Em busca da felicidade: Aristóteles e sua Ética

Marcello Fontes

É pouco provável que tenha havido na História da Humanidade pensadores que possam igualar-se a Aristóteles em genialidade, abrangência de temas pesquisados e influência. Na Idade Média, era chamado simplesmente de “o filósofo”, como se não houvesse outro que pudesse representar tal condição.

Busto de Aristóteles – Escultura de mármore da época de Adriano, com a adição de uma capa de alabastro na Era Moderna, cópia romana de um original grego de Lisipo (390 – 309 aC). Roma, Museo Nazionale Romano Palazzo Altemps.

Ainda hoje, as teses aristotélicas sobre metafísica, política, ética, economia, retórica, poesia, teatro e lógica se fazem presentes em qualquer estudo ou debate sobre tais temas. Isso para não se falar de suas contribuições no campo da física, botânica, zoologia e astronomia, que mesmo hoje sendo “datadas” ou superadas em termos científicos, foram aceitos inicialmente por centenas de anos e demonstram a vastidão de suas capacidades investigativas.

            Natural de Estagira (384 a. C.), veio aos 17 anos para Atenas, onde frequentou por vinte anos a Academia de Platão. Notabilizou-se também por ter sido o responsável pela educação de Alexandre, aquele que mais tarde seria conhecido como “o grande” ou Magno. Em sua volta a Atenas, apoiado pelo ex-aluno, funda o Liceu, que passa a ter importância paralela à Academia. Porém, com a morte de Alexandre, passa a ser alvo de eventuais perseguições motivadas pelo espírito antimacedônio que passa a reinar, retirando–se para Cálcis, onde falece em 322 a. C.

Aristóteles ensina o jovem Alexandre – A ilustração é do livro de 1866 ‘Vies des Savants Illustres’, de Louis Figuier, atribuída a Charles Laplante (1837–1903).

            Apesar de ter sido aluno de Platão, tinha profundas e importantes discordâncias filosóficas em relação ao seu mestre. Ele declara mesmo ter dificuldades ao ter de criticar as ideias de Platão, dizendo: “[…] mas talvez seja melhor e até mesmo um dever, para salvar a verdade, sacrificar os nossos assuntos pessoais, principalmente quando se é filósofo: a amizade e a verdade são ambas estimáveis, mas é coisa santa amar mais a verdade”.

           As discordâncias com Platão situavam-se, basicamente, na não compreensão de que há outro mundo que comporia a verdadeira realidade. Tudo o que temos, para Aristóteles, é o mundo sensível e a realidade é o que dele apreendemos. Enquanto Platão estabelecia uma identidade entre virtude e felicidade e também entre virtude e ciência, Aristóteles não via o saber como algo que compõe a própria vida do homem, mas uma ciência objetiva que se articula com muitas ciências particulares. A relação da Filosofia com as ciências é alvo de um dos maiores projetos de Aristóteles, que será ver a Filosofia primeira como a “Ciência do ser enquanto ser”, ou seja, enquanto cada Ciência trata de um ou mais aspectos do ser de modo particular, A Filosofia primeira abordaria o ser em sua universalidade. Esta seria, segundo muitos especialistas, a grande “descoberta” de Aristóteles, retratada principalmente em seu conjunto de escritos posteriormente denominados Metafísica.

A Escola de Aristóteles, afresco de 1883-1888 por Gustav Adolph Spangenberg

Aristóteles divide as ciências entre aquelas que tratam do que é necessário e aquelas que tratam do que é possível. As ciências que tratam do que é necessário são as chamadas ciências especulativas ou teóricas, que buscam o saber pelo saber, independente do fim ou utilidade, sendo, por isso, superiores. São elas a Matemática, a Física e a Filosofia primeira, que depois de Aristóteles passa a ser denominada Metafísica. As ciências que tratam do que é possível subdividem-se em práticas, quando tem em vista uma ação, como a Política e a Ética e poiéticas ou produtivas, quando visam a produção de algo, seja um utensílio ou uma obra artística, como por exemplo, arquitetura, a construção naval, a estratégia (arte da guerra) a retórica (a arte de produzir discursos), a Poética (a arte de compor enredos ou narrativas como drama ou tragédia, comédia, poesia épica, lírica). O tema que nos interessa aqui, a Ética, pertence portanto, segundo o próprio Aristóteles, ao campo das ciências práticas.

            Aristóteles escreveu com certeza duas grandes obras sobre Ética: Ética a Nicômaco e Ética a Eudemo. Há também um conjunto de escritos denominado “A grande Ética”, apesar de sua brevidade em relação aos demais, que no geral é atribuída a discípulos de Aristóteles e não ao próprio. As principais considerações que traremos aqui sobre a Ética de Aristóteles serão retiradas da Ética a Nicômaco.

“O objetivo da Ética a Nicômaco é de nos dar um entendimento reflexivo de como se pode conseguir a felicidade vivendo uma vida ética dentro da sociedade”.

Jonathan Lear, Aristóteles, o desejo de entender.

            Primeiramente, é importante ressaltar que Aristóteles somente compreendia a resposta à questão “o que é uma boa vida para o Homem” dentro da vida em sociedade, já que para ele o Homem é um “animal político”, ou seja, só tem sentido enquanto ser dentro das relações estabelecidas na “pólis” (literalmente cidade), na vida em meio às relações sociais e políticas próprias de uma comunidade humana. Todas as reflexões éticas levarão em conta este aspecto necessariamente coletivo e relacional.

            Aristóteles principia a considerar sobre Ética na Ética a Nicômaco deixando claro que, se todas as ações, pesquisas e artes visam um fim, como por exemplo, o fim da medicina ser a saúde, o da estratégia a vitória e o da economia a riqueza, deve haver um fim supremo, que é desejado por si mesmo, sem qualquer outra finalidade que dele derive. Este fim seria a Felicidade, um bem supremo segundo ele. Este fim deve ser buscado particularmente pela política, visto que as ações humanas precisam ser colocadas em perspectiva coletiva e relacional, dentro de uma sociedade, além da questão individual, como vimos. Talvez em tempos de tamanho egocentrismo e individualismo seja difícil compreender isso, mas para Aristóteles a felicidade como bem supremo só poderia ser plenamente compreendida em termos da vida em sociedade, não da vivência particular de cada um. Por isso é tão importante rele-lo hoje.

            Mas, afinal, o que realmente seria felicidade para o Homem?  Se cada um pode ter alguma felicidade fazendo aquilo que lhe é próprio, realizando a tarefa para a qual buscou habilitar-se, como o músico tocando seu instrumento, o médico curando enfermos e o construtor construindo objetos perfeitos, percebe-se que estas não são ainda a tarefa própria do Homem, que para Aristóteles situa-se na racionalidade. O Homem só será feliz se viver segundo a razão e para Aristóteles esta vida segundo a razão constitui aquilo que ele determina como virtude.

            A virtude, segundo esta acepção aristotélica, não estaria apenas relacionada, como hoje em geral o fazemos, a atos de fundo religioso ou convencionais do ponto de vista de uma moralidade específica, mas seria uma disposição de comportamento adquirida por meio da vontade e do hábito, e que se caracteriza por buscar o equilíbrio, a justa medida na experiência dos afetos, em oposição a paixões extremas e descontroladas. Tais virtudes morais, para Aristóteles, são aquelas que têm como objeto os atos da vida prática, tais como justiça, magnanimidade, liberalidade, coragem, amizade. Opondo-se às virtudes, temos os vícios, que são exatamente a disposição de comportamento contrário, quando ao invés do equilíbrio, busco o desequilíbrio ou por deficiência ou excesso de ação.

“E não faz diferença que seja jovem em anos ou no caráter; o defeito não depende da idade, mas do modo de viver e de seguir um após outro cada objetivo que lhe depara a paixão. A tais pessoas, como aos incontinentes, a ciência não traz proveito algum; mas aos que desejam e agem de acordo com um princípio racional o conhecimento destes assuntos fará grande vantagem”.

Aristóteles, Ética a Nicômaco, Livro I, capítulo 3, 1095a10.

            Mas antes de prosseguir, convém compreender por que a virtude está ligada à racionalidade e, por conseguinte o vício à irracionalidade ou ao desprezo da razão. Ocorre que sendo o ser humano um animal racional, que sempre tende ao conhecimento por meio da razão, será somente ao agir desta forma que estará realmente realizando sua condição natural plenamente, o que, em última análise, o fará feliz. Entretanto, são também presentes no ser humano os apetites ou paixões. Tais impulsos precisam ser controlados pela razão, caso contrário o ser humano será refém de suas paixões, rumo a uma vida irracional e infeliz, pois contrária à sua principal finalidade, que é fazer uso da razão. É interessante observar que muito se discorre hoje exatamente sobre o contrário, ou seja, não agir apenas racionalmente e dar lugar ao que diz o coração, os impulsos e paixões, para que se alcance uma vida feliz. Duas perguntas precisam aqui ser respondidas: isso realmente está funcionando? Tais considerações dizem respeito a uma felicidade em meio ao coletivo ou individualista e egocentrada?

          Na busca por agir de modo virtuoso, Aristóteles enfatiza a necessidade de que um meio termo ou justa medida seja levado em conta. E exemplifica isso com a relação do corpo humano com a alimentação e os exercícios.  Se me alimentar de modo deficiente, meu corpo terá problemas, assim como se me alimentar em excesso; se praticar exercícios de menos terei defasagens, assim como se praticar exercícios em excesso terei desgastes. Será preciso encontrar um meio termo entre deficiência e excesso para que se tenha uma boa saúde, nem ficando anêmico ou obeso, nem sedentário ou machucado. É claro que esse meio termo será relativo a cada situação: o que é excesso alimentar para quem trabalha em um escritório é meio termo para quem trabalha em uma construção, bem como o que é excesso para alguém que inicia suas atividades físicas é meio termo para um atleta profissional, por exemplo.

            Aristóteles apresenta uma série de vícios e virtudes relacionados às mais diversas esferas de ação e emoções. Cada virtude estará relacionada ao controle de uma paixão, impulso ou emoção resultando em uma ação, que estará situada entre os extremos de deficiência e excesso, denominados vícios.

Esfera da ação e das emoçõesVício por deficiênciaVirtude (meio termo)Vício por excesso
MedoCovardiaCoragemTemeridade
Desejo de PrazerInsensibilidadeTemperançaLibertinagem  
Dinheiro e RiquezasAvarezaGenerosidadeEsbanjamento  
Dinheiro e RiquezasMesquinhez ou baixezaMagnificência ou liberalidadeVulgaridade
Honra e desonraModéstiaMagnanimidade (grandeza de alma)Vaidade ou vanglória
Honra e desonraFalta de ambiçãoAmbição justa ou prudenteAmbição desmedida
Cólera (Ira)Indiferença (apatia)PaciênciaIrritabilidade
AutoconsideraçãoDepreciação (auto-ironia)VeracidadeOrgulho (jactância)
ConversaçãoGrosseria (rudeza)EspirituosidadeZombaria (bufonaria)
Conduta SocialRabugiceAmizadeSubserviência (servilidade)
VergonhaImpudênciaPudorDespudor (desavergo-nhamento)  
IndignaçãoRancor (malquerença, malevolência)Indignação justaDespeito
Lista de vícios e virtudes presentes na Ética a Nicômaco

Provavelmente pode chamar a atenção nesta lista algumas diferenças entre aquilo que hoje compreendemos como positivo ou negativo do ponto de vista moral e consequentemente ético divergindo daquilo que Aristóteles apresenta, como, por exemplo, a modéstia colocada como um vício por deficiência em relação a situações de honra ou desonra ou o orgulho como vício por excesso em situações de autoconsideração. Certamente, muito mais até do que isso poder ser decorrente de uma visão de mundo e realidade sócio-histórica da qual Aristóteles fazia parte, está relacionado ao fato já algumas vezes frisado de que aqui se pensa em uma Ética que seja válida primeiramente a partir do coletivo e não do individual, que importe primeiramente para uma boa vida em sociedade e não apenas pessoal. Por certo isso faz muita diferença ao pensarmos em tais ações.

            Por fim, é importante salientar que Aristóteles não considerava como virtuoso o indivíduo que uma vez ou outra agiu com virtude, nem como vicioso aquele que em algumas situações agiu viciosamente. Para uma ação ética ser eficaz na vida do indivíduo e da sociedade, é necessário desenvolver-se o hábito de praticá-la. Como vimos, a virtude é uma determinada disposição de comportamento que precisa ser adquirida, por intermédio de decisões e escolhas racionais a que o indivíduo deverá habituar-se até que se torne “automática”, não do ponto de vista de algum mecanicismo comportamental, mas da correta compreensão da necessidade de se buscar a cada ação o meio termo que indicará o agir virtuoso, portanto ético. Essa capacidade de escolha, assim como outras ações humanas, revigora-se e aperfeiçoa-se com o exercício.

Aristóteles, óleo sobre tela (1811) de Francesco Hayez

Concordemos ou não com o filósofo, que é filho de seu tempo e de suas determinações sociais, culturais e mesmo étnicas, cabe pensar que Aristóteles nos traz reflexões de Ética anteriores a grande influência religiosa cristã e ao forte individualismo que passa a tomar conta da maior parte da civilização ocidental a partir da modernidade, com seu auge em nossos tempos. Pensar a Ética como uma ação que precisa primeiramente implicar o todo e não apenas a mim vai contra muitas coisas que ouvimos hoje, seja no senso comum, na autoajuda, na religiosidade ou mesmo no campo político. Ser ético para Aristóteles é acima de tudo ter uma boa vida em sociedade, o que só seria possível partilhando a característica racional comum a todos os seres humanos como orientadora das ações equilibradas, que deverão assim conduzir à felicidade. Será que ainda conseguiremos pensar assim algum dia?

Imagem em destaque: A Academia de Atenas, afresco por Raphael pintado entre 1508 e 1511, na Sala da Assinatura, no Vaticano.

Para saber mais:

15 obras de Aristóteles para baixar, incluindo a Ética a Nicômaco

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