Hoje, entrevista com Marcelo Girard

Nós e os eus

Evandro Affonso Ferreira

Pascal dizia que o eu é odioso…

Pílula do dia

Perguntas insólitas

O filósofo e o desespero

Entrevista: Marcelo Girard

Evandro Affonso Ferreira – Agora, depois de velho, tenho conseguido polir os avanços com o verniz da parcimônia. E você? Já se afeiçoou aos recuos? É condescendente com os retrocederes?
Marcelo Girard – Faz tempo, tiraram-me do ventre hesitante e soltaram a mão: vai, experimenta. Foi estranhíssima a primeira infância. A partir dos onze anos acreditei que tudo, tudo era possível. Aos vinte já me achava antigo como um espírito errante ou a Sé de Braga. Uma contradição do tempo, considerado o vacilo inicial. Dediquei-me, já quando achava tudo possível, a ser um artista em várias linguagens, sempre sob a pressão de uma premonitória charge do Jaguar acerca do que significa ser um artista versátil. Para isso impus-me tarefas arriscadas, entre as quais dar o sangue por um poema. Demorei para descobrir que as palavras, quando vêm, vêm refugando, algumas levam anos para significar, que as ideias nascem do mesmo jeito, desenganadas, e que tudo isso convive no mesmo corpo estranhado de si. Percebi que a tarefa é sempre maior, crescentemente mais difícil. Que nascer não tem fim. Agora é reconsiderar. Distanciar-se para ver melhor, se furtar a repetir, perdoar sem contrapartida, saber perder, refluir para avançar. Tudo com muita naturalidade. Não é retirada nem fuga, é o ganha-pão, a divisão do pão. Recuar é político, tático, tem um quê de artístico.

Jardim (óleo sobre tela)

Evandro – É possível rastrear lampejos?
Marcelo – Pegue uma rede e vá caçar borboletas raras como Nabokov. Identifique com lupa os cogumelos mais excêntricos do bosque, como John Cage. Mire as plantas do jardim à cata de mais poesia como Emily Dickinson. Olhe as cores e suas relações mais intricadas com o conta-fios de Josef Albers, para materializar o canto. Não perder o senso (ou perdeste?…). Coletar esses clarões éticos, estéticos, poéticos gera energia, são fontes primordiais de luz para estetas, intelectuais, cientistas, para os mais abstratos e até o menos subjetivo dos mortais.

Evandro – É aconselhável, vez em quando, se refugiar, resignante, nos estupefatos?
Marcelo – Nos conhecemos na luta e na trégua, nas crises breves e nas bravas. Nas alegrias também: elas brotaram aqui e ali. De tempos em tempos precisamos nos reapresentar, ou ficaremos pelo caminho. O espanto que a realidade nos causa é moral, fere o lado mais esconso e cristalizado de cada um. Os fatos aos turbilhões nos empurram para todo lado, exorbitam, espezinham nossas convicções. Nos aliviam desse avanço de Leviatã a observação, o aprendizado, o exercício da crítica. Um belo refúgio. Resignação se opõe a indignação, dois extremos inertes. Renunciar é oportunidade para a reflexão solitária e desapaixonada. Podemos chamar de demissão temporária da luta. Não se amoldar nos liga às pessoas com quem queremos estar nos dias rebeldes.

Estudo (nanquim e aguada)

Evandro – Você já ensinou seu próprio olhar a refutar angústias e todos os seus apetrechos melancólicos?
Marcelo – Vejo a angústia pela gestalt, com sua forma e contra-forma. Se traçarmos um contorno da figura, por mais expressivos que sejam seus traços, deixaremos de fora sua sombra e sua influência nos vários planos. A angústia é transparente, uma sensação monocórdica de fundo. Se desenharmos a figura de fora para dentro, ressaltando outras dimensões, fazendo-a surgir da superfície com todas as suas zonas escuras e seus impactos, vamos decifrar o caráter do sentimento. A melancolia é modo de olhar temperamental, com seus dilemas recorrentes, indecisão persistente, fatalismo e enorme potencial de criação. Para acentuarmos a figura no espaço, definindo seus movimentos e sua vitalidade, urge completá-la com as suas mágicas cores próprias.

Evandro – Costumo esbarrar, distraído, tempo quase todo na precipitação. E você?
Marcelo – Quando nossa alma pesa mais que o ambiente que a contém, caímos vertiginosamente convertidos em constrangedora borra. Agitamos o líquido para dinamizar o conteúdo e aproveitar todo o potencial de que fomos dotados, criando um firmamento de partículas instáveis, porém bem definidas. O impulso se move na tangente, na diagonal, como raio, clama por visão compassiva.

Arábica (óleo sobre madeira)

Evandro – Você já aprendeu a farejar com antecedência uma rua sem saída?
Marcelo – Ao encontramos um caminho, olhamos em volta, imaginamos o cenário com olho de pássaro e percebemos o imenso cerco em que estamos metidos. Arrebanhados para produzir e servir, não temos ideia do que fazer fora do modelo. A decisão é não se dobrar, escapar pelas margens.

Evandro – E quando você pretende empreender tarefa de confeccionar caminhos, mas percebe que seus passos não se adaptam às probabilidades peregrinas?
Marcelo – As limitações têm o papel de regular nossos êxtases. Quando tomados pela ilusão, negamos a finitude, o transitório e supomos uma eternidade que foi extinta. Preferível trabalhar com o máximo de possibilidades que a conturbada vida prática nos libera.

Africana (óleo sobre tela)

Evandro – Você já inventou, para consumo próprio, símbolo gráfico indicativo para ajudá-lo a seguir os próprios instintos?
Marcelo – Projetamos uma imagem e julgamos poder controlá-la, hoje com poderosos dispositivos. Quando sentimos que a imagem se afasta da persona em transformação, quando mal nos reconhecem e mal nos reconhecemos, resta-nos abandonar os símbolos e sinais artificiais e retomar a própria natureza.

Evandro – E as certezas? Vida toda ultrapassamos, se tanto, o pórtico do talvez?
Marcelo – Não é de hoje, o reino do talvez é aqui e agora. As portas se entreabrem o suficiente para a vida penetrar. Quando muito dá para entrever o próximo passo pela fresta. Há pessoas cheias de certezas. Estão mesmo lúcidas? Com tanto talvez, será demais relativizar tudo. Podemos dar de cara com a porta escancarada e não conseguir ou nem ter permissão para passar. Como não estamos sós, pensar antes de bater, bater antes de entrar. Contudo, como disse Iberê Camargo, não pegar a vida com a ponta dos dedos.

Fragmentos

Vez em quando vê aparição simultânea de duas sombras na parede – nossa ontológica personagem desconfia que são espectros da ambivalência.

Jactâncias

Livros de minha autoria

1996Bombons Recheados de Cicuta (Paulicéia)
2000Grogotó! (Topbooks)
2002Araã! (Hedra)
2004Erefuê (Editora 34)
2005Zaratempô! (Editora 34)
2006Catrâmbias! (Editora 34)
2010Minha Mãe se Matou sem Dizer Adeus (Record)
2012O Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam (Record)
2014Os Piores Dias de Minha Vida Foram Todos (Record)
2016Não Tive Nenhum Prazer em Conhecê-los (Record)
2017Nunca Houve tanto Fim como Agora (Record)
2018Epigramas Recheados de Cicuta – com Juliano Garcia Pessanha ((Sesi Editora)
2019Moça Quase-viva Enrodilhada numa Amoreira Quase-morta (Editora Nós)
2019 – (Plaquetes) – Levaram Tudo dele, Inclusive Alguns Pressentimentos, Certos Seres Chuvosos não Facilitam a Própria Estiagem e Anatomia do Inimaginável.
2020Ontologias Mínimas (Editora Faria e Silva)
2021Rei Revés (Record)

Foto principal

As fotos que abrem este blog pertencem ao meu futuro livro, Ruínas. Passei um ano fotografando paredes carcomidas pelos becos, veredas, ruas do centro, e de alguns bairros paulistanos.

As imagens apresentam uma concretude pobre e miserável, de ruína mesmo, que na sua própria deterioração encontra rasgos inesperados de um refinado expressionismo abstrato – força das paredes arruinadas e das tintas expressivas do tempo. (Alcir Pécora)

Capa: Marcelo Girard

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