Precisamos falar sobre racismo, ainda: algumas perspectivas filosóficas

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Marcello Fontes

     Chega a ser constrangedor para a humanidade que em pleno século XXI ainda tenhamos que estar discutindo sobre algo que se esperava estar há muito superado, por uma agora sabida ilusória expectativa de progresso moral e social do ser humano. Por motivos que discutiremos, mas certamente não esgotaremos, aprendemos a desenvolver vacinas diversas, a voar, a construir arranha céus, a nos comunicarmos à distância, dentre muitas outras coisas incríveis, contudo, muitos ainda não aprenderam a deixar de fazer acepção de pessoas em função de um detalhe acidental: a cor da pele do outro.

     O racismo é, acima de tudo, ignorância ou má fé. Ou ambos. Para Aristóteles, aquilo que é essencial em um Ser refere-se a algo que se faltar, o Ser não poderá ser o que é; já o acidental é um detalhe ocasional que não interfere na substância do próprio Ser. Podemos dizer que animal, racional, mamífero, bípede, por exemplo, são essenciais à substância de um ser humano, pois necessárias. O acidente, por sua vez, é aquilo que não é necessário em um Ser, sem o qual o Ser não deixa de ser o que é, seja pela ausência ou pela presença (homem negro, branco, alto, baixo, gordo, magro, rico, pobre). São atribuições que se referem ao indivíduo, mas não o definem. O que torna o racismo claramente fruto de profunda ignorância quanto à essência de um ser humano ou má fé, pois mesmo sabendo que esse detalhe não faz um ser humano diferente essencialmente, insiste-se em agir como se fizesse.

     Possivelmente, o primeiro filósofo a considerar de forma clara a questão do racismo foi o francês Michel Foucault (1926 – 1984). Além de filósofo, Foucault, professor do prestigiado Colège de France de 1970 até sua morte, destacou-se como historiador das ideias, teórico social e crítico literário. Ele faz suas considerações iniciais sobre o racismo a partir de um importante conceito por ele desenvolvido: o biopoder.

Michel Foucault
Michel Foucault (1926 – 1984), filósofo, historiador das ideias, teórico social e crítico literário francês.

     O biopoder é um conceito que Foucault faz emergir em um sentido oposto e em outro complementar ao seu conceito de controle e docilização dos corpos, segundo ele presente na humanidade principalmente a partir do século XVIII. A ideia de uma necessária disciplina sobre os corpos, exercida por instituições como escolas, igrejas, fábricas e hospitais é desenvolvida principalmente em sua famosa obra “Vigiar e punir”, na qual explicita esse controle dos corpos segundo o querer da sociedade para que se tenham comportamentos e atitudes ideais.

     De outro lado, passa então a surgir, a partir do final do século XVIII, um conjunto de regramentos que não considera o controle sobre o corpo do indivíduo, mas sobre algo mais abstrato, conquanto “palpável”: a população. O biopoder será tomado a partir de normatizações sobre higiene, medicina e outras técnicas necessárias ao controle de uma população, de modo que, agora “poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no “como” da vida, a partir do momento em que, portanto, o poder intervém, sobretudo, nesse nível para aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências, dai por diante a morte, como termo da vida, e evidentemente o termo, limite, a extremidade do poder”.

Foucault irá analisar aquilo que pode ser definido como “racismo de Estado”, visto que não se trata apenas do ódio cego de um indivíduo pelo outro em função de sua etnia, mas de mecanismos que o Estado de certo modo irá desenvolver para justificar ações que exponham ao risco, ao extermínio ou mesmo à morte determinados grupos étnicos.

     Mas como se poderá justificar a morte ou o deixar morrer em um sistema como o biopoder, onde, como se viu, o objetivo é em tese fazer viver? É aí, segundo Foucault, que entra o racismo. E ele verá aquilo que é hoje muito propalado quando se fala dessa chaga: o racismo como algo de certo modo “estrutural”, pois Foucault irá analisar aquilo que pode ser definido como “racismo de Estado”, visto que não se trata apenas do ódio cego de um indivíduo pelo outro em função de sua etnia, mas de mecanismos que o Estado de certo modo irá desenvolver para justificar ações que exponham ao risco, ao extermínio ou mesmo à morte determinados grupos étnicos.

     Foucault defende que o racismo possui, dentro do biopoder, duas funções. A primeira função do racismo é justamente criar uma divisão entre o contínuo biológico da espécie humana, determinando quem deve viver e quem deve morrer, a partir da fragmentação da biologia humana em supostas raças que distinguiriam qualitativamente os grupos a elas pertencentes. A segunda função do racismo é, com base nessa divisão artificialmente produzida, estabelecer uma relação perversa entre a minha vida e a vida do outro que me permite matá-lo como forma de fortalecer a minha própria existência quando eu for de uma raça e ele de outra: “a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), e o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura”. É importante entender que não se fala aqui na morte física exclusivamente, mas também na morte política, ou a rejeição, expulsão que resultem em exposição ao perigo, à frustração das possibilidades, uma espécie de “assassínio indireto”.

[…] o racismo é essencial para as sociedades que operam a partir do biopoder, pois em sociedades em que se impera agora o controle e valorização da vida, a “função assassina do Estado” só se justifica quando age protegendo uma “raça melhor”, podendo para isso eventualmente matar ou expor à morte “raças inferiores”

     Desse modo, o racismo é essencial para as sociedades que operam a partir do biopoder, pois em sociedades em que se impera agora o controle e valorização da vida, a “função assassina do Estado” só se justifica quando age protegendo uma “raça melhor”, podendo para isso eventualmente matar ou expor à morte “raças inferiores”. Então, estamos longe aqui de um racismo que envolve desprezo de uma raça pela outra ou de uma mera ideologia que vê em certas raças adversários, mas trata-se de um racismo que é condição para o exercício do poder que precisa agora, longe da antiga soberania que dispunha das vidas e podia matar sumariamente, dentro de uma nova realidade representada pelo biopoder, que quer promover a vida e melhorá-la, usar a falácia das raças para justificar deixar morrer alguns para que outros vivam.

            Um importante contraponto ao biopoder de Foucault será apresentado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, atualmente professor-investigador de História e Política no Instituto de Pesquisa W. E. B. Dubois da Universidade Harvard. Mbembe tem uma extensa carreira e obra sobre a História da África e a ciência política, defendendo o conceito que ficou conhecido como necropolítica, a partir de um marcante ensaio de 2003, para contrapor e complementar o que Foucault apresentou com o conceito de biopoder, que para ele não é mais suficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação e racismo.

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Achille Mbembe, filósofo, historiador, teórico político e social camaronês nascido em 1957.

            Partindo de uma forte crítica à política como manifestação máxima do “poder irrestrito da racionalidade humana”, Mbembe observa que a marca da política tem sido de fato a “desrazão” e o terror que impõe o extermínio e a escravidão em nome de uma suposta estabilidade e soberania. Embora não esteja em oposição aos conceitos de biopoder e biopolítica de Foucault, Mbembe trabalha sua concepção de necropolítica com um diálogo aprofundado e original envolvendo os principais teóricos da modernidade e contemporaneidade, estendendo suas concepções de uma política da morte a partir, principalmente, dos processos de colonização e suas consequências mortais para as populações colonizadas e escravizadas. Para ele a escravidão resultante dos processos de colonização é “uma das primeiras instâncias da experimentação biopolítica”.

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TITUS KAPHAR, “Behind the Myth of Benevolence,” 2014 (oil on canvas). | Collection of Guillermo Nicolas and Jim Foster, © Titus Kaphar.

[…] não apenas os negros, mas numerosas populações, em virtude de violências as mais diversas realizadas em nome de uma civilização a ser implantada à força, vivem como “mortos-vivos”, em meio a “mundos de morte”.

A condição de escravo constitui uma sombra que projeta uma tripla perda que aterroriza e expõe o indivíduo à morte: a perda de seu lar, do controle de seu corpo e de qualquer status político. Esta condição, resultante de uma necropolítica que existe à custa da morte ou condição mórbida de muitos, irá se projetar nas sociedades que se desenvolveram a partir destas realidades, principalmente para as populações negras: “[…] Viver sob a ocupação contemporânea é experimentar uma condição permanente de “viver na dor”: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites do anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras; crianças cegadas por balas de borracha; pais humilhados e espancados na frente de suas famílias […]”. Qualquer semelhança com o que acontece cotidianamente nas favelas e periferias das grandes cidades brasileiras hoje não é de modo algum coincidência, mas confirmação da tese necropolítica de Mbembe. Para ele, não apenas os negros, mas numerosas populações, em virtude de violências as mais diversas realizadas em nome de uma civilização a ser implantada à força, vivem como “mortos-vivos”, em meio a “mundos de morte”.

            Talvez você possa pensar que tais considerações não têm a ver com a realidade que vivemos no Brasil e que haveria certo exagero em assim o considerar. Mas as estatísticas (que tanto podem mascarar a desumanidade da pessoa transformada em um número como revelar o terror representado pelas ações por trás dos números) demonstram o contrário: segundo o Fórum brasileiro de segurança pública, em 2018 75,9% dos mortos pela polícia eram pardos ou negros. As histórias e relatos sobre as mortes violentas de negros pelo poder público dificilmente passam uma semana sem serem noticiadas. Há muitas vezes uma naturalização destes fatos, para se fazer crer que seriam inevitáveis, como se aquele que é vitimado fosse o culpado pela própria vitimização ou realmente tudo não passasse de distorção e ampliação dos fatos. Recentemente a “influenciadora” Luisa Nunes causou espécie ao afirmar que o racismo é natural, pois negros cometem mais crimes: “É um instinto natural, de defesa da gente. Estatisticamente falando, a maioria dos crimes são cometidos pela população negra. Significa que todo negro é ruim? Óbvio que não. Significa que crimes são mais causados pela população negra. Então vai ser sempre natural, normal e instintivo do ser humano ter um pouco do racismo; julgar a pessoa pela raça”.

“[…] pensar o racismo como parte da estrutura não retira a responsabilidade individual sobre a prática de condutas racistas e não é um álibi para racistas. Pelo contrário: entender que o racismo é estrutural, e não um ato isolado de um indivíduo ou de um grupo, nos torna ainda mais responsável pelo combate ao racismo e aos racistas”.

O que as filosofias tanto de Foucault quanto de Mbembe podem nos ajudar a compreender é que o racismo e as ideias racistas, como a exposta acima de modo “natural”, decorrem de toda uma estrutura política que ao mesmo tempo implanta e se alimenta desse comportamento e mentalidade. O racismo seria, de fato, algo estrutural, presente na própria constituição da sociedade moderna. Sobre isso, o filósofo e jurista brasileiro Silvio Luis de Almeida contribui, afirmando que o racismo não é um ato ou um conjunto de atos e tampouco se resume a um fenômeno restrito às práticas institucionais; é, sobretudo, um processo histórico e político em que as condições de subalternidade ou de privilégio de sujeitos racializados é estruturalmente reproduzida e que considerar o racismo como parte da estrutura não exime a responsabilidade das pessoas em combater o racismo: “[…] pensar o racismo como parte da estrutura não retira a responsabilidade individual sobre a prática de condutas racistas e não é um álibi para racistas. Pelo contrário: entender que o racismo é estrutural, e não um ato isolado de um indivíduo ou de um grupo, nos torna ainda mais responsável pelo combate ao racismo e aos racistas”.

silvio luiz de almeida
Silvio Luiz de Almeida, filósofo e jurista brasileiro nascido em 1977.

[…] de certo modo, querendo ou não, somos todos racistas, pois a estrutura na qual fomos criados fomenta e possibilita essa concepção como natural, com inúmeras justificativas, desde as mais estapafúrdias como a da influenciadora já mencionada até outras mais elaboradas, como a suposta democracia racial defendida pelo sociólogo Gilberto Freyre.

  Então, de certo modo, querendo ou não, somos todos racistas, pois a estrutura na qual fomos criados fomenta e possibilita essa concepção como natural, com inúmeras justificativas, desde as mais estapafúrdias como a da influenciadora já mencionada até outras mais elaboradas, como a suposta democracia racial defendida pelo sociólogo Gilberto Freyre. Mas essa constatação, que pode (e deve) lhe incomodar não é uma condição eterna nem irreversível. A partir do reconhecimento destes fatos e dos privilégios que eventualmente temos, é preciso transformar a sociedade e desnaturalizar os atos e atitudes racistas, bem como perceber, por exemplo, que situações como o branqueamento institucional não podem ser vistas como naturais: enquanto a maior parte dos habitantes é negra (54%), quase todos (96%) os parlamentares são brancos; em Sorocaba, de onde escrevo este artigo, a despeito da forte influencia negra em movimentos religiosos e culturais como o de João de Camargo e o Quilombo Cafundó (hoje localizado em Salto de Pirapora), jamais houve um prefeito negro e os vereadores negros contam-se em números pífios: atualmente, nenhum ou nenhuma. Certamente isso não se deve a um desgosto ou desinteresse intrínseco do negro pela política, para ficarmos apenas nesse exemplo, mas a uma estrutura e uma construção de poder que o exclui inclusive a partir dele próprio.

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Versão brasileira de Black Lives Matter, movimento antirracista nos EUA. (Foto: Silvia Izquierdo)

            O grito de que “vidas negras importam” precisa sair do clamor individual, ainda que cada vez mais numeroso e transplantar-se para a estrutura política montada sobre a negação desta afirmação, por meio de transformações de longo prazo e definitivas, que passam por políticas afirmativas, mas não apenas, ou estes clamores serão somente espasmos esporádicos que parte da sociedade terá, não produzindo muito além de um impacto passageiro e esquecível.

Para saber mais:

Imagem em destaque: A redenção de Cam, do pintor espanhol radicado no Brasil Modesto Brocos, de 1895. Retrata uma das teorias sociais que talvez melhor demonstre o biopoder e o racismo: o fenômeno da busca pelo “embranquecimento” gradual das gerações de uma mesma família por meio da miscigenação. O título é retirado da estapafúrdia ideia de que a marca que Deus teria colocado em Caim (Cam) após o assassinato de seu irmão Abel, para o amaldiçoar (Gênesis 4:15), foi a cor negra. Ainda hoje, há religiosos que defendem, intramuros, esta nefasta ideia.

Um comentário em “Precisamos falar sobre racismo, ainda: algumas perspectivas filosóficas

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  1. Grande texto, Marcello! Com propriedade e lucidez, você colocou o dedo nessa lamentável ferida social que é o racismo. Nada, absolutamente nada justifica a opressão institucionalizada e subterrânea e o atraso civilizatório que a cor branca da pele representa sobre a dos negros, índios ou quaisquer outros grupos étnicos e sociais. Basta. Bravo.

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