FREDERICO MORIARTY – A derrota no Vietnã abalara a moral conservadora norte-americana. O país passara quase 11 anos no Sudeste Asiático. Perdeu-se por lá US$ 1,5 trilhões e 59.000 soldados, mesmo tendo jogado mais bombas contra os vietcongs do que em toda a 2ª Guerra Mundial. Movimentos em defesa da paz, luta pelos direitos civis, recessão econômica e escândalos políticos complicavam a atmosfera conturbada do país. A temporada de 1976 colocou três filmes em cartaz que resumem um pouco o estado de ânimo: a América estava ferida nas suas entranhas.
Em março de 1977 os três filmes estavam frente a frente na disputa pelo Oscar. Taxi Driver, dirigido por Martin Scorsese e estrelado por Robert de Niro e a pré-adolescente Jodie Foster mostrava um solitário e paranoico motorista de táxi, Veterano da Guerra do Vietnã, Travis (de Niro) é neonazista e tem uma obscura propensão à pedofilia. O católico Scorsese e seu eterno sentimento de culpa e o de purificar as almas perdidas, como a da menina-prostituta de 12 anos. É uma América em transe, esfacelada pela guerra mas ainda defensora da moral e da civilidade, mesmo que na porrada. O segundo é o melhor da trinca: Todos os homens do presidente (já analisado anteriormente no blog aqui) narra a história dos dois jornalistas que num fantástico trabalho investigativo levam à renúncia do presidente Richard Nixon e à derrocada do Partido Republicano em 1976. A América democrática, da liberdade de imprensa, dos valores maiores e humanos. Era possível sair do massacre da guerra, do racismo estrutural e das desigualdades crescentes.
O terceiro, talvez o mais fraco, tornou-se um símbolo da América neoliberal que viria com Ronald Reagan e os falcões das Guerras no Oriente Médio. Rocky, um lutador, é uma história simples, verossímel, por isso mesmo poderosa.

Tudo começa com Muhammad Ali. Medalhista de ouro olímpico em 1960 e por três vezes campeão da categoria mais importante do boxe, a de pesos pesados. Nasceu com o nome de escravo Marcelus Cassius Clay. Cansado do racismo, em 1965 se converte ao islamismo e assume o novo nome: Ali. Certamente foi o maior boxeador da história. Um bailarino dos ringues. Desde 1956 os boxeadores negros dominaram a categoria dos pesados: Floyd Paterson, Sonny Liston, Joe Frasier, George Foreman e o melhor de todos, Muhammad Ali. Eram imbatíveis. O último branco americano a ser campeão foi Rocky Marciano (talvez daí o nome do lutador de Stallone). Em 1974, numa polêmica luta realizada no Congo (ainda com o nome de colônia, Zaire), Ali derrota com muitas dificuldades Foreman e conquista o título pela terceira vez (perdeu o primeiro título nos tribunais no final dos anos 60, afinal se recusara a servir no Vietnã).
Meses depois e sob muita pressão da mídia para colocar o cinturão em luta, Ali enfrentaria um obscuro boxeador branco. Dono de um cartel razoável de apenas duas derrotas na carreira, Chuck Wepner é escolhido. Forte, mas incapaz de derrubar Ali. Era melhor não correr riscos com um campeão já perto dos 35 anos. Wepner surpreende a todos, apanha feito uma mula e não cai uma vez. A luta vai até o 15º round e a vitória de Muhammad Ali vem apenas nos pontos. Wepner sai aplaudido: jamais desistiu da luta, jamais jogou a toalha. A história diz que Silvester Stallone estava na plateia. E quatro dias depois o roteiro original de Rocky um lutador estava pronto. Wepner acionou Stallone nos tribunais, queria receber direitos autorais. Após um acordo financeiro, aquele recebe uma quantia em dinheiro e uma ponta em Copland.

Apollo Creed (Carl Weathers) é um super-campeão dos pesos pesados. Claramente inspirado em Muhammad Ali, ele gosta de humilhar os adversários nos ringues e provocá-los nas câmeras de TV. Tem o costume de adivinhar o round em que o pobre adversário irá cair. Exatamente como fazia Ali. A luta seria na Filadélfia, terra onde foi assinada a Declaração de Independência dos Estados Unidos. O desafiante se machuca e desiste da luta. Os organizadores dão uma sugestão a Apollo: lutar contra um boxeador caseiro, medíocre, mas que poderia lhe trazer benefícios comerciais. Rocky é a pessoa certa. Simplório, só tem os punhos para o trabalho. É leão de chácara de apontador de jogos. Não pagou a aposta; Rocky cobra com socos. Vez ou outra faz umas lutas de boxe amador. Vence a maioria delas e recebe cachês de US$ 100 a US$ 150. Tem pouca técnica de luta. Seus trunfos são o direto e o gancho de direita. Além de uma capacidade ilimitada de aguentar porradas. Oferecem US$ 15.000 de bolsa, só pra ele subir no ringue, tomar uns três a quatro socos e ir a nocaute. Isso fica nas entrelinhas. O valor era o equivalente a anos de trabalho de Rocky.
O Garanhão Italiano é fisgado. Mas o anzol de Apollo vai entortar e muito. Rocky é apaixonado pela irmã mais nova de seu melhor amigo. Adrian é interpretada por Talia Share. Talia é irmã do cineasta Francis Ford Copolla e foi indicada para o Oscar em O Poderoso Chefão. Neste filme ela fazia a única filha de Don Corleone. Em Rocky, um lutador ela é o ponto de apoio de Rocky. O amor, a segurança e a musa do boxeador. Rocky busca nos amigos como o irmão de Adrian, Paullie (Burt Yong) e no velho técnico Mickey (Burgess Meredith), a solidez do caráter e dos punhos para enfrentar a luta com honra. Ele tem oito semanas pra treinar. Estava com sobrepeso e fora de forma. No primeiro dia corre no frio da Filadélfia, lento, com dores no corpo e ele encerra a maratona matinal nas escadarias do Museu de Artes da cidade. Sobe os degraus trôpegos e levanta os dois punhos como se houvesse ganho a luta. Faz isso quase todo dia, incansável. Adiciona treinos inusitados como o de socar carcaças de boi dentro de um frigorífico. Não há uma propaganda atual de atividades desportivas que não imite Rocky Balboa. Provavelmente você já se pegou alguma vez cantarolando “tarãrãtarãtarãrãtantantá” e dando soquinhos num inimigo invisível no ar.
Á medida que passam as semanas, Rocky acredita cada vez mais em si e os moradores da terra de Benjamin Franklin passam a confiar juntos. Nos últimos dias, jovens e crianças começam a correr ao seu lado. Até a triunfante cena do último treino, quando ele pula as escadarias, antes tão difíceis, como se fosse um tigre num salto mortal. Comemora a vitória pessoal com os braços erguidos. A cena é tão marcante que talvez seja o único caso de um personagem de cinema que saltou das telas pra vida real. Existe hoje ao lado das escadarias uma estátua em tamanho real de Rocky Balboa (e é a segunda atração mais visitada da cidade).
Começa a luta e o ginásio traz um folder incorreto de Rocky, as cores do calção estão diferentes. Doutro lado, Apollo Creed vem num verdadeiro show. Vestido com as cores dos Estados Unidos, ele imita o Tio Sam e a plateia delira. Rocky passa os cinco primeiros rounds apanhando. Socos e sangue se misturam. Quedas e um levantar cambaleante parecem indicar que a luta não passará dos sete ou oito rounds. Os olhos de Rocky estão inchados e um imenso corte acima da sobrancelha insiste em não fechar. Nos sexto e sétimo rounds ele equilibra a luta, irritando um já machucado Apollo. Do oitavo ao décimo nova saraivada de cacetadas do campeão mundial. Vaias para Rocky. Desfigurado, Mickey pede para jogar a toalha (gesto em que o lutador desiste da luta para não ter problemas de saúde mais sérios, denominado na luta de “nocaute técnico”). Rocky se irrita e passa três rounds seguidos batendo em Apollo impiedosamente, incluindo uma queda do campeão e um salvo pelo gongo. No boxe, se o juiz abre a contagem de dez a zero e o lutador que caiu não levantar, é declarado o nocaute. Porém, se no meio da contagem o sino encerrando o round de três minutos toca, a mesma é paralisada, daí a gíria do boxe “salvo pelo gongo”.

Eu estava no cine Peduti lotado. Em Sorocaba, perto da Praça do Canhão. Estávamos em janeiro de 1977. Lembro da plateia contar junto com o juiz… Déis, nóve, oito, séti… Mas Apollo escapou, o gongo tocou antes do zero. Os dois últimos rounds foram uma carnificina. Os dois lutadores estavam destruídos e sem nenhuma técnica trocaram socos sem fim. Até uma queda dupla e o fim da luta.
No cinema os espectadores se dividiram entre protestar contra a derrota por pontos de Rocky e o choro de escorrer lágrimas. Rocky desce do ringue, ensanguentado, com os olhos devastados pela violência da luta corporal e grita forte:
– Adrian! Adrian ! Adrian!
Finalmente os dois se encontram e se beijam encerrando o filme. A gente conseguia até sentir o gosto do amor misturado ao da dor, entre sangue e lágrimas.

O filme concorreu a 10 Oscars. Ganhou três, entre eles o de melhor filme e melhor roteiro original. Stallone igualou-se a Chaplin e Orson Welles, como únicos indicados a melhor roteiro e melhor ator no mesmo ano. Rocky custou US$ 5 milhões e faturou US$ 225 milhões. Virou franquia e teve sete continuações (leia sobre Rocky IV aqui). Rocky resgata o mito do “self made men” norte-americano. Vinga toda uma geração de boxeadores brancos. Transforma Stallone num astro das telas, mas que jamais foi respeitado como “bom” ator. Com Rambo e Rocky IV tornou-se a nova voz da direita americana no período do presidente, tão medíocre ator quanto Stallone no passado, Ronald Reagan. Mas antes de tudo, Rocky é uma alegoria dos bons sentimentos, da amizade, dos valores familiares e cristãos (lembrem-se, ele é italiano) e das pancadas diárias que tomamos todos os dias de todos os lados. É melhor do que 10 manuais de autoajuda juntos. Afinal como ele mesmo diz, estoicamente, no filme:
“Ninguém vai bater tão forte quanto a vida. Não interessa quantos socos você vai tomar, mas sim a capacidade de aguentar apanhar e seguir em frente tentando. É assim que se vence.”
