Hoje, entrevista com Marina Colasanti

Farejando voluptuosidades

Evandro Affonso Ferreira

Hoje me deu vontade de ler mais uma vez texto que eu publiquei na minha plaquete, cujo título é Levaram tudo dele, inclusive alguns pressentimentos…

Pílula do dia

Perguntas insólitas

Estrela da vida inteira, de Manuel Bandeira

Entrevista: Marina Colasanti

Escritora, poeta, contista, jornalista, tradutora, artista plástica. Cidadã do mundo: nasceu em Asmara, Eritreia, morou em Trípoli, Líbia, depois Itália, finalmente Brasil. Escreveu muitos livros, ganhou muitos prêmios: Jabuti, Oceanos, Câmara Brasileira do Livro, APCA, Biblioteca Nacional, entre outros. Gente fina, agradabilíssima, fino trato. Talentosíssima.


Passagem livre


Evandro Affonso Ferreira – Procurar a verdade é querer estudar a anatomia do inimaginável, debulhar as cascas do incognoscível?
Marina Colasanti – Isso a gente faz quando escreve. Procurar a verdade é só procurar a verdade. Trabalho sem fim, que exige confrontar opiniões diferentes, requer leitura, atenção desmedida, e constantes questionamentos internos. Ora você tem certeza de saber onde ela está, ora você a perde de vista, ora a vê escondida com a pontinha do rabo pra fora, e quando pensa que a agarrou vê que na sua mão só ficou um pelinho de nada. Os que se acham donos da verdade não sabem que só estão com a guia, na ponta da guia a coleira está vazia.

Evandro – E quando você se sente refém das ciladas da afoiteza? Sim: quando percebe que está transgredindo os preceitos da precaução?
Marina – Nunca fui afoita. Quando me arrisquei, ou foi em obediência a um plano cuidadosamente traçado, ou me atirei à água sem colete salva-vidas atendendo a chamados de amor.

Evandro –É possível rastrear lampejos?
Marina – É a tarefa dos poetas.

Evandro – E quando seus passos não se adaptam jeito nenhum às probabilidades peregrinas?
Marina – Meus passos sempre se adaptam melhor às possibilidades peregrinas: nasci em um país africano, migrei para outro, fui transferida para a Itália, vim para o Brasil, pertenço a três continentes, tenho duas línguas mães, trabalho em vários gêneros literários e minha alegria é estar em aeroportos do mundo.

Evandro – Costumo dizer que sou muito afetivo, pegajoso, motivo pelo qual gostaria que Deus fosse palpável. E você?
Marina –Deus é palpável! A gente acaricia Deus quando mergulha as mãos na água, toca Deus quando pega um bebê no colo, penteia Deus quando deita na grama e passa os dedos no capim, ouve Deus no vento que chega, e vê Deus em cada amanhecer.

Evandro – Às vezes, nem sempre, estoico, consigo trocar a penúltima vogal pela primeira: ao invés de odiar, adiar. E você?
Marina – O ódio como fenômeno individual entrou em moda no último decênio, alimentado pelas redes sociais. Cavaleiros nas liças não se odiavam, se enfrentavam. Exércitos em luta não se odiava, guerreavam. Países em guerra não de odiavam, lutavam pela supremacia e quando a guerra acabasse assinavam tratados de paz. Agora o ódio virou um distintivo, um valor em si, quem mais alardeia seu ódio mais seguidores tem, quem mais odeia mais votos atrai. Eu, que não frequento as redes, confesso nunca ter odiado ninguém. Raiva tenho, até com bastante frequência. Mas ódio, ódio que dê para espezinhar o outro, aniquilá-lo, reduzi-lo a pó, esse nunca tive.

Evandro – Você já foi o etecetera da frase de alguém?
Marina – Oh, sim! Sendo mulher, o fui infinitas vezes.

Evandro – Existe nele, seu baú invisível, uma penca de irrealizações?
Marina – Felizmente, nenhuma. Tudo o que quis, realizei. Deve ser porque não desejo coisas maiores que a envergadura das minhas asas.

Evandro – E quando as mágoas se embrenham nas suas entranhas? Como se livrar dos urros do rancor?
Marina – Nunca ouvi urros de rancor vindos das minhas entranhas. Trago, porém, debaixo da pele, algumas tatuagens feitas pelas mágoas.

Evandro – Viver? É possível se preparar para esta emboscada?
Marina – Impossível!! Quando jovem, acreditei em cartomantes e interroguei o destino. Mas as cartas não iam longe, e havia sempre o inesperado me esperando atrás da esquina. Para o inesperado não há preparação.

Evandro – Agora, com o passar do tempo, tenho conseguido polir os avanços com o verniz do recuo. E você? Já se afeiçoou aos retrocederes?
Marina – Não tenho tido avanços. Só recuos. Mas não espontâneos, e sim impostos pela vida, que está em fase madrasta.

(Ilustrações e pinturas de Marina Colasanti)

Fragmentos

Desconfiam que ela, nossa ontológica personagem, não sairá ilesa dos esconjuros fulminantes da Ambiguidade – deusa implacável das duplas interpretações.

Motejos

Livros de minha autoria

1996Bombons Recheados de Cicuta (Paulicéia)
2000Grogotó! (Topbooks)
2002Araã! (Hedra)
2004Erefuê (Editora 34)
2005Zaratempô! (Editora 34)
2006Catrâmbias! (Editora 34)
2010Minha Mãe se Matou sem Dizer Adeus (Record)
2012O Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam (Record)
2014Os Piores Dias de Minha Vida Foram Todos (Record)
2016Não Tive Nenhum Prazer em Conhecê-los (Record)
2017Nunca Houve tanto Fim como Agora (Record)
2018Epigramas Recheados de Cicuta – com Juliano Garcia Pessanha ((Sesi Editora)
2019Moça Quase-viva Enrodilhada numa Amoreira Quase-morta (Editora Nós)
2019 – (Plaquetes) – Levaram Tudo dele, Inclusive Alguns Pressentimentos, Certos Seres Chuvosos não Facilitam a Própria Estiagem e Anatomia do Inimaginável.
2020Ontologias Mínimas (Editora Faria e Silva)
2021Rei Revés (Record)

Foto principal

As fotos que abrem este blog pertencem ao meu futuro livro, Ruínas. Passei um ano fotografando paredes carcomidas pelos becos, veredas, ruas do centro, e de alguns bairros paulistanos.

As imagens apresentam uma concretude pobre e miserável, de ruína mesmo, que na sua própria deterioração encontra rasgos inesperados de um refinado expressionismo abstrato – força das paredes arruinadas e das tintas expressivas do tempo. (Alcir Pécora)

Capa: Marcelo Girard

Um comentário em “Hoje, entrevista com Marina Colasanti

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  1. faz tempo que eu venho tentando comentar nesse blog, mas não conseguia por questões com email, agora resolvi! que entrevistas!!!! que material temos nesse Terceira Margem! que conteúdos maravilhosos! parabéns ao Zé Fineis que reuniu esse time!!!!

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