Observatório Plural
NILSON RIBEIRO – Recentemente fiz uma postagem na rede social mostrando um pão com manteiga e uma xícara de café com leite, desejando bom dia a todos. Uma amiga muito sinceramente me recomendou menos pão, menos manteiga e até menos café (e açúcar) no desjejum. Disse-me ela que o ideal era substituir tudo por uma fruta, um queijo branco magro e um ovo cozido.
Agradeci a preocupação da amiga com minha saúde quase sexagenária. E evitei demais comentários. Contudo, o que minha querida amiga não sabe é que meu café da manhã com pão e manteiga não é somente um café da manhã com pão e manteiga…
Toda vez que espalho calmamente sobre o pão ainda quente uma generosa pincelada de manteiga Aviação, muitas coisas acontecem diante daquele café com leite adoçado com açúcar União. Imediatamente esse conjunto de odores e sabores me leva para a Vila Santana em Sorocaba, mais precisamente para a rua Gerônimo Rosa, onde, numa vilinha, eu morava na casa simples de número 8.
O apito da Sorocabana me derruba da cama em meio ao meu sono de criança cheia de preguiça de deixar as cobertas para enfrentar mais um dia de escola. Minha mãe carinhosamente me beijando os cabelos e me sussurando ao ouvido: “Bom dia, meu pequeno”.
Já na mesa, ao lado de meu pai com a xícara fumegante de café preto numa mão e um naco de pão com manteiga (Aviação) no outro, meu irmão menor e minha mãe, que, como eu, sempre preferiu o café com leite, tudo era silêncio. Pelo menos até o segundo apito da Sorocabana, informando seus operários que faltava meia hora para a entrada.
Papai se levantava, sempre muito impecável com uma camisa branca de mangas curtas, que realçavam os músculos dos bíceps (não graças a algum tipo de “malhação”, mas pelo esforço ao carregar trilhos de um lado para o outro nos galpões onde trabalhava), calças de tergal e um sapato recentemente reformado com “meia-sola”, enquanto mamãe me preparava a lancheira com café com leite (que eu tomaria gelado duas horas depois no recreio) e mais um pão com manteiga. Por vezes – mas muito raramente – um pão com mortadela, que era uma festa para os meus sentidos, a ponto de eu quase não me aguentar para esperarar a hora do lanche.
Lá íamos eu e papai em direção ao Matheus Mailasky, escola em que estudavam os filhos dos ferroviários que, como ele, trabalhavam na Estrada de Ferro Sorocabana. Papai era torneiro mecânico, e essa expressão, “torneiro mecâcnico”, me transbordava o coração de orgulho.
Em frente à escola, papai me segurava o queixo com firmeza, tirava o pente marrom do bolso da calça e me ajeitava o cabelo, antes de me dar um tapinha na cabeça: “boa aula”. Eu entrava no portão mas logo me voltava para ver aquele super-homem seguir seu caminho, penteando o próprio cabelo com indisfarçável vaidade.
Acho que a Sorocabana não apita mais. Acho que depois que virou Fepasa foi aos poucos se acabando. Não sei se a escola Matheus Mailasky ainda sobrevive. Papai nos deixou há aguns anos. Eu? Eu cresci, me casei, me descasei, me casei novamente, tive filhos que amo, enquanto o tempo devorava meus passos pelas calçadas da cidade onde nasci, minhas brincadeiras, o silêncio em volta da mesa, a mesa, o apito, meu sono preguiçoso.
Mas me restaram o pão com manteiga e o café com leite. Quando esses odores e sabores me invadem, sempre me trazem na fumaça todos esses bons ingredientes. Nenhuma fruta, queijo magro ou ovo têm esses sabores.
Assim, sinceramente agradecido à minha amiga, sigo degustando minhas melhores lembranças. Com alguma gordura hidrogenada, glúten e certamente um pouco de colesterol. Que não me matam mais que minha saudade.
Nilson Ribeiro é Psicanalista
nilribeiro63@hotmail.com
Arrasou!
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Muito bom! Proustiano!
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