma prática para todos com quem convive: “Conhece-te a ti mesmo”.

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A morte de Sócrates, Jacques-Louis David, 1787

          A coerência de Sócrates em conciliar o que cria e como vivia rejeitou, por exemplo, a oferta de seus amigos para que fugisse a fim de escapar da condenação à morte, conforme nos é relatado por Platão no diálogo Críton. A razão para tal atitude decorreu de sua crença nas leis atenienses que inclusive ajudou, como cidadão, a aperfeiçoar. Se valorizasse mais sua própria vida e fugisse, estaria considerando que as leis da cidade nada valiam agora que não lhe foram favoráveis. E assim ficou, aguardou o cumprimento da sentença e morreu.

“a vida sem exame não é digna de um ser humano”.

          Para Sócrates, agir de modo bom e virtuoso implica justamente examinar de forma constante a própria vida em busca de eventuais incoerências entre aquilo que dizemos acreditar e que praticamos. Isso é mais do que essencial, é o que dá sentido e valor à vida, conforme Platão diz ter ele afirmado na Apologia de Sócrates, que traz um relato da defesa diante do Tribunal: “a vida sem exame não é digna de um ser humano”. Ou seja, não é possível deixar de lado a análise de nós mesmos e de nossas ações, nem deixar de compreender por que consideramos algo bom e virtuoso.

         Você é realmente capaz de explicar e demonstrar por que acredita nos valores que diz acreditar? Consegue demonstrar a relação entre esses valores e o modo como age? Conhece realmente a si próprio? Busca o conhecimento como meio de agir de modo acertado?

“O silêncio diante do mal é o próprio mal”.

       Perceba que, com Sócrates, aprendemos que Ética tem a ver com a correlação entre discurso e atitude, entre conhecimento e bem agir. Cada vez menos se consegue hoje esconder o que se pensa e o que se faz. É uma necessidade imperiosa que não nos calemos diante do mal revelado ou das inconsistências de quem diz agir bem ou em nome da virtude, mas na verdade nada sabe sobre isso e finge ser o que nunca foi nem pretende ser. Podemos aqui lembrar as palavras do pastor e teólogo luterano alemão Dietrich Bonhoeffer, morto pelo regime nazista: “o silêncio diante do mal é o próprio mal”.

       Sócrates afirma ter sido impelido a fazer o exame que fez de si próprio e dos demais. Ele afirmava que seu desejo era tornar as pessoas melhores, à medida que conhecessem a si próprias e a própria virtude, pois isso as afastaria do mal. Pagou um preço elevado por isso, pois as pessoas não gostaram de ver sua ignorância, injustiça, impiedade e descontrole revelados.  Mas ele preferiu o risco à neutralidade que o colocaria ao lado de tudo isso. Ser ético, segundo Sócrates, é incessantemente examinar-se e posicionar-se. Ao menor sinal de incoerência, seja de quem for, devemos ter a coragem de denunciar. Mesmo que esse alguém seja você mesmo.

Para saber mais:

Platão: Apologia de Sócrateshttps://bit.ly/2MBAVKp

Platão: Crítonhttps://bit.ly/3783xnW

Imagens de Sócrates, artigo que aborda um pouco do “problema de Sócrates”, por Roberto Bolzani Filho – https://bit.ly/3gVsDv7

Sócrates, de Roberto Rossellini – https://youtu.be/4bxbmVx8ews

Imagem em destaque: título e autor desconhecidos, de largo uso na internet.  Caso o autor se identifique, será prontamente citado.

4 comentários em “Conhecer o Bem e examinar a própria vida: Sócrates e sua Ética

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  1. Reflexão muito interessante, acessível, muito embora não tenha perdido com a linguagem simplificada a propaganda da linguagem própria da filosofia, como ocorrem em outras áreas do saber. Admiro ainda mais a capacidade didática do meu velho amigo e irmão do coração. Parabéns!

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    1. Fico feliz por saber que apreciou. A ideia é exatamente apresentar conteúdos filosóficos do modo mais acessível possível, mas sem descaracterizar o discurso filosófico. Suas considerações são indício de que estou conseguindo.

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