Hoje, entrevista com Leo Lama

E os Poetas, hem?

Evandro Affonso Ferreira

E os poetas, hem? Os poetas! A raça irritadiça dos poetas…

Pílula do dia

Os passos em volta, de Herberto Helder

Nasceu em 1930, Funchal, Ilha da Madeira. Morreu em 2015. Autor de imensa obra poética, Herberto Helder foi diretor literário da Editorial Estampa. Em 1971 foi para África, onde fez uma série de reportagens para a revista Notícias. Traduziu, ou, como dizia, foram mudados para o português, poemas de Edgar Allan Poe, Antonin Artaud, Henri Michaux. Ganhou o prêmio Pessoa, mas recusou. Escreveu, entre tantos, Fhotomaton & Vox, Os passos em volta, Ou o poema contínuo.

Trecho do livro:

É um homem que eu deveria socorrer. Tento mostrar-lhe que há algures, nas nossas possibilidades humanas, uma zona onde a vida se regenera. Eu própria gostaria de ser mais alegre e generosa, mas hesito nos meus impulsos. Existe nos homens essa insuportável fatuidade, um orgulho estúpido e, lá no fundo, uma espécie de condição própria: inalcançável, repugnante. Decerto: é misericórdia o que desperta em mim, ou o desejo de abrir nele um caminho tenazmente vedado. Digo-lhe: os teus olhos. Mas arrependo-me.

Entrevista: Leo Lama

Músico, poeta, dramaturgo, escritor, roteirista. Aos 23 anos, estreou como autor teatral com a peça Dores de amores, ganhando os prêmios Mambembe e Molière. A mesma obra virou filme. Nasceu sob os eflúvios dramatúrgicos: filho de Walderez de Barros e Plínio Marcos. Escreveu muitas outras peças, entre elas: Madalena bêbada de blues, sucesso de público e crítica. Sua obra privilegia a busca do amor e as relações amorosas, a importância dos ritos, do diálogo e do caminho espiritual. Meu amigo muito querido, companheiro das horas dificílimas.

Evandro Affonso Ferreira – Morrer é vislumbrar as profundezas místicas dos fogos-fátuos?
Leo Lama – Morrer me parece ser apenas a continuação da vida do outro lado da porta. No entanto, acredito que lá viveremos constituídos de outra matéria, substância mais sutil, menos densidade mórbida. Sim, ao contrário daquela que segura a foice, às vezes é a existência que teima em morbidez. Da morte espero tudo, principalmente o Desconhecido, o que conhecemos já não basta, sensação de tudo visto não purga como a extinção, apenas esgota. Nas profundezas místicas dos fogos-fátuos penso que esteja ele mesmo, o ardor. Céu infernal. Assim evoco Jean Cocteau, “se a minha casa pegasse fogo, eu salvaria o fogo”.

Evandro – E a solidão? É aquele invisível, ali no canto, carente de apalpamentos?
Leo – Solidão, inimiga sem par. Ela? Enfrento sozinho. Mas existe uma Ana Carolina assim tão palpável.

Evandro – É possível farejar as voluptuosidades do eventual, as luxúrias do acaso?
Leo – Investigo o acidental. Onde andará? Porventura o acaso existe sem as razões do acidente? Vou vendo relações em tudo, motivo em cada coisa, isso ligado com aquilo. Por acaso eu existo?

Evandro – Viver? Você está preparado para esta emboscada?
Leo – Não. E Hamlet já dizia que “estar preparado é tudo”. Se “o resto é silêncio” ainda falo demais, penso demais, amo demais, sobrevivo demais. Durar é mesmo uma arapuca.

Evandro – Reveses? Enriquecem biografias, empobrecem epitáfios?
Leo – Esses baques, pudéssemos evitá-los. Estariam nas vicissitudes a riqueza e a pobreza? Penso no que Jó nos ensinou e não aprendemos muito bem. Seriam os contratempos mais vivos do que nós? Enquanto grafo minha história sonho com um epitáfio: “Esse não teve biografia”. No mais, somos da mesma matéria da instabilidade, parece. A insegurança nunca acaba.

Evandro – E quando você se sente uma nau desarvorada, barco aturdido nas águas da inquietude, veículo desordenado numa estrada em declive?
Leo – Existe o tempo em que não me sinto assim? É a mulher amada o porto seguro? É o amor o leme, a direção que guia ao firme ou tudo é sempre areia-movediça? Terra que engole. Fundamentada mesmo só tenho a minha imaginação. Eis o mar.

Evandro – Você já aprendeu, com o passar do tempo, a farejar, com antecedência, uma rua sem saída?
Leo – Ainda estou aprendendo a aprender. Mas desconfio que é o beco sem alternativa que me fareja. Suspeito que é para o alto a saída, pois para baixo nem os santos estão ajudando.

Evandro – Sensação de que sua vida, vez em quando, se parece com uma parábola ininteligível, cheia de não-vereis-não-entendereis?
Leo – Penso nessa danada, a perspectiva. Lembrei de algo que marcou a minha infância. Aconteceu lá no sítio dos meus pais. Eu, que sempre fui um perguntador, um chato da interrogação, andando pelas ruas de terra da região, passei em frente a uma obra. Vi um homem trabalhando e perguntei: “O que você está fazendo?”, ele respondeu meio bravo: “Quebrando pedras. Não está vendo, moleque?”. No dia seguinte eu fui lá de novo e meio que para provocar, repeti a pergunta: “O que você está fazendo?”. Um pouco menos acabrunhado, o homem respondeu: “Estou ganhando o meu sustento”. Gostei da brincadeira e no dia seguinte, quando o homem me viu já abriu um sorriso e balançou a cabeça. Maroto, jornalista mirim da vida alheia, inquiri: “O que você está fazendo?”. O homem, agora com bom humor e entusiasmo, respondeu: “Construindo uma casa maravilhosa, quando estiver pronta você vai ver a beleza que eu estou fazendo”.

Evandro – Eu sinto, você também sente que, às vezes, muitas vezes, carece de passos únicos para caminhar no sentido contrário ao unânime?
Leo – José Régio, em seu Cântico Negro, nos deu o mapa: “Se vim ao mundo, foi só para desflorar florestas virgens e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada”. Vale, mais uma vez, citar Nelson Rodrigues? Disse o velho profeta a verdade irrefutável, frase hoje já devidamente colocada na Bíblia: “Toda a unanimidade é burra”. Mas, me pergunto, se não sou unânime, sou inteligente? Desconfio.

Evandro – E esse solene cortejo de incompreensíveis e todos os seus inumeráveis-ininteligíveis apetrechos?
Leo – Vai essa procissão louvar a Deusa Perplexidade.

Fragmentos

Olhares extenuados procurando lonjuras, tentando alcançar descendências para se espelhar, suscitar a preponderância dos antepassados. Olhares extenuados ainda impossibilitados de transitar nos escaninhos da genealogia das inumeráveis ausências – olhares conclamando ressurreições. Não, ele não ignora as próprias deficiências evocatórias, sua incapacidade de manufaturar ancestralidades. Sabe igualmente como é extenuante procurar abranger com a vista os contornos da transcendência; procurar entender a mímica do desarrazoado. Entanto, dizem, nos últimos tempos tem conseguido adestrar o olhar para, pelo menos, vislumbrar as profundezas místicas dos fogos-fátuos.

Livro de minha autoria

Foto principal

(As fotos que abrem este blog pertencem ao meu futuro livro, Ruínas. Passei um ano fotografando paredes carcomidas pelos becos, veredas, ruas do centro, e de alguns bairros paulistanos).

As imagens apresentam uma concretude pobre e miserável, de ruína mesmo, que na sua própria deterioração encontra rasgos inesperados de um refinado expressionismo abstrato – força das paredes arruinadas e das tintas expressivas do tempo. (Alcir Pécora)

Um comentário em “Hoje, entrevista com Leo Lama

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  1. Linda entrevista. As perguntas são um desconcerto, um espanto, uma poesia. As respostas nos esperançam. Continue, Evandro. Queremos mais.

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