Hoje, entrevista com Mary Del Priore

Luxúria do predomínio

Evandro Affonso Ferreira

Hoje vou ler mais um texto publicado numa plaquete cujo título é Levaram tudo dele, inclusive alguns pressentimentos…

Pílula do dia

Perguntas insólitas

A consciência de zeno, de Italo Sveno

Entrevista: Mary Del Priore

Concluiu doutorado de História Social na Universidade de São Paulo e pós-doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, na França. Lecionou História em várias universidades brasileiras. Escreveu dezenas de livros, ganhou muitos prêmios – entre eles: Prêmio Jabuti, Prêmio Casa Grande & Senzala, pela Fundação Joaquim Nabuco, Prêmio Fundação Biblioteca Nacional, Prêmio do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Governo da França e da Organização dos Estados Americanos.


A historiadora e a Identidade


Evandro Affonso Ferreira – Afinal, procurar Deus é querer apalpar plenitudes?
Mary Del Priore – Deus é uma boa ideia por três motivos. Primeiro: se Ele existisse, tudo estaria demonstrado e não seríamos mais convidados a acreditar em Deus. Ele seria objeto de um saber e não, de uma crença. Segundo: porque Deus não existe, mas sentimos necessidade de acreditar, buscamos Nele uma proteção ou uma consolação. Crer traz benefícios. Terceiro: se não sabemos se Deus existe, acreditar é embarcar na incerteza e tomar a decisão de crer como se faz uma aposta. Aposta essencialmente absurda que nos eleva à plenitude da liberdade.

Evandro – Agora, com o passar do tempo, tenho conseguido polir os avanços com o verniz da parcimônia. E você? Já se afeiçoou aos recuos? É condescendente com os retrocederes?
Mary – Se somos seres de passagem, de rupturas e transformação, o melhor a fazer é escutar a desordem do mundo, guardar intacta a liberdade, desenrolar os fios do real e da imaginação, e sobretudo, não se levar a sério.

Evandro – E as certezas? Vida toda ultrapassamos, se tanto, o pórtico do talvez?
Mary – Somos narrativas feitas de avanços e recuos que contamos de nós mesmos. Somos mistério, ou seja, aquilo que não se desvenda, e enigma, o mistério traduzido pela razão. Nossa identidade está sempre em construção, o que nos convida a viver muitas vidas e a se ver como o Outro.

Evandro – Você já ensinou seu próprio olhar a refutar angústias e todos os seus apetrechos melancólicos?
Mary – A dor é incontornável, mas o sofrimento opcional. De nada serve querer abolir a angústia, o medo, a cólera e as paixões negativas. Prefiro aceitá-las para domá-las e depois, seguir em frente.

Evandro – Costumo esbarrar, distraído, tempo quase todo na precipitação. E você?
Mary – Farei o elogio da lentidão. Desprezo a agitação e a deambulação histérica. Detesto a obrigação de rapidez e eficácia. Quanto mais achamos que ganhamos tempo, mais ele nos escapa. Gosto de cultivar flores, de vê-las desabrochar. São formas de se sentir existir. Alguém já disse que para cultivar um jardim é preciso um pedaço de terra e a eternidade.

Evandro – Você já foi o etecetera da frase de alguém?
Mary – Lógico. Para quem gosta de moralizar a linguagem, enterrar direitos, tem paixão de proibir discursos e livros, enfim, para os fascistas identitários, sou uma sopa de letrinhas.

Evandro – E quando você pretende empreender tarefa de confeccionar caminhos, mas percebe que seus passos não se adaptam às probabilidades peregrinas?
Mary – Tento enxergar dificuldades e perdas, sem desejar ser invulnerável. Afinal, caminhar é um jogo entre o desejo e a saciedade, a indeterminação e a definição. Conhecer as próprias limitações ajuda a chutar pedras e tomar atalhos.

Evandro – Você já inventou, para consumo próprio, símbolo gráfico indicativo para ajudá-la a seguir os próprios instintos?
Mary – Sim, a “Carte du Tendre”, criada no século XVII por Madeleine de Scudéry. Trata-se uma invenção topográfica e alegórica do país da Ternura com uma curiosa e divertida geografia amorosa: o rio da Inclinação corre suavemente, enquanto o mar é perigoso pois representa as paixões. O lago da Indiferença representa o tédio e por aí vai.

Evandro – E a solidão? É aquele invisível, ali, carente de apalpamentos?
Mary – Se retomarmos as sutilezas do inglês, existem nuances entre “alone”, a solidão escolhida, e “lonely”, a solidão imposta. A segunda é uma ferida. A primeira, embala e consola. Ela pode ser uma companheira muito criativa. Escolho a minha todos os dias e conheço vários escritores fortes e orgulhosos das suas. Ela é a condição banal e elementar da escrita. Vejo na solidão algo de confiável, quente e cotidiano que recheio com palavras e imaginação.

Evandro – É possível rastrear lampejos?
Mary – Eu os encontro na emoção da mais simples realidade; nos lugares comuns; nos fatos que se repetem e têm seu sentido; nas delícias do instante. Na circulação dos desejos. Por isso mesmo conto a história da vida privada e do cotidiano, onde tudo isso sobeja.

Evandro – E a verdade? Procurá-la seria tentar praticar acrobacias com poção de éter que sempre foge ao controle da tampa do frasco?
Mary – Como historiadora, sei que ela é uma construção coletiva, uma ficção consensual. Pessoalmente, fiz meu luto da verdade há tempos. Tampouco acredito num mágico que venha solucionar nossa existência. Tenho consciência do seu caráter absurdo. Sei que o mundo não está aí só para nos dar prazer e que vamos todos morrer. Uma vez que aceite esse fato, posso escolher: ou me acomodo à ausência total de sentido da existência, ou lhe dou um. Fico com a segunda opção que é a minha marca de estar-no-mundo.

Fragmentos

Palavras de nossa ontológica personagem chegam já obsoletas: todas elas de origem esferográfica.

Motejos

Livros de minha autoria

1996Bombons Recheados de Cicuta (Paulicéia)
2000Grogotó! (Topbooks)
2002Araã! (Hedra)
2004Erefuê (Editora 34)
2005Zaratempô! (Editora 34)
2006Catrâmbias! (Editora 34)
2010Minha Mãe se Matou sem Dizer Adeus (Record)
2012O Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam (Record)
2014Os Piores Dias de Minha Vida Foram Todos (Record)
2016Não Tive Nenhum Prazer em Conhecê-los (Record)
2017Nunca Houve tanto Fim como Agora (Record)
2018Epigramas Recheados de Cicuta – com Juliano Garcia Pessanha ((Sesi Editora)
2019Moça Quase-viva Enrodilhada numa Amoreira Quase-morta (Editora Nós)
2019 – (Plaquetes) – Levaram Tudo dele, Inclusive Alguns Pressentimentos, Certos Seres Chuvosos não Facilitam a Própria Estiagem e Anatomia do Inimaginável.
2020Ontologias Mínimas (Editora Faria e Silva)
2021Rei Revés (Record)

Foto principal

As fotos que abrem este blog pertencem ao meu futuro livro, Ruínas. Passei um ano fotografando paredes carcomidas pelos becos, veredas, ruas do centro, e de alguns bairros paulistanos.

As imagens apresentam uma concretude pobre e miserável, de ruína mesmo, que na sua própria deterioração encontra rasgos inesperados de um refinado expressionismo abstrato – força das paredes arruinadas e das tintas expressivas do tempo. (Alcir Pécora)

Capa: Marcelo Girard

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