FREDERICO MORIARTY
1° Milagre: Ele curou o Enfermo.
Corria o ano de 1984. Diego estava num time pequeno da Itália. Saira endividado e destruído de Barcelona, enganado por mais um dos vários dirigentes esportivos que passaram pela sua existência no futebol. A cidade de Nápoles iria se tornar sua outra pátria. Nascido numa favela miserável de Buenos Aires, na região de Lanús, Diego fora contratado num blefe fantástico do presidente do Napoli. Três times se ofereceram para comprar o passe do argentino naquele ano. A poderosa Juventus ( A Vecchia Signora, maior campeão do futebol italiano), a Internazionale de Milão e o pequeno Napoli. Desconfiado da compra do atacante pelo Napoli, o presidente da Federazione Italiana Giuoco Calcio ( FIGC) pediu uma garantia, afinal o time não só derrotara 2 poderosos na disputa como oferecera 30% a mais pelo passe. Uma carta timbrada com escrita do próprio punho, além de uma cópia do cheque com o valor astronômico a ser pago ao time catalão foi entregue. Com a aceitação do presidente da FIGC a venda foi ratificada. Apressado, ele não percebeu que o cheque de bilhões de liras não estava assinado. Logo depois da calorosa recepção na cidade do messogiorno italiano, veio um convite: um pai desesperado pede a Maradona que convencesse o Napoli a fazer um amistoso beneficente contra o time da favela em que morava na periferia da cidade. O motivo: o filho de apenas 9 anos ( A mesma idade que Maradona foi contratado pelo Argentino Juniors), precisava de uma cirurgia de emergência e não tinha o dinheiro. Diego pede aos dirigentes do Napoli e estes negam a possibilidade. Inconformado, Maradona monta um time, veste a camisa celeste e vai ao campo da várzea no meio da favela. Era dia de chuva e frio. O terrão virara um imenso lamaçal. Maradona correu, brigou pela bola, deu seriedade ao espetáculo. Fez um gol magistral. Os milhares de moradores se aglomeravam entre o barro e a chuva para poder aplaudir o gênio dos gramados. O dinheiro arrecadado, além da contribuição de Diego, permitiram ao menino fazer a cirurgia e ser curado.
2° Milagre: A multiplicação dos dribles
Corria março de 1969. O homem nem chegara à Lua. O menino Goyo Carrizo de apenas 11 anos estava no time infantil do Argentino Juniors, o segundo time a revelar mais jogadores no mundo ( perde só para o Ajax). Carrizo criou coragem e falou com o técnico Francisco Cornejo, o lendário revelador de talentos que hoje dá nome ao estádio do Argentino Juniors.
” Tem um menino no meu bairro que é muito melhor do que eu”
” Traga o amigo aqui”.
No dia seguinte, Diego Armando Maradona fez sua primeira aparição num campo de futebol. Fez malabarismos com a bola, fintou, driblou, cabeçeou, fez gols. Terminado o treino Cornejo foi falar com o prodígio.
” Quantos anos você tem? “
” Fiz 8 anos em 30 de Outubro…”
Estupefato, o técnico foi até a casa dos pais de Diego na favela. Queria um comprovante de que o menino tinha só 8 anos, pois a qualidade era semelhante a dos garotos de 14 ou 15 anos. Naquele dia Maradona assinava seu primeiro contrato com um time de futebol. Carnijo sempre dizia que todos nós teremos contato com um milagre ao menos uma vez na vida. Naquele dia, ao ver um menino genial nos dribles, teve certeza de que era o seu milagre divino.
Passados 17 anos, Maradona era o camisa 10 da seleção argentina na Copa do México ( 1986). Nas quartas de final o adversário seria a Inglaterra. Foi na terra da banda Queen que no final do século XIX foi inventado o football. As regras, as táticas, a organização, nada fugiu às mãos dos ingleses. Mas em campo, tradicionalmente, eles sempre praticaram um futebol sem muita inspiração. Mas sempre entram como favoritos, afinal God save The Queen. Aos seis minutos da segunda etapa, Diego pega a bola no meio campo esquerdo e gruda a pelota no pé e começa a driblar os rivais. Dribla um, dois…cinco. Toca a bola para a direita e corre pra área. A bola vem alta. Com um sutilíssimo toque de mão, só visto depois de 20 repetições em câmera lenta e narradores histéricos xingando a falta de “caráter” do baixinho.
Mais cinco minutos de jogo e Maradona arranca do campo argentino e dribla Cecil Rodhes e Charles Manson, em seguida finta os Beatles e os Rolling Stones, passa por Jack o estripador, Barba Negra e Sir Henry Morgan. Termina com um toque enganador em Margaret Thatcher. O irascível menino pobre deixou estatelado no chão oito britânicos. Um dos mais belos gols de todas as Copas. Maradona, quando queria, era um demônio com os pés. Os lances geniais em que ele driblava seus opositores pareciam daqueles desenhos animados antigos. Maradona corria como o Papa Léguas; os outros aquelas simpáticas tartarugas.
Mas que raios é essa polêmica do ” gol de mão?”. Os ingleses inventaram o futebol, os chatos o colonizaram, os deuses da bola nos trouxeram o prazer. Partidas de futebol são os retratos da vida: errática, torta e inconstante. São nas traições, nos golpes sorrateiros, nas tentativas de ludibriar a todos, menos a bola, essa criação simples e sobrenatural da humanidade. O erro, a artimanha, os pênaltis inexistentes e os gols impedidos são parte do imaginário futebolístico. Como torcedores, nunca e jamais sairemos derrotados de um jogo. Sempre haverá um juiz aqui, uma mão acolá, ou uma falha brutal a justificar uma derrota. O Brasil chegou a final de 1958 por conta de um pênalti não marcado. E por aqui ninguém reclama. Maradona, genial fora dos gramados, explicou o lance: ” foi a cabeça de Diego e a mão de Deus”. Politizado, justificou seu ato como uma vingança contra o massacre inglês nas Malvinas argentinas em 1981. O império inglês passou 350 anos destruindo colônias e seus povos e histórias. Escravizou nações, mas o que fere a humanidade é a mão de um rapaz latino-americano. Maradona encantou o mundo do futebol com seus dribles, suas jogadas circenses, como um Carlitos dos gramados e por ter anotado quase 400 gols, muitos deles belíssimos.

3° Milagre: Ele renasceu entre os mortos
Diego não escondia seus sentimentos, nem no campo nem fora dele. Em tempos de mundo virtual, redes sociais e suas ilusões e falsidades e do empreendedorismo, temos antes de tudo uma imagem a zelar, um comportamento que beira à perfeição. Nada mais frágil. A expansão das “fake news” existe porque nossa sociedade nos exige ser uma caricatura de nós mesmos. Somos a “fake news” de nossa identidade. Maradona era oposto a isso. Nos jogos era expulso. Quando perdia chorava com sinceridade. Brigava com dirigentes, técnicos. Usava drogas, entrava em depressão, brigava com jornalistas. Fazia tudo ao contrário do que está na cartilha hipócrita e falsa do bom-mocismo. Mas possuía algo transbordante que nenhum bom moço tem: vida. Certa vez disse que ” Cristiano Ronaldo faz um gol e vende um xampu “. Os grandes jogadores de hoje são antes de tudo empresas, não é à toa que todos eles tem ” fundações ” mas são notórios sonegadores, além de quase sempre venderem uma loçãozinha de barba.

Maradona não ganhou a Copa de 1978, porque o ditador argentino exigiu Osório no time, o Dario Maravilha de César Menotti. Este justificava a não convocação pela idade tenra de Diego, 17 anos como Pelé. Ganhou quase sozinho a de 1986. Na copa seguinte, mesmo vindo de contusão e um doping que o afastou 3 meses do gramado, Maradona brilhou e levou a Argentina a sua segunda final seguida. Um pênalti inexistente no final da partida deu o título injusto para a Alemanha. Na semifinal, a Argentina havia triturado a dona da casa, Itália. Com direito a pedido de Diego para que os napolitanos torcessem para o time sul-americano, afinal os italianos consideravam os sulistas como ” África branca”. Mais uma vez ganhou a simpatia da população e o ódio das elites e imprensa. Falou a verdade.

Maradona jogou no Napoli entre 1984 e 1991. O time do Sul italiano jamais ganhara um torneio de peteca na história. Era um time semelhante ao São Bento de Sorocaba. Pequeno, demasiadamente pequeno. Com o craque argentino o time levantou 2 campeonatos italianos e foi 2 vezes vice campeão. Ganhou a Copa e a Super Copa da Itália. Levantou a Copa da UEFA numa época em que a Champions era disputado só pelos campeões europeus. Forte era a copa da UEFA. No título, pra se ter ideia, o Napoli derrotou Ajax, Bayern e Juventus. Mesmo assim, os dirigentes napolitanos, cansados dos altos salários e da quase divindade de Diego na região, deram um jeito de colocar Maradona na corda bamba. A corrupta Federação do Calcio Italiano pune Diego com 18 meses de expulsão por doping de cocaína ( droga que ele conheceu nas festas dos dirigentes do time anos antes).. Maradona entrou em depressão e demonstrava isso em público. Engordou 25kg e vivia nos noticiários ( alguns deles para reconhecer 4 dos 5 filhos que teve). Era fim de 1993. O ídolo estava com 33 anos, gordo, deprimido, vivia alcoolizado. O craque tivera problemas em sua carreira que o o afastaram dos gramados: perna quebrada por entrada criminosa dum zagueiro do Atlhetic Bilbao, hepatite, expulsões injustas, pancadas e mais pancadas de jogadores medíocres. Nenhuma delas era tão forte quanto a crise de fins de 1993. Maradona era tratado como um jogador em extinção. Um amigo fisiculturista o ajudou. Voltou a treinar forte, enfrentou a depressão, começou a emagrecer com efedrina. Juntou -se a uma jovem e talentosa seleção argentina para disputar a Copa de 1994. Com direito a consulta a Fifa e João Havelange sobre o uso do inibidor de apetite. Sinal verde, a Argentina assombrou os Estados Unidos. Maradona, o Deus, estava de volta. Junto com Brasil e Itália passava a ser favorita ao título. O gol contra a Grécia acendeu o sinal vermelho. A Fifa, de forma criminosa, tirou Maradona da copa por ” doping” com efedrina. Sem o craque, a Argentina se perdeu em campo nas oitavas de final e acabou eliminada.
Maradona caiu em depressão pública mais duas vezes, mas sempre encontrava forças para renascer. Numa dessas vezes foi a Cuba e passou meses na ilha de Fidel Castro de quem virou amigo e admirador. Tatuou Che no braço. Fez tratamento contra dependência química. Logo depois teve uma carreira longa ( sem titulos) como treinador. Esteve à frente da Argentina de 2010. Fez uma campanha mediana, como todos os outros técnicos do país sul-americano desde 1998. Pra piorar, segundo a mídia, ficou amigo de Hugo Chávez. Pronto, além de irascível, drogado, agora era comunista de vez. E é quase só isso que lemos sobre Maradona, ” bom de bola, mas…”. Diego teve de renascer mil vezes pra morrer em paz. Preocupado se o povo ia lhe amar na despedida. A comoção nacional na Argentina e em Nápoles e as conversas de bar no Brasil provam. Maradona morreu não amado, mas idolatrado.

4° e último milagre: um Deus que sabe dançar
Corria 1998 e alguns fanáticos torcedores criaram a Igreja Maradoniana num 30 de Outubro, data de nascimento de Diego. Segundo os fiéis o tempo se divide entre o nascimento de Maradona em 1960 ( D10S, na abreviatura). Bobagem ou não, existem templos em 12 países hoje e cerca de 200 mil fiéis.
Temos até os fantásticos ” 10 mandamentos “. Vejamos:
- A bola não está manchada como D10S disse em sua homenagem.
- Amo futebol acima de todas as coisas.
- Declare seu amor incondicional por Diego e pelo bom futebol.
- Defenda a camisa da Argentina, respeitando o povo.
- Divulgue os milagres de Diego por todo o universo.
- Honre os templos onde ele pregou e suas vestes sagradas.
- Não proclamando Diego em nome de um único clube.
- Pregue os princípios da igreja maradoniana.
- Pegue Diego como nome do meio e coloque no seu filho.
- Não seja o tampa de uma garrafa térmica e não deixe a tartaruga escapar de você (não viva longe da realidade e não seja inútil) .

Porque a idolatria com Maradona? Por ter sido o maior jogador de futebol que vi jogar. Assisto jogos desde 1977 e nada superou El Pibe de Oro. Pelé é ” más grande?”. Sim. Feitos futebolísticos talvez jamais igualáveis. Mas Diego foi um ser humano inigualável também, dotado de um dom único nos campos, capaz de malabarismos e acrobacias que enchem os olhos. Fora do jogo, Diego foi alguém que sempre valerá a pena conhecermos, ao contrário do Edson, um ser execrável em vários aspectos. Diego é um filho miserável de uma favela pobre dum país de terceiro mundo que encantou multidões de torcedores pelo mundo. Maradona foi um ser humano repleto de idiossincrasias, corajoso, desafiador dos poderes dominantes e com uma capacidade de amar sem limites.
Diego era o menino torcedor fanático do Boca Juniors. Maradona foi jogador por duas vezes e 3 anos do time do coração. Tinha uma cadeira cativa no histórico estádio de La Bombonera. Não perdia um jogo do seu Boca. Chorava com as vitórias e derrotas, vibrava com os títulos que ganhou como jogador lá e viu o time ganhar depois dele. Maradona se despedaçava em estádio pelo seu time ou por sua seleção argentina. Por isso ele é gigante, por isso ele é Deus, porque o menino Diego nunca deixou o homem Maradona. Por isso ser latino-americano é tão diferente. Somos irascíveis de amor e verdade. Somos ricos de vida e vontade. Maradona foi um pouco desse imaginário. Se Nietzsche estivesse vivo, eu lhe diria: ” Eis aí um Deus que sabe dançar “.
Na Copa de 1994 eu me impressionei com o rosto do gênio. Não que eu des-conhecesse a trajetória dele com os químicos. Aliás, em nada diminui sua grandeza.Texto excelente!
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Obrigado amiga!!
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Tributo simplesmente sen-sa-ci-o-nal, professor! À altura do monstro que foi Maradona, o Garrincha dos dribles e gols mágicos do país hermano. Como nosostros, a Argentina é um celeiro de craques. Assino embaixo a frase de Paulo Roberto Falcão sobre Maradona: “Com a bola era um semideus; sem ela, humano.” Olé! Saudações tricolores.
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Obrigado meu grande amigo
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