José Carlos Fineis
Ela gostava de ouvir as histórias que ele contava na cama, pela manhã. Ficavam sentados lado a lado, entregues a conversas sobre todos os assuntos, até que um dos dois vencesse a preguiça e se levantasse para coar o café.
Às vezes ele contava os sonhos que acabara de ter. Nem sempre conseguia perceber que tivera um pesadelo. Ela precisava acalmá-lo. Outras vezes, ele acordava com alguma ideia realmente fantástica, porém impossível de ser executada por alguém que não fosse o presidente dos Estados Unidos ou um multimilionário. Mas ela ouvia o plano com interesse. Deixava-o falar e tinha por norma ouvi-lo e levá-lo a sério, por mais esdrúxula que fosse a ideia. Sabia que, pelo menos enquanto ele falasse bobagens, delirasse ou viajasse nos sonhos, estaria conectado, motivado, atado à vida.
Certa feita, ele acordou e a puxou pelo braço:
“Ontem cantei no chuveiro, uma canção qualquer, ao acaso, e descobri uma coisa incrível. Só agora, depois de todos esses anos e embora soubesse que não sou propriamente desafinado, percebi uma verdade que esteve sempre comigo, óbvia, evidente, tão clara diante de mim – mas que nem eu nem você percebemos.”
Ela o encarou com admiração.
“Sério, querido? E o que é?”
“Minha voz é muito parecida… Na verdade, minha voz é idêntica à do Elvis Presley.”
“De fato, sou tão distraída…”– ela disfarçou. “Ando sempre tão ocupada. Acho que por isso nunca prestei atenção. Você poderia cantar alguma coisa pra mim?”
Ele se recostou na guarda da cama com as mãos entrelaçadas no peito:
“Não me sinto muito inspirado neste momento. Gosto de cantar quando estou fazendo alguma coisa. Parado assim é esquisito. Será que eu poderia cantar mais tarde, quando estiver lavando o quintal ou varrendo o jardim?”
Ela consentiu, sorridente.
“Claro. E agora, descanse mais um pouco. Vou fazer um café pra nós dois.”
Nos dias seguintes, ela se surpreendeu com a persistência da ideia. Sim, pois desde que aquilo começara a se manifestar, ele costumava esquecer o que dizia em poucos minutos. As ideias o enchiam de entusiasmo e ele falava, falava… Mas, tão logo terminava de expor exaustivamente seus pensamentos, eles se evaporavam em seu cérebro como que por mágica.
Com o tempo, ela compreendera que aqueles arroubos de raciocínio inquieto nada mais eram que exacerbações momentâneas dessa circunstância maior e irreversível a que os médicos chamam demência.
Daquela vez foi diferente. Depois da conversa sobre Elvis, a monotonia das tardes e manhãs passou a ser interrompida pela voz de um já alquebrado senhor, sempre engalanada por uma certa impostação e que, embora tênue e, como se diz popularmente, “pequena”, fazia mesmo lembrar, ainda que vagamente, o jeito de cantar do rei do rock.
Naquela tarde mesma, enquanto varria as folhas do jardim e as recolhia em uma sacola de supermercado, ao perceber que ela o observava por trás da janela semiaberta e das agulhas de tricô, passou a cantar, com uma ternura que ela não conhecia:
“Love me tender, love me sweet
Never let me go
You have made my life complete
And I love you so”
Assim, da noite para o dia, Elvis Presley passou a viver na velha casa de cômodos assoalhados, como um hóspede invisível, mas sempre presente.
Para o bem e para o mal, a voz de seu Pedro – era esse seu nome –, assim como a música do caminhão do gás e os alto-falantes dos vendedores motorizados de ovos, detergentes e sorvetes, tornou-se um dos sons familiares daquele bairro tranquilo, de casas amplas, velhas e quase desabitadas.
Cantava do começo ao fim, sem esquecer um só verso, It’s Now or Never e Bridge Over Troubled Water, mas sua preferida era Always on my Mind.
Era no repertório romântico de Elvis que aquela alma de funileiro aposentado se encontrava. E dona Dulce – esse o nome dela – deixava-se suavemente acostumar com aquela voz, a ponto de se afeiçoar àqueles momentos e de esperar, com uma expectativa boa que lhe alterava ligeiramente os batimentos cardíacos, o momento em que o marido, soltando a voz, com uma emoção apenas esporádica em mais de quarenta anos de casamento e funilaria, entoava:
“Maybe I didn’t treat you
quite as good as I should have”
Numa dessas tardes, pela hora do café, dona Valentina, que morava quase em frente, bateu palmas no portão. Fora encarregada de convidar o “vovô Elvis” — como ele ficara conhecido no bairro, à revelia — para cantar numa festa de caridade no salão da igreja.
Ele tentou se esquivar, mas as duas insistiram. “Vai, Pedro. O que custa?”, dizia a companheira, apelando: “É por uma causa nobre.” Ao que a outra reforçava: “É sem compromisso, seu Pedro. Duas ou três músicas só. O grupo do seu Nenê acompanha o senhor. Eles são do choro, mas dizem que tocam qualquer coisa. E o senhor canta tão gostoso…”
Não se sabe por quais motivos, seu Pedro aquiesceu. Talvez ele tivesse, mais do que a pretensa voz, um pouquinho da vaidade de Elvis. A partir daí, tudo se precipitou: na quinta-feira houve um ensaio. Nenê e seus chorões eram bons e traquejados: só precisaram pegar o tom de seu Pedro para acompanhá-lo lindamente. No domingo, por volta das 10h30, finalmente o aposentado pisou no palco do salão, com roupas comuns (ele recusou a jaqueta de gola alta que tentaram lhe empurrar) e uma coragem que dona Dulce desconhecia no marido.
Cantou Love me Tender e foi ovacionado. Logo nos primeiros acordes, as mães fizeram as crianças pararem de correr. Vovô Elvis, como foi apresentado, surpreendeu Nenê e os chorões ao iniciar Bridge Over Troubled Waters à capela, incrivelmente dentro do tom, de forma que o cavaco, o bandolim, o acordeão e o clarinete foram entrando depois, dando ao arranjo um toque mágico e etéreo que encantou a plateia.
Por fim, seu Pedro tirou o microfone do pedestal e, já mais à vontade, dedicou à eterna companheira a última canção. Sim, ela, a sua preferida: Always on My Mind.
Depois de uma interpretação emocionante, em que lágrimas correram pelos rostos de mulheres e homens indistintamente, seu Pedro curvou-se ao velho estilo para agradecer as palmas numerosas, gritos e assovios; recolocou o microfone no pedestal e fez um gesto que lhe pareceu adequado ao momento, levando o punho cerrado ao peito e curvando-se ainda outra vez.
Curiosamente, depois do sucesso no salão da igreja, a voz do idoso emudeceu. Ele voltou a sua rotina de afazeres domésticos, porém não cantava, nem sequer cantarolava, e passou a dormir até tarde – as conversas na cama se tornaram raras, curtas, quase que restritas ao essencial.
Dona Dulce sentia falta da música. Estranhava todo aquele silêncio – um silêncio diferente, desconhecido para ela até então. Ausência de um som em particular. Silêncio que se podia sentir mesmo nos momentos mais barulhentos, quando o caminhão do gás e as crianças da escola e o vendedor de ovos cruzavam a rua ao mesmo tempo.
Numa daquelas manhãs, ela lhe serviu uma xícara de café e perguntou, com delicadeza:
“E aí? Não canta mais? Aconteceu alguma coisa? Sinto falta daquelas canções, Pedro.”
Ele a ouviu olhando para o café. Sorveu um gole grande, em silêncio. Depois, com os olhos fixos na xícara, contou:
“Eu escutei por acaso uma gravação daquele show na igreja. O menino filho de dona Valentina mostrou pra mim no celular. Você devia ter me avisado, Dulce. Me senti arrasado ao ouvir aquilo. Minha voz não tem nada a ver com a do Elvis.”
A revelação surpreendeu dona Dulce. Jamais ela poderia imaginar uma reação negativa como aquela, depois de tamanho sucesso.
“Ouça, querido” — ela tinha vontade de abraçá-lo como a uma criança. — “Sua voz pode não ser igual à do Elvis, mas não é menos bonita. Você canta tão bem! Pode não ter aquela potência de voz. Mas é afinado e eu prefiro sua forma de cantar. Por favor, cante pra mim. Cante suave, do seu jeito. Eu me acostumei com a sua voz.”
Ele prometeu que repensaria o assunto, mas estava preocupado com outros temas agora. Voltou a ter ideias fantásticas sobre como resolver problemas mais ou menos prementes da humanidade, como o acúmulo de plástico nos oceanos, o derretimento das geleiras e o desaparecimento dos pardais das zonas urbanas, expulsos por bandos barulhentos de maritacas.
Por consideração à mulher, entretanto, voltou a cantar, pois notara que Dulce andava mesmo muito triste. Não lhe agradava cantar sem vontade, ainda mais com uma voz que nem de longe lembrava a de Elvis. Cantava por consideração à mulher, porque gostava dela e ela havia pedido. Toda tarde, quando varria o jardim e percebia que ela estava na sala, dava um jeito de cantarolar uma daquelas canções, ainda que sem a emoção e o prazer de antes.
Isso foi no começo do ano.
Em março, ele foi internado.
No final de abril, uma foto do “vovô Elvis”, com o tradicional lacinho preto de luto, percorreu as redes sociais com palavras bonitas escritas por alguém.
A casa e dona Dulce, o jardim, o bairro, a cidade e o Universo submergiram num silêncio irremediável.
No aniversário dela, um sobrinho sem noção trouxe de presente um aparelho de som, que continua ali, no mesmo canto em que foi deixado. Os CDs de Elvis trazidos com o aparelho permaneceram em suas embalagens plásticas.
Dona Dulce busca nos recantos da memória as lembranças da voz do companheiro ausente. Passa as manhãs – e, por vezes, as tardes e as noites – sentada na cama, sem ânimo para levantar-se e fazer um café.
Ninguém nunca perguntou o porquê de o aparelho de som continuar na caixa. Todos sabem que nem Elvis Presley em pessoa seria capaz de trazer a alegria de volta àquele lugar. Nem Elvis, nem ninguém.
Nunca é a mesma coisa.
Imagem de Sabine van Erp por Pixabay
Maravilha de conto!!!
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Texto leve, conto ótimo de ler. Sou fã do amigo Fineis.
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Muito obrigado, amigos Paulo e Pedro.
A avaliação de vocês é muito importante para mim.
Obrigado pela leitura e gentileza. E vamos nos cuidar!
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