
Juliano e o não-lugar…
Evandro Affonso Ferreira
Hoje me deu vontade de ler trecho de um livro do meu amigo Juliano Garcia Peçanha…
Pílula do dia

Tristram Shandy, de Laurence Sterne

Clérigo anglicano (1713-1768), Laurence Sterne é autor da primeira grande paródia ao romance moderno, publicado em cinco partes, entre 1759 e 1767. Escreveu, além de A vida e opiniões de Tristram Shandy, Uma viagem sentimental, Sermões do Sr. Yorick e Cartas a Eliza. Um dos precursores do fluxo de consciência. Citado por Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas. Influenciou Goethe, Diderot, Balzac, Dickens, Joyce, Beckett, tantos outros.
Comentário:
Aqui, neste genial romance, narrador Tristram diz que o leitor é um grande asno, critica severamente por sua desatenção, por não saber deduzir algo das entrelinhas, ou seja, o leitor deveria aprender a pensar, a ser menos ignorante, que estudasse mais. As frases são engraçadíssimas. Convida o leitor para imaginar o resto de uma cena, para frustrá-lo logo em seguida, dando as instruções precisas de como o leitor deveria imaginá-la. Gênio.
Entrevista: Vladimir Safatle

Professor no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, sendo professor titular desde 2019, além de professor convidado e pesquisador em outras universidades e instituições europeias, africanas e americanas (Paris VII, Paris VIII, Toulouse, Louvain, Stellenboch Institute of Advanced Studies/Africa do Sul, Essex, Berkeley). Também compositor, tendo composto trilhas sonoras para peças de teatro como Leite Derramado e Caesar, ambas de Roberto Alvim. Recebeu o Prêmio Aplauso de 2015 por Melhor Trilha Sonora Original. Em 2019, lançou, juntamente com a cantora Fabiana Lian, o álbum Músicas de Superfície, com peças para piano e voz compostas entre 1994 e 1998. Escreveu vários livros, entre eles: Sobre arte e psicanálise, A paixão do negativo: Lacan e a dialética, A filosofia após Freud, Quando as ruas queimam – Manifesto pela emergência e Patologias do social – arqueologia do sofrimento psíquico.
O filósofo e o corpo morto
Evandro Affonso Ferreira – Agora, depois de velho, tenho conseguido polir os avanços com o verniz da parcimônia. E você? Já se afeiçoou aos recuos? É condescendente com os retrocederes?
Vladimir Safatle – Analisar em termos de recuo e avanço só faz sentido quando o movimento se encerrou. Nem sempre um recuo é um recuo. Ele, às vezes, é só a preparação necessária para o salto. Ou, às vezes, é uma suspensão própria aos que não aceitam que a vida tenha apenas um ritmo. De toda forma, fingir-se de morto é uma estratégia clássica para recompor forças tendo em vista o próximo embate. Em uma vida efetiva, morre-se várias vezes, mas isso não significa nada em termos de fim. Deixar-se morrer várias vezes é, por mais paradoxal que possa parecer, movimento próprio de quem quer trapacear em todo recuo, de quem faz do recuo só uma estratégia para demover a guarda alta e correr para a frente quando as condições são muito adversas. A trapaça é a astúcia suprema da vida. No que deixo aqui um agradecimento a essas bailarinas e bailarinos da desonestidade.
Evandro – É possível rastrear lampejos?
Safatle – Sim, acho que é o que mais fazemos, e acho que você encontrou uma bela maneira de descrever o que nos move. Vivemos rastreando lampejos, procurando fontes de luz nos lugares os mais improváveis. E muitas vezes nem se trata de luz como a conhecemos. Trata-se de outra forma de iluminação das coisas, outra maneira de arrancar as coisas da indefinição. Até porque, como dizia Paul Celan: “Dá a palavra/Mas dá também a sombra”.
Evandro – É aconselhável, vez em quando, se refugiar, resignante, nos estupefatos?
Safatle – Se for como forma de resignação, certamente não. As resignações são amargas demais para terem o direito de durar mais do que um instante.
Evandro – Você já ensinou seu próprio olhar a refutar angústias e todos os seus apetrechos melancólicos?
Safatle – Não acho que faça algum sentido refutar angústias, não creio que ela seja algo que se refuta. É como tentar refutar a sombra. Onde há sol, há sombra. Seres humanos são atravessados por desejos que não controlam, por caminhos que se fazem às suas costas, por mudanças que se tecem sem que se perceba, em suma, por gozo e angústia. Querer refutar isto é como ansiar por alguma forma de lobotomia, por mais duro que possa ser em vários momentos. Já os apetrechos melancólicos dos quais você fala é algo, que, sim, espero achar uma maneira de tirá-los de circulação. Mas é verdade que o curso do mundo não ajuda muito.

Evandro – Costumo esbarrar, distraído, tempo quase todo na precipitação. E você?
Safatle – Eu não sei exatamente o que ‘precipitação” significa. Para tanto, eu precisaria saber o que é o tempo justo, qual é a cadência correta. Quando criança, eu tinha uma professora de piano que dizia que eu nunca estava no ritmo certo. Logo, sou inapto até mesmo para entender a questão.
Evandro – Você já aprendeu a farejar com antecedência uma rua sem saída?
Safatle – Tudo o que realmente conta hoje para nós um dia foi impossível. Não ruas sem saídas. Um limite nunca é exatamente um limite. Ele é o ponto de transformação de uma situação. É tudo uma questão de saber como abordá-los. Até porque, se for para analisar em termos de fracasso, nada sob o sol está imune de ser visto como um fracasso. O que mostra a falta de sentido absoluta da avaliação. Tem uma mágica que consiste em, de tanto bater o carro com a parede no fim da rua, você acaba construindo uma saída. Era assim que John Cage fazia música. Schoenberg uma vez lhe disse que ele compunha como quem batia a cabeça contra uma parede. No que ele respondeu: “Então eu quero bater a cabeça até furar a parede.” Que São Cage acompanhe os “maus” condutores até a próxima colisão.
Evandro – E quando você pretende empreender tarefa de confeccionar caminhos, mas percebe que seus passos não se adaptam às probabilidades peregrinas?
Safatle – Eu acho que, involuntariamente, acabei respondendo essa pergunta na questão anterior.
Evandro – Você já inventou, para consumo próprio, símbolo gráfico indicativo para ajudá-lo a seguir os próprios instintos?
Safatle – Não acho possível não seguir instintos. Isso sempre ocorre, o que faz todo símbolo gráfico de ajuda algo supérfluo. Instintos e pensamentos são apenas pensamentos que se esquecem. Assim, se não é possível não seguir seus pensamentos, já que eles se impõem a nós, ocupam o tempo, voltam quando querem, então não há por que alimentar a ilusão de que temos alguma distância em relação aos instintos. É verdade que somos marcados por uma metafísica da humanidade, por uma degradação do que chamamos de “animalidade”, que acaba nos empurrando para imaginar que o instinto é uma força cuja humanidade de nossas ações se descolaria. Bem, mas chega uma hora que deus precisa ir embora das memórias do corpo.
Evandro – E as certezas? Vida toda ultrapassamos, se tanto, o pórtico do talvez?
Safatle – E por que quereríamos isto? Desde Hamlet, é sinal de humanidade perceber o quanto nossas ações são atravessadas por “talvez”. O que não tira em nada sua força e necessidade.
Fragmentos
Há muita sisudez no olhar dela – sequidão ótica. Entretanto nossa ontológica personagem não provoca perplexidade neles, seus interlocutores: sabe praticar soslaios e vieses – pertence à árvore genealógica dos Oblíquos.
…………
Tempo todo escarafunchando indeterminados cotidianos. Vez em quando é advertida, admoestada pelas aragens assertivas do convicto.
Livro de minha autoria

Foto principal
(As fotos que abrem este blog pertencem ao meu futuro livro, Ruínas. Passei um ano fotografando paredes carcomidas pelos becos, veredas, ruas do centro, e de alguns bairros paulistanos).
As imagens apresentam uma concretude pobre e miserável, de ruína mesmo, que na sua própria deterioração encontra rasgos inesperados de um refinado expressionismo abstrato – força das paredes arruinadas e das tintas expressivas do tempo. (Alcir Pécora)
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