
José Carlos Fineis
A campainha que ficara silenciosa durante quase três meses soou como um eco de tempos felizes no apartamento de quarto (que servia também de sala), cozinha e banheiro. Elisa sabia que era ele, o louco. Vinha, conforme suas palavras, apenas “olhar para ela e conversar sem tocar em nada”, a distância segura. Talvez tomar um café, desde que ela entendesse que isso não a poria em risco. Afinal, ele a amava e, se ela consentisse, queria passar um quarto de hora em sua companhia, para matar a saudade.
Elisa pôs a máscara descartável e destrancou a porta, que ficou escancarada enquanto ela recuava alguns passos. Ele estava mais rechonchudo, porém abatido. Usava máscara também, só que de tecido preto e desenho impecável, conforme os ditames da modinha corporativa. Ficou parado ali, do lado de fora, à espera de um convite para entrar, enquanto observava a silhueta do corpo feminino realçada pelo sol que batia em cheio na janela atrás dela.
“Entre”, ela disse. “Sente-se ali.”
Ele deu um passo para dentro do apartamento e estranhou a falta de um tapete umedecido para limpar os sapatos. Notou que ela deixara uma cadeira de braços perto da porta. Havia outra, provavelmente para ela, de frente para aquela, a mais de dois metros de distância. O ar quente e os barulhos lá de fora entravam pela janela escancarada.
“Tem álcool em gel?”
“Claro. Na mesinha, perto da cadeira. Fique à vontade.”
“Obrigado.”
Ele deixou a valise no chão, abaixou-se e apertou o botão do dispenser. Encheu a palma da mão com uma porção que daria para desinfetar uma bola de basquete. Depois se aprumou sem sair do lugar e ficou esfregando as mãos por um bom tempo. Como o gel era muito e ele estivesse com os braços cobertos pelas mangas do paletó, teve a ideia de passar o excesso na testa e nos cabelos. Ela riu com os olhos.
“Você!”
Ele se acercou da cadeira.
“Então, devo sentar aqui?”
“Sim. Eu reservei esse lugar para você. Feche a porta, por favor.”
Ele empurrou a porta com o pé, para não tocar na maçaneta.
“Eu não limpei os sapatos para entrar.”
“Não se preocupe. Depois que você sair eu dou um banho de álcool em tudo.”
Agora estavam sentados frente a frente. Ele percebeu que ela se arrumara para recebê-lo. E ajeitara o apartamento também. Até as molduras de alumínio haviam sido limpas e brilhavam como novas nas reproduções de gravuras que ele conhecia tão bem.
A roupa da moça – era moça ainda, uns 30 e poucos anos – era visivelmente imprópria para os padrões domésticos da quarentena. Coincidência ou não, lembrava o terninho branco e a saia florida que ela usava quando se conheceram — ela, a professora viciada em livros de Faulkner, Henry Miller, Chico Buarque e Ferreira Gullar; ele, o gerente de pessoa jurídica de um grande banco, em busca do mais recente título de Harry Potter para dar de presente à filha de 13 anos.
Ficaram sem assunto por alguns minutos. Depois começaram a falar sem muita criatividade sobre os temas recorrentes da pandemia. Ela disse que estava segura em casa, mas que o volume de trabalho crescera com o ensino a distância. Ele também fora posto em isolamento, pois já estava “quase na faixa de risco”, mas se virava bem com a tecnologia e, por sorte, sua carteira tinha muitas empresas da área de saúde – laboratórios, hospitais, convênios médicos –, que faturavam até mais agora do que antes.
Calaram-se novamente.
“Sinto sua falta”, ele disse por fim, olhando-a fixamente, como quem espera um sinal.
“Em também, mas…” – Elisa não viu motivo para terminar a frase. Eles eram pessoas esclarecidas e conheciam todos os riscos envolvidos num contato físico. De toda forma, ele não estava disposto a desistir facilmente, e voltou à carga:
“Escute, amor. Minha mulher e eu, você sabe, há muito somos apenas amigos. E não sou só eu que sinto desse jeito. Ela também deixou de me amar como marido, e chega a declarar isso abertamente. Nós fomos ficando juntos, sei lá, acho que por conveniência. Uma separação envolve tanta burocracia, rende tanto falatório. Mas eu e você, bem, nós temos essa química. Parece coisa de adolescente, mas eu durmo pensando em você, acordo pensando em você.”
“Você vai deixar a Regina?”
“Estou decidido a me separar. Há tempos penso nisso. Agora é decisão formada. Sabe, durante o isolamento, percebi que sou um peixe fora d’água quando estou em casa. Meus filhos têm a vida deles, a Regina vive muito bem sem mim. Era mais fácil de nos suportarmos quando eu ficava no trabalho doze horas por dia e voltava pra casa só pra dormir. Mas agora temos nos estressado muito, por qualquer motivo idiota. Já chegamos a brigar por causa da arrumação dos móveis da sala.”
“Isso é normal. Todo mundo está tenso com a quarentena.”
“Eu sei. Mas esse não é o ponto. O ponto é que, com esse perigo todo rondando por aí, eu comecei a pensar mais na vida, em como pretendo viver o tempo – não sei quanto tempo – que me resta neste mundo. E cheguei à conclusão de que não importa se serão dois meses, dois anos ou duas décadas: quero viver uma coisa verdadeira, entende? Não quero viver uma vida que não é minha, uma vida que eu não tenho tesão de viver.”
Enquanto ele falava, Elisa mantinha um ar circunspecto, as pernas cruzadas, o semblante inflexível, quase como um juiz que ouve os argumentos da acusação e da defesa para dar uma sentença.
“Você fez algum teste?”
“Não. E você?”
“Fizeram um teste na escola, antes de suspenderem as aulas. Deu negativo, mas eles próprios informaram que o teste não é confiável.”
“E se nós…” – ele começou, mas ela interrompeu:
“Olha, querido, não me leve a mal. Eu sou sozinha. Estou trancada aqui e o único contato concreto que tenho com o resto do mundo é olhando-o por aquela janela e recolhendo as compras que deixam na porta. Mas você tem família. Talvez tenha algum contato presencial com algum cliente, de vez em quando…”
Ele assentiu com a cabeça:
“Muito raro.”
“Então. Se nós tivermos, você sabe, alguma forma de contato físico, eu vou assumir um risco, mas eu respondo por mim. Se eu decidir que quero correr esse risco, foda-se, é uma decisão minha, que só pode prejudicar a mim. Mas você não. Você tem pessoas que vivem com você. Tem filhos. Sua sogra ainda mora lá, não mora? E a Claudinha é meio asmática, não é? Acho que você deveria pensar mais um pouco sobre isso. Você é um cara consequente e sabe que esse é um motivo forte o bastante para nos mantermos afastados por algum tempo.”
“Mas eu não vou voltar pra casa, Elisa. Estou decidido. Vai ser difícil viver sem minha família, sem meu cachorro, mas, com exceção do cachorro, eu sinto que os outros não estão nem aí pra mim. E além disso, como já falei, não quero mais viver uma vida de mentirinha. Não sei quanto tempo de vida ainda tenho. Só Deus sabe. Talvez eu pegue essa merda e morra, como alguns conhecidos meus já pegaram e embarcaram. Quero uma vida que valha a pena. Parece bobeira, mas aqueles versos da canção do Nick Drake não saem da minha cabeça: “Deixe os caminhos que estão fazendo você amar o que você não quer realmente amar”.
Ela descruzou as pernas e se inclinou para frente, com os olhos fixos nele.
“Você sabe que para outros talvez não, mas para você, por uma questão de consciência, este seria um caminho sem volta, não sabe?”
“Sim. Eu sei. Já avaliei tudo isso.”
“Você não pode ficar com um pé na rua e outro em casa. Nesta droga de país sem testagem, qualquer um pode estar com o vírus sem saber.”
“Eu sei. Eu sei. Mas minha decisão está tomada.”
“Me dê um tempo para pensar” – ela falou, levantando-se. Ele achou que a conversa estava encerrada e levantou-se também, automaticamente, mas ela pediu calma com um gesto:
“Não, por favor. Não estou mandando você embora. Vou coar um café pra nós. Só me deixe pensar.”
Como uma criança obediente, ele voltou a sentar-se. Estava aliviado. Sentia-se como se tivesse tomado algum calmante. Uma angústia profunda e nauseante havia se esvaído de seu peito, enquanto sentia o prazer de estar com a mulher amada e se abria com ela.
Ouviu uns barulhos na cozinha. Logo o cheiro de café coado rescendeu por todo o apartamento. Minutos depois, ela surgiu com uma bandeja e duas xícaras grandes. Entregou um café para ele e foi beber o seu na janela. Ficou ali, em pé, encostada na estrutura metálica, a máscara no queixo, olhando distraída para a rua.
Ele já acabara seu café havia um bom tempo e ela ainda estava lá. Tinha essa capacidade de se abstrair da realidade em volta de si, desde pequena. Quando alguma coisa não ia bem em casa e seus pais discutiam – o que era frequente na infância –, ela enfiava a cabeça em um livro e desligava-se de tudo. Era preciso cutucá-la para trazê-la de volta.
Em que pensava agora? Ele se remexia na cadeira, mas não havia incômodo – talvez um pouco de ansiedade. De toda forma, vê-la ali, banhada pelo sol da tarde, os cabelos tocados levemente pelo vento, era algo que bastava para deixá-lo embevecido.
Por fim, ela saiu de sua posição. Deixou a xícara em algum lugar, voltou a cobrir o rosto e veio ficar em pé na frente dele.
Ele também se levantou.
“O réu à espera da sentença”, brincou.
Ela permaneceu calada. Depois, levantou a mão direita e desprendeu a máscara de uma das orelhas. Puxou-a e deixou-a cair, revelando um sorriso de Mona Lisa, em que havia mais resignação do que vergonha ou sensualidade. Ele notou que por baixo da mascara havia uns lábios caprichosamente pintados com batom.
Ele jogou a máscara fora e ensaiou um passo à frente, mas se conteve, inquieto.
“Posso?”
“Seja o que Deus quiser.”
Enfim se abraçaram e se beijaram longamente, impetuosos a princípio, delicados depois.
E assim permaneceram numa dança silenciosa, entre beijos e carícias, enquanto o sol de fim de tarde penetrava no apartamento como um refletor de teatro, pintando de amarelos seus cabelos e o teto branco, refletindo nas lombadas dos livros e nas molduras de alumínio.
* * *
Ela acordou por volta das 10h e as lembranças do dia anterior retornaram aos poucos a sua mente. Percebeu que estava nua. No criado de cabeceira, apenas o celular, o velho despertador de corda que vivia parado e uma taça vazia. Teve um sobressalto quando o quadro de tudo o que havia ocorrido finalmente se formou em sua memória. Num gesto automático, estendeu o braço e tateou o lado esquerdo da cama, que estava vazio.
Então ouviu a descarga. Depois o chuveiro. Decidiu ficar deitada até que ele saísse. Não havia como se vestir sem tomar uma ducha. Seu único robe estava perdido no fundo de alguma cesta de roupas por lavar. Porém, mais que isso: não tinha vontade de sair da cama. Culpava-se pela possibilidade de ter agido por impulso. No íntimo, não sabia se havia feito a coisa certa.
Foi então que ele apareceu na porta do banheiro, com uma das toalhas que ela mantinha no armário, sempre perfumadas e dobradas com esmero, amarrada em volta da cintura.
Apareceu, jogou um beijo para ela, pronunciou um sorridente “bom dia, amor!”, esticou a mão e pegou o telefone celular que deixara sobre um móvel próximo.
O banheiro minúsculo e revestido com material cerâmico era um amplificador de som. De seu lugar na cama, a poucos metros de distância, e apesar da porta fechada, ela ouvia tudo o que ele dizia e quase podia ouvir a voz do outro lado.
Ligara para a mulher.
“Regina, não vamos transformar isso num sofrimento desnecessário. Eu sei, você sabe que acabou. Somos suficientemente maduros para aceitar isso e decidir o que vamos fazer das nossas vidas daqui pra frente.”
Regina falava alto. Evidentemente, estava surpresa e irritada. Mas não era possível distinguir o que dizia.
“Veja, Regina – ele retomou –, a decisão está tomada. Estou fora. Vocês vão ficar bem. Podem ficar com a casa, que eu me arranjo. Vamos formalizar tudo em juízo e, pelo menos enquanto eu estiver empregado, garanto uma pensão para você e as crianças.” E repetiu a história de que não sabia quantos anos ainda mais tinha de vida, etc., etc., etc.
A esposa ergueu ainda mais a voz. Da cama, Regina ouviu-a perguntar se havia “outra”.
“Vou ser sincero com você, Regina. Existe sim. Eu não quis aborrecer você com isso, porque sei que você há muito não me vê como alguma coisa além de um velho conhecido, se muito, um amigo. Mas existe sim, e quero ficar com ela.”
Regina esbravejou mais um pouco. Depois houve um silêncio. Elisa teve a impressão de que a mulher chorava.
“Olha, Regina, vou te pedir um último favor. Arruma minhas roupas, meu barbeador, enfia tudo numa mala, deixa aí fora no jardim que eu passo buscar mais tarde. Você não precisa me atender, se não quiser. Só deixe as minhas coisas aí fora e tente entender. Isso é mais forte que eu. Me desculpe. Você foi uma companheira maravilhosa, e não pense que não sou grato por isso. Tivemos um casamento feliz a maior parte do tempo. Mas tente aceitar: a separação vai ser boa pra nós dois. Você também está perdendo tempo comigo. Você merece uma pessoa que tenha amor verdadeiro por você. Alguém que queira envelhecer do seu lado. Assim como eu também mereço. Já não temos muito tempo para gastar com uma farsa. Vamos nos dar essa chance.”
Regina disse mais alguma coisa.
“Sim. Acho que você tem o direito de saber. É uma pessoa que eu amo muito e que conheci anos atrás.”
Da cama, ouviu-se claramente a explosão de Regina, como se o telefone estivesse no viva-voz: “Filho da puta!”
“Tudo bem. Acho que eu mereço isso” – ele continuou, tentando baixar o tom de voz. “Mas você vai ver, será bom pra nós dois. Acho que até as crianças vão se sentir mais à vontade sem minha presença em casa.”
Regina chorava e perguntou alguma coisa inaudível.
“Sim. Vou morar com ela. Não faz mais sentido ficar um minuto sequer longe dela.”
O telefonema foi interrompido bruscamente. A conversa terminara nesse ponto.
Ele ficou um tempo olhando para o aparelho. Depois, vestiu-se com as roupas do dia anterior, penteou os cabelos, escovou os dentes com o dedo indicador e saiu.
O velho despertador passou perto de sua cabeça e foi explodir na parede.
“Como assim?”
“Como assim o quê, Elisa?”
“Eu ouvi direito? Você disse que vai morar comigo?”
“Sim. Foi o que eu disse. Nós vamos morar juntos, não vamos? Não é isso que queremos?”
“Talvez seja isso o que você quer, mas você não disse que queria morar comigo.”
“Sim, posso não ter dito claramente. Mas achei que ficou subentendido. Se eu disse que estava saindo de casa para ficar com você, para onde você achou que eu iria? Pensei que estava claro que minha intenção era morarmos juntos.”
Ela estava muito nervosa. Ele conhecia bem aquele dedo em riste, a respiração ofegante, o tom de voz.
“Sinceramente, acho que você está brincando comigo. Nesses anos todos, eu disse mil vezes pra você que prefiro viver sozinha. Ter minhas coisas, meu espaço. Por que isso teria mudado agora? Porque você resolveu viver intensamente os últimos anos da sua vida?”
Ele estava atônito e decepcionado, mas os argumentos dela faziam sentido. Pensando bem, talvez tivesse sido egoísta ou pretensioso demais, em seu desespero por mudar de vida.
“Mas você me ama, não ama?” – ele insistiu.
“Sim, e gostaria de poder continuar amando.”
“O que você quer dizer com isso?”
Ela respirou fundo, tentando se recompor. E, depois de um breve silêncio:
“Olhe pra você, pra sua vida. Você amava a Regina quando ficou com ela, não amava? Você acabou de dizer no telefone que teve uma vida maravilhosa com ela.”
“Sim, mas o amor acabou.”
Ela conseguira puxar algumas peças de roupa de uma gaveta próxima e tentava se vestir sob os lençóis. De repente, fora assaltada por sabe se lá que sentimento de privacidade.
“O amor acabou, querido, porque a rotina tritura o amor. Quer deixar de amar alguém? Vá morar junto. Olha o tamanho deste apartamento. Eu mesma às vezes sinto que não caibo aqui dentro. Imagina nós dois. E aquele banheiro? Dá pra ouvir tudo aqui de fora. Não quero ouvir seus barulhos intestinais, nem você soprar o nariz enquanto toma banho. Gosto de você como um namorado. E você também, certamente não gostaria de me ver descabelada pela manhã, como estou agora. Ou viver minhas fases de depressão neste cubículo. Gosto quando você chega perfumado, bem-vestido. Me excita o flerte, a taça de vinho. Você me despir, eu tirar a sua roupa. Seus presentinhos, seus mimos.”
Ela agora estava vestida com uma calça de moletom e uma camiseta. Sua fala foi interrompida pelo toque do celular. Era da escola. Ele se surpreendeu ao constatar como a voz irritada de segundos atrás se revestiu de calma e normalidade.
“Não, não. Eu sei. Estou atrasada com isso. Sei, sei. Eles não vão ficar sem aula. Amanhã eu reponho. Tive um problema, já disse… Não, não é o corona. Obrigado, Beth. Quebra essa pra mim, só hoje. Eu juro que não vai acontecer de novo.”
Enquanto ela falava, ele chegou perto da janela e olhou para a cidade lá fora. Tantas janelas. Cada janela, uma história. Sentia-se rejeitado. Não diria humilhado, mas rejeitado. E a sensação de vazio era insuportável. Caíra em si em algum momento durante a argumentação da amante. Estava claro, ela não queria ser outra Regina. Queria ser ela, livre. Talvez amasse outros além dele.
Enquanto olhava a cidade, pensava. Pode ser que a rotina triture o amor. As contas a pagar, o mau humor esporádico de um e de outro, as tarefas domésticas. Até os filhos, que são uma bênção, de certa maneira vêm, por vezes, selar o fim de um relacionamento. Mas não, os filhos não matam o amor. Eles o elevam a uma condição diferente. Menos carnal, talvez. Um pouco menos romântica, porém mais humana. Não se arrependia de ter tido filhos, embora sentisse que eles não se importavam muito com ele e o vissem muitas vezes como um obstáculo entre eles e o que desejavam fazer.
Ela desligara o telefone e fora coar o café. Ficou olhando para a água à esperadas pequenas bolhas que surgem prenunciando a fervura. Depois serviu duas xícaras. A dele sem açúcar, a dela com adoçante. Beberam em silêncio, ela encostada na pia, ele no batente da porta.
Ele sentiu que não tinha mais o que fazer ali. Caminhou até perto da entrada e suspendeu a valise que permanecera no mesmo lugar, ao lado da cadeira de braços, desde a tarde anterior. Mas em vez de sair, sentou-se na cadeira. Colocou a pasta no colo, abriu-a e tirou uma caixa de bombons em forma de coração, sem laço nem papel de presente. Colocou-a sobre a mesinha, ao lado do alcool em gel.
“As lojas de chocolate estão fechadas. Foi difícil de encontrar uma coisinha decente no supermercado. Estava nervoso ontem, esqueci de dar.”
Ela ficou olhando para ele e sentiu um aperto no peito ao ouvir sua justificativa, que soava como súplica.
“Eu respeito sua forma de amar, mas pensei que podia ser diferente”, ele falou enquanto se levantava para sair. “Achei que poderíamos ser felizes juntos, talvez numa casa maior. Um lugar onde pudéssemos ter um cachorro. Mas não quero que renuncie a sua liberdade que é tão cara pra você. Vou ter de ir agora. Sinto que não tenho mais o que fazer aqui.”
“Eu sinto muito, querido. Amo você de verdade. E justamente por amar é que não quero destruir o que temos. Eu sempre deixei isso muito claro. Quero ser sua amante. Não quero ser sua esposa. Se você for capaz de compreender isso, eu ficarei feliz, porque não gostaria de perder você.”
“Então, tá. Obrigado pela noite, pelo vinho e pelo café” – ele disse sem esconder a ironia, estendendo-lhe a mão como quem cumprimenta um estranho.
“Obrigada pelos bombons” – ela respondeu, apertando com a indiferença possível aquela mão que tanto amava e que acariciara seu corpo apenas algumas horas antes.
“Tchau então. Vamos pensar melhor nisso tudo” – ele disse, girando a chave.
“É, vamos pensar.”
Já estava com um pé fora do apartamento quando lembrou da máscara. Voltou e apanhou-a do chão.
“Essa não, está usada. Deixa que eu te dou outra” – ela disse, enquanto passava álcool em gel nas mãos. Depois, abrindo uma caixinha, tirou uma máscara cor de rosa e esticou para ele.
“Passe álcool nas mãos e ponha.”
“Mas é cor de rosa.”
“Deixa de ser bobo. Você é Damares, por acaso? Ninguém está dando a mínima pra cor.”
Ele sorriu, pôs a máscara e saiu, fechando a porta atrás de si.
Ela ficou prostrada por um bom tempo. Depois, levantou-se, instintivamente apanhou um borrifador e começou a espirrar álcool 70° em todos os locais onde ele sentara e tocara. E, tirando o moletom, enfiou-se no chuveiro.
* * *
Desde por volta das 15h ele esperava pelo corretor, em frente ao predinho de apartamentos. Deixara o carro em um estacionamento e andara a esmo pela cidade durante horas, em busca de um lugar para morar.
Ao caminhar pelas ruas semidesertas percebera o quanto estava só. Em menos de 24 horas, como um navegante que se perde em meio ao oceano, deixara um mundo para trás e não conseguira chegar ao novo mundo. Sentia-se como alguém que fora condenado ao degredo em terras estrangeiras. Concluiu que era um homem comum: tinha medo da velhice e da solidão. Excessivamente sonhador, talvez. Mas isso não era um defeito. Era uma qualidade que terminara por deixá-lo sozinho, nada mais.
O corretor veio, querendo conversa. Ele falou apenas o necessário. Visitaram o apartamento mobiliado no segundo andar. Acertaram o contrato ali mesmo. Pagou um mês adiantado. O corretor finalmente foi embora e ele ficou sentado em sua nova casa.
Horas se passaram. Depois, dias. Depois, semanas. Foi obrigado a prosseguir, para manter o emprego. Uma noite, depois do jantar, o telefone tocou. Era Elisa.
“Oi. Liguei pra saber se ainda está magoado comigo. Também para saber se está bem.”
“Estou levando” – foi a resposta que lhe ocorreu.
“Olha, talvez você tenha me julgado mal. Eu esperava que você tivesse algum tipo de compreensão. Mas pelo jeito não teve. Pensei comigo: tudo bem. Se ele não toma a iniciativa, eu tomo. Quero dizer que amo você. Não pense que o recusei, porque não é verdade. Você é o homem da minha vida. Liguei também para dizer que vagou um apartamento aqui no prédio. Se você quiser, podemos morar no mesmo endereço, só que eu no meu espaço, você no seu. Se você topar, estaremos perto um do outro. Mas vai ter de ser como antes. Você não vai ter a chave do meu apartamento, nem eu a chave do seu. Você só vai aparecer depois de marcarmos um encontro. Vai vir de banho tomado e com um presentinho, que não precisa ser bombom, pode ser um livro. E antes que você pergunte: não, eu não quero constituir família com você. Se quiser, terá que ser meu namorado. Não quero filhos. Com todo o respeito às crianças, um mestrado seria mais interessante pra mim, depois um doutorado, e essas coisas não combinam com criança.”
Ele ouviu impassível, embora com o coração pulsando forte. Agradeceu, pediu um tempo para pensar, desejou boa sorte e desligou. Nunca subestime a capacidade de ser bobo de um macho com o orgulho ferido.
Passaram-se alguns minutos, o telefone tocou novamente. Regina.
“Sua mala está apodrecendo no jardim. Vejo isso como um sinal de que você não tem certeza do que quer. Ou pode ser também que a outra não quis ficar com você. Sim, é bem provável. Pra dizer a verdade, se eu fosse ela, também não iria querer. Não é toda mulher mais jovem que quer um bode velho perto de si. Se for esse o caso, faço uma proposta. Nosso casamento foi pro brejo mesmo, concordo com você. Mas você pode voltar pra casa, se quiser. Ficamos sendo amigos, como antes. Você pode se mudar pro quarto lá de cima e vai ter de ficar uns vinte dias de quarentena. Pelo menos assim você não fica longe de seus filhos e do cachorro, que está sentindo sua falta. Só que você vai ter de escolher, e agora não falo por ciúmes, mas por uma questão de saúde: ou sua família, ou essa mulher. As duas ao mesmo tempo não dá.”
Ele agradeceu a oferta e pediu, também à esposa, um tempo para pensar.
Sentia que, na verdade, as duas o queriam, mas do jeito delas. E que, assim como era, nenhuma o queria.
Pensando com honestidade, ele também queria as duas, e não as queria. Não do jeito que lhe ofereciam. Nesses dias de solidão, sentira falta de Regina, das longas conversas na mesa grande da cozinha, do bolinho de arroz que ela fazia, dos documentários que assistiam juntos. Pensou que talvez tivesse sido precipitado em deixá-la, pois ainda havia entre eles alguma coisa carinhosa que ele não ousaria chamar de amor — mas havia.
Agora elas o haviam colocado na pior situação que alguém pode estar: a de ter de escolher uma coisa que exclui completamente a outra.
Escolha terrível, que não havia feito antes, simplesmente porque era cômodo e não existia o risco de levar uma doença grave para casa. Estava claro que qualquer das opções, como Elisa havia dito, seria um caminho sem volta. E talvez ele não estivesse pronto para decidir, embora começasse a acreditar que, no fundo, não merecia a generosidade daquelas mulheres.
Tomou uma dose de uísque puro, depois outra. Deitou-se mais cedo, ouvindo antigas canções de Nick Drake, Joni Mitchell e Belchior. Tentou imaginar se apenas para ele a covid-19 trouxera reflexões e decisões tão dramáticas. Se alguma coisa mudaria no âmago das pessoas, diante de tantas escolhas por fazer, e da consciência de que, agora mais do que nunca, essas escolhas causariam não apenas sofrimento psicológico, mágoas e dor, mas um risco de vida elevado. Dormiu sem respostas, mesmo porque elas não existiam, e ainda não existem. Não para todos.
Como sempre acontece quando surge algo novo, logo emergem gurus por todos os lados, tentando profetizar as novas tendências e as mudanças que aquilo causará. Na maior parte das vezes, eles dizem apenas o óbvio, que está à vista de todos. Só muito raramente alguém consegue captar o real espírito de uma mudança, e colocá-lo num livro, numa canção ou num verso.
Dormiu pensando que era um completo desconhecido para si mesmo. E em como o legado da epidemia talvez fosse, para ele ao menos, justamente esse: fazer com que procuremos nos conhecer, para além da superficialidade com que costumamos achar que nos conhecemos.
Na manhã seguinte, percebeu como o apartamento, apesar de minúsculo, era grande demais para ele, e vazio – mas jurou que não sairia dali sem antes descobrir de que forma gostaria de viver e, se estava pronto para o amor, a quem deveria amar.
A canção do conto
O conto “Sem retorno” traz referências a versos da canção “Time has told me”, do compositor e cantor inglês Nick Drake (1948-1974). Conheça a letra com sua tradução clicando aqui e a canção no clipe abaixo.
Ilustração: “Eleven AM” (Onze da manhã), óleo sobre tela de Edward Hopper (EUA, 1882-1967)
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