Dois mitos da escravatura

GERALDO BONADIO – A escravidão negra instalou-se em Portugal durante o ciclo das navegações que buscavam um caminho marítimo para as Índias, contornando o continente africano. Legalizou-a uma bula papal que concedeu aos reis portugueses o direito de escravizar os povos não cristãos que, no curso da empreitada, viessem a encontrar. Quando, com a viagem de Cabral, o Brasil foi incorporado ao conjunto das terras conhecidas pelos europeus, o processo de colonização, iniciado em 1532, trouxe, em seu DNA, o gene da escravidão que vigorará em seu território durante quatro séculos.

Suely Robles de Queiroz, que esmiuçou as tensões geradas pelo escravismo em São Paulo no século XIX, observa que, durante muito tempo, os historiadores endossaram dois mitos sobre a escravidão – as do senhor benevolente e do cativo fiel e submisso – por ela triturados em “Escravidão negra em São Paulo”.

Tais mitos se manifestaram intensamente na historiografia sobre o comércio de tropas xucras e o transporte de cargas em lombo de mulas cargueiras, apresentados como exemplos de atividades nas quais o convívio entre senhores e escravos teria diluído ódios e dado à nefanda instituição aspectos quase cordiais.

Vejamos dois fatos, relativos a tropeiros, demolidores daquela ilusão.

José Aleixo Irmão, no volume inicial da extensa história da Loja Maçônica Perseverança III conta que, em 1875, na movimentada rua das Flores – atual Monsenhor João Soares – o escravo Generoso matou, a tiro, o homem mais rico da cidade, o tenente coronel Fernando Lopes de Souza Freire, ligado ao comércio de muares. Generoso, anteriormente escravo de confiança de Souza Freire, após alvejá-lo, correu pela atual rua Dom Antonio Alvarenga, enfiou-se no brejo do Supiriri e nunca foi encontrado.

Outra vítima ilustre do ódio entre escravos e seus patrões tropeiros foi José Marcelino de Barros, negociante em Itu, comerciante de tropas e pai de um menino – Prudente – que, adiante, tornar-se-ia nosso primeiro presidente civil. Na antevéspera do Natal de 1843, ele foi morto, no bairro do Moinho, à margem do ribeirão Ipiranga, em São Paulo, por um de seus escravos, que, preso e julgado, tornou-se o último enforcado de São Paulo. A morte de José Marcelino originou a mudança da viúva e dos filhos de Itu para Piracicaba.

Na vida adulta, Prudente tornar-se-ia um dos líderes políticos da luta contra a escravidão.

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