FREDERICO MORIARTY
A ditadura acabara no ano anterior e eu, jovem caipira, migrara pra São Paulo fazer Direito na PUC. O clima ainda era tenso. Não se tinha certeza se a democracia permaneceria. 1984 foi o ano das Diretas Já! Depois de muitos anos, as multidões voltaram às ruas. Os comícios em março e abril daquele ano juntavam milhares de brasileiros lutando por eleições para presidente. O último comício na Candelária no Rio teve 650 mil pessoas. Mesmo assim, nada feito. Um congresso com predomínio da Arena( agora PDS) pois fim ao sonho. Mas velhos políticos matreiros reagiram. Tancredo se junta a Sarney e ACM. Nasce uma aliança entre o PMDB e o rescaldo da ditadura, o PFL. Em novembro o colégio eleitoral dá a Vitória ao seu Tancredo contra o filhote da ditadura Paulo Maluf. Tudo ainda era incerto, ainda mais porque Tancredo nunca assumiu, falecendo em 21 de abril de 1985. ” Foi a ditadura que o matou”, ” Armaram tudo para o Sarney assumir”. Ouvíamos conversas assim. Os milicos ainda se sentiam donos das ruas, as revistas de mulher pelada ainda vinham plastificadas e com um papel cobrindo a capa e a censura ainda era grande.

Eis que o famoso diretor francês Jean Luc Godard lança uma polêmica versão do nascimento de Cristo.Maria era uma jogadora de basquete na França em 1984 e dona de um posto de gasolina, José um taxista ( hoje estaria em crise com o Uber). Maria (Myrien Roussel) anuncia a gravidez e José ( Thierry Rode) começa a brigar feio: havia sido traído. Surge a intercessão do anjo Gabriel pra convencer o pai de Jesus. A Igreja Católica revirou nas alcovas, a TFP quis tacar fogo e Erasmo Dias ( o deputado militar e algoz da democracia) estava ativo ainda. Sarney saca a Lei de Segurança Nacional e o filme foi proibido. Je Vous Salue Marie, de Godard, não podia ser exibido em 27 países e o Brasil agora estava na lista.

Jean Luc Godard é um diretor franco-suíco e considerado um dos 10 maiores cineastas da história. Junto com Alan Resnais e François Truffaut criou uma vanguarda cinematográfica com críticas severas ao cinema comercial francês dos anos 60. A Nouvelle Vague acreditava entre outras coisas que toda história deve ter começo, meio e fim. Não necessariamente nesse ordem. Marxista e existencialista, Godard é uma exceção na indústria. Assistir filmes como Acossado, com seu heroi solitário, meio bandido, meio apaixonante, ou a ficção Alphaville são exercícios obrigatórios. Ser intelectual dá trabalho. Godard, James Joyce, Miles Davis, Tarkoviski e mais uma coletânea de artistas Cult tem de ser vistos, lidos, discutidos e citados. Gostar de pagode não funciona bem. Ler Sidney Sheldon é para os incautos. Assistir sessão da Tarde, coisa de crianças. Je Vous Salue Marie era uma ” peça de resistência ” e um dever cívico.

O Centro Acadêmico de Direito da PUC-SP em 1986, formado por esquerdistas e defensores do regime cubano, resolveu fazer uma sessão desafio. Nas escadarias que ligam o prédio velho ao anexo ( hoje velho também), cerca de 70 alunos se preparavam para ver o filme. Ao centro, uma TV de 20 polegadas, abaixo desta um saudoso videocassete ( sem a função rebobinar automática), na tela uma cópia pirata, descolada não se sabe como, numa ação que beirava a guerrilha. Momentos tensos. O C.A. avisou a Folha de São Paulo da sessão clandestina. Começou Je Vous Salue Marie. Atmosfera quente, nervos em frangalhos, qualquer barulhinho esquisito gritava-se “políça”. E lá pelos 15 minutos de filme ela apareceu mesmo. Uns vinte PMs de cacetete e metralhadora na mão e foi correria pra todo lado. Eu, num ato revolucionário, quedei-me intacto sobre as escadarias. Fiz-me pedra bruta. A fita foi retirada do videocassete, passou de mãos em mãos, os PMs corriam feito doidos com os cassetetes em punho, tentando agarrar a sagrada fita. Nada. Eis parou em minhas mãos. Agarrei a bicha, fiz cara de Exterminador do futuro e quando fui discursar dois guardas voaram em minha direção. Fui salvo pela resistência:um rapaz do C.A. tomou-me a fita, desafiou as autoridades e levou duas chineladas na cara. O filme estava em mãos inimigas. Os homens da segurança foram vaiados, ouviram “abaixo a ditadura”.Chuva de cuspe nos capacetes. Os homens da lei desceram a rua Monte Alegre. Um grupo de 300 alunos desceu os 4 quarteirões juntos até a delegacia, cantando pela Liberdadede Expressão e “abaixo a ditadura!”. Godard dormiu na mesa do delegado. O país ainda brincava de ser livre.

Anos depois, o filme foi lançado livremente. Fui até a locadora (local onde se alugavam filmes antigamente e, caso não se rebobinasse a fita, pagava-se uma multa) e retirei o filme Je Vous Salue Marie .Em casa, sentei-me à sala, apaguei todas as luzes, estourei uma panela de pipoca ( não havia essas insossas pipocas de micro-ondas) e liguei a tv e o videocassete. Fui até a sacada, olhei para todas as direções, poderia haver alguma represália, algum policial desorientado. A democracia ainda era um risco. Tudo calmo. Comecei a assistir ao filme. Passado um tempo, algo começou a me incomodar, fui à cozinha e enchi dois copões de Cócão, voltei e passei pela sacada, refleti muito com as estrelas e voltei à TV. Coloquei num jogo de futebol da segunda divisão mineira. Nunca terminei Je vous salue Marie.Era chato pra danar.
Eu tbm estava lá, trabalhava na secretaria de humanas e fazia filosofia lá, aquele dia foi louco kkkk.
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Bons tempos da PUC, Carlos. Hj…
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