
Marcello Fontes
É pouco provável que tenha havido na História da Humanidade pensadores que possam igualar-se a Aristóteles em genialidade, abrangência de temas pesquisados e influência. Na Idade Média, era chamado simplesmente de “o filósofo”, como se não houvesse outro que pudesse representar tal condição.

Ainda hoje, as teses aristotélicas sobre metafísica, política, ética, economia, retórica, poesia, teatro e lógica se fazem presentes em qualquer estudo ou debate sobre tais temas. Isso para não se falar de suas contribuições no campo da física, botânica, zoologia e astronomia, que mesmo hoje sendo “datadas” ou superadas em termos científicos, foram aceitos inicialmente por centenas de anos e demonstram a vastidão de suas capacidades investigativas.
Natural de Estagira (384 a. C.), veio aos 17 anos para Atenas, onde frequentou por vinte anos a Academia de Platão. Notabilizou-se também por ter sido o responsável pela educação de Alexandre, aquele que mais tarde seria conhecido como “o grande” ou Magno. Em sua volta a Atenas, apoiado pelo ex-aluno, funda o Liceu, que passa a ter importância paralela à Academia. Porém, com a morte de Alexandre, passa a ser alvo de eventuais perseguições motivadas pelo espírito antimacedônio que passa a reinar, retirando–se para Cálcis, onde falece em 322 a. C.

Apesar de ter sido aluno de Platão, tinha profundas e importantes discordâncias filosóficas em relação ao seu mestre. Ele declara mesmo ter dificuldades ao ter de criticar as ideias de Platão, dizendo: “[…] mas talvez seja melhor e até mesmo um dever, para salvar a verdade, sacrificar os nossos assuntos pessoais, principalmente quando se é filósofo: a amizade e a verdade são ambas estimáveis, mas é coisa santa amar mais a verdade”.
As discordâncias com Platão situavam-se, basicamente, na não compreensão de que há outro mundo que comporia a verdadeira realidade. Tudo o que temos, para Aristóteles, é o mundo sensível e a realidade é o que dele apreendemos. Enquanto Platão estabelecia uma identidade entre virtude e felicidade e também entre virtude e ciência, Aristóteles não via o saber como algo que compõe a própria vida do homem, mas uma ciência objetiva que se articula com muitas ciências particulares. A relação da Filosofia com as ciências é alvo de um dos maiores projetos de Aristóteles, que será ver a Filosofia primeira como a “Ciência do ser enquanto ser”, ou seja, enquanto cada Ciência trata de um ou mais aspectos do ser de modo particular, A Filosofia primeira abordaria o ser em sua universalidade. Esta seria, segundo muitos especialistas, a grande “descoberta” de Aristóteles, retratada principalmente em seu conjunto de escritos posteriormente denominados Metafísica.

Aristóteles divide as ciências entre aquelas que tratam do que é necessário e aquelas que tratam do que é possível. As ciências que tratam do que é necessário são as chamadas ciências especulativas ou teóricas, que buscam o saber pelo saber, independente do fim ou utilidade, sendo, por isso, superiores. São elas a Matemática, a Física e a Filosofia primeira, que depois de Aristóteles passa a ser denominada Metafísica. As ciências que tratam do que é possível subdividem-se em práticas, quando tem em vista uma ação, como a Política e a Ética e poiéticas ou produtivas, quando visam a produção de algo, seja um utensílio ou uma obra artística, como por exemplo, arquitetura, a construção naval, a estratégia (arte da guerra) a retórica (a arte de produzir discursos), a Poética (a arte de compor enredos ou narrativas como drama ou tragédia, comédia, poesia épica, lírica). O tema que nos interessa aqui, a Ética, pertence portanto, segundo o próprio Aristóteles, ao campo das ciências práticas.
Aristóteles escreveu com certeza duas grandes obras sobre Ética: Ética a Nicômaco e Ética a Eudemo. Há também um conjunto de escritos denominado “A grande Ética”, apesar de sua brevidade em relação aos demais, que no geral é atribuída a discípulos de Aristóteles e não ao próprio. As principais considerações que traremos aqui sobre a Ética de Aristóteles serão retiradas da Ética a Nicômaco.
“O objetivo da Ética a Nicômaco é de nos dar um entendimento reflexivo de como se pode conseguir a felicidade vivendo uma vida ética dentro da sociedade”.
Jonathan Lear, Aristóteles, o desejo de entender.
Primeiramente, é importante ressaltar que Aristóteles somente compreendia a resposta à questão “o que é uma boa vida para o Homem” dentro da vida em sociedade, já que para ele o Homem é um “animal político”, ou seja, só tem sentido enquanto ser dentro das relações estabelecidas na “pólis” (literalmente cidade), na vida em meio às relações sociais e políticas próprias de uma comunidade humana. Todas as reflexões éticas levarão em conta este aspecto necessariamente coletivo e relacional.
Aristóteles principia a considerar sobre Ética na Ética a Nicômaco deixando claro que, se todas as ações, pesquisas e artes visam um fim, como por exemplo, o fim da medicina ser a saúde, o da estratégia a vitória e o da economia a riqueza, deve haver um fim supremo, que é desejado por si mesmo, sem qualquer outra finalidade que dele derive. Este fim seria a Felicidade, um bem supremo segundo ele. Este fim deve ser buscado particularmente pela política, visto que as ações humanas precisam ser colocadas em perspectiva coletiva e relacional, dentro de uma sociedade, além da questão individual, como vimos. Talvez em tempos de tamanho egocentrismo e individualismo seja difícil compreender isso, mas para Aristóteles a felicidade como bem supremo só poderia ser plenamente compreendida em termos da vida em sociedade, não da vivência particular de cada um. Por isso é tão importante rele-lo hoje.
Mas, afinal, o que realmente seria felicidade para o Homem? Se cada um pode ter alguma felicidade fazendo aquilo que lhe é próprio, realizando a tarefa para a qual buscou habilitar-se, como o músico tocando seu instrumento, o médico curando enfermos e o construtor construindo objetos perfeitos, percebe-se que estas não são ainda a tarefa própria do Homem, que para Aristóteles situa-se na racionalidade. O Homem só será feliz se viver segundo a razão e para Aristóteles esta vida segundo a razão constitui aquilo que ele determina como virtude.
A virtude, segundo esta acepção aristotélica, não estaria apenas relacionada, como hoje em geral o fazemos, a atos de fundo religioso ou convencionais do ponto de vista de uma moralidade específica, mas seria uma disposição de comportamento adquirida por meio da vontade e do hábito, e que se caracteriza por buscar o equilíbrio, a justa medida na experiência dos afetos, em oposição a paixões extremas e descontroladas. Tais virtudes morais, para Aristóteles, são aquelas que têm como objeto os atos da vida prática, tais como justiça, magnanimidade, liberalidade, coragem, amizade. Opondo-se às virtudes, temos os vícios, que são exatamente a disposição de comportamento contrário, quando ao invés do equilíbrio, busco o desequilíbrio ou por deficiência ou excesso de ação.
“E não faz diferença que seja jovem em anos ou no caráter; o defeito não depende da idade, mas do modo de viver e de seguir um após outro cada objetivo que lhe depara a paixão. A tais pessoas, como aos incontinentes, a ciência não traz proveito algum; mas aos que desejam e agem de acordo com um princípio racional o conhecimento destes assuntos fará grande vantagem”.
Aristóteles, Ética a Nicômaco, Livro I, capítulo 3, 1095a10.
Mas antes de prosseguir, convém compreender por que a virtude está ligada à racionalidade e, por conseguinte o vício à irracionalidade ou ao desprezo da razão. Ocorre que sendo o ser humano um animal racional, que sempre tende ao conhecimento por meio da razão, será somente ao agir desta forma que estará realmente realizando sua condição natural plenamente, o que, em última análise, o fará feliz. Entretanto, são também presentes no ser humano os apetites ou paixões. Tais impulsos precisam ser controlados pela razão, caso contrário o ser humano será refém de suas paixões, rumo a uma vida irracional e infeliz, pois contrária à sua principal finalidade, que é fazer uso da razão. É interessante observar que muito se discorre hoje exatamente sobre o contrário, ou seja, não agir apenas racionalmente e dar lugar ao que diz o coração, os impulsos e paixões, para que se alcance uma vida feliz. Duas perguntas precisam aqui ser respondidas: isso realmente está funcionando? Tais considerações dizem respeito a uma felicidade em meio ao coletivo ou individualista e egocentrada?
Na busca por agir de modo virtuoso, Aristóteles enfatiza a necessidade de que um meio termo ou justa medida seja levado em conta. E exemplifica isso com a relação do corpo humano com a alimentação e os exercícios. Se me alimentar de modo deficiente, meu corpo terá problemas, assim como se me alimentar em excesso; se praticar exercícios de menos terei defasagens, assim como se praticar exercícios em excesso terei desgastes. Será preciso encontrar um meio termo entre deficiência e excesso para que se tenha uma boa saúde, nem ficando anêmico ou obeso, nem sedentário ou machucado. É claro que esse meio termo será relativo a cada situação: o que é excesso alimentar para quem trabalha em um escritório é meio termo para quem trabalha em uma construção, bem como o que é excesso para alguém que inicia suas atividades físicas é meio termo para um atleta profissional, por exemplo.
Aristóteles apresenta uma série de vícios e virtudes relacionados às mais diversas esferas de ação e emoções. Cada virtude estará relacionada ao controle de uma paixão, impulso ou emoção resultando em uma ação, que estará situada entre os extremos de deficiência e excesso, denominados vícios.
Esfera da ação e das emoções | Vício por deficiência | Virtude (meio termo) | Vício por excesso |
---|---|---|---|
Medo | Covardia | Coragem | Temeridade |
Desejo de Prazer | Insensibilidade | Temperança | Libertinagem |
Dinheiro e Riquezas | Avareza | Generosidade | Esbanjamento |
Dinheiro e Riquezas | Mesquinhez ou baixeza | Magnificência ou liberalidade | Vulgaridade |
Honra e desonra | Modéstia | Magnanimidade (grandeza de alma) | Vaidade ou vanglória |
Honra e desonra | Falta de ambição | Ambição justa ou prudente | Ambição desmedida |
Cólera (Ira) | Indiferença (apatia) | Paciência | Irritabilidade |
Autoconsideração | Depreciação (auto-ironia) | Veracidade | Orgulho (jactância) |
Conversação | Grosseria (rudeza) | Espirituosidade | Zombaria (bufonaria) |
Conduta Social | Rabugice | Amizade | Subserviência (servilidade) |
Vergonha | Impudência | Pudor | Despudor (desavergo-nhamento) |
Indignação | Rancor (malquerença, malevolência) | Indignação justa | Despeito |
Provavelmente pode chamar a atenção nesta lista algumas diferenças entre aquilo que hoje compreendemos como positivo ou negativo do ponto de vista moral e consequentemente ético divergindo daquilo que Aristóteles apresenta, como, por exemplo, a modéstia colocada como um vício por deficiência em relação a situações de honra ou desonra ou o orgulho como vício por excesso em situações de autoconsideração. Certamente, muito mais até do que isso poder ser decorrente de uma visão de mundo e realidade sócio-histórica da qual Aristóteles fazia parte, está relacionado ao fato já algumas vezes frisado de que aqui se pensa em uma Ética que seja válida primeiramente a partir do coletivo e não do individual, que importe primeiramente para uma boa vida em sociedade e não apenas pessoal. Por certo isso faz muita diferença ao pensarmos em tais ações.
Por fim, é importante salientar que Aristóteles não considerava como virtuoso o indivíduo que uma vez ou outra agiu com virtude, nem como vicioso aquele que em algumas situações agiu viciosamente. Para uma ação ética ser eficaz na vida do indivíduo e da sociedade, é necessário desenvolver-se o hábito de praticá-la. Como vimos, a virtude é uma determinada disposição de comportamento que precisa ser adquirida, por intermédio de decisões e escolhas racionais a que o indivíduo deverá habituar-se até que se torne “automática”, não do ponto de vista de algum mecanicismo comportamental, mas da correta compreensão da necessidade de se buscar a cada ação o meio termo que indicará o agir virtuoso, portanto ético. Essa capacidade de escolha, assim como outras ações humanas, revigora-se e aperfeiçoa-se com o exercício.

Concordemos ou não com o filósofo, que é filho de seu tempo e de suas determinações sociais, culturais e mesmo étnicas, cabe pensar que Aristóteles nos traz reflexões de Ética anteriores a grande influência religiosa cristã e ao forte individualismo que passa a tomar conta da maior parte da civilização ocidental a partir da modernidade, com seu auge em nossos tempos. Pensar a Ética como uma ação que precisa primeiramente implicar o todo e não apenas a mim vai contra muitas coisas que ouvimos hoje, seja no senso comum, na autoajuda, na religiosidade ou mesmo no campo político. Ser ético para Aristóteles é acima de tudo ter uma boa vida em sociedade, o que só seria possível partilhando a característica racional comum a todos os seres humanos como orientadora das ações equilibradas, que deverão assim conduzir à felicidade. Será que ainda conseguiremos pensar assim algum dia?
Imagem em destaque: A Academia de Atenas, afresco por Raphael pintado entre 1508 e 1511, na Sala da Assinatura, no Vaticano.
Para saber mais:
15 obras de Aristóteles para baixar, incluindo a Ética a Nicômaco
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