A liberdade e suas angústias: o existencialismo de Sartre

Marcello Fontes

O que exatamente nos torna quem nós somos? Existiria algo que de algum modo nos determinaria a ser o que somos? As escolhas que fazemos são nossas mesmo e fruto de nossa intrínseca liberdade ou parte de um plano previamente definido por alguma instância alheia a nós mesmos? O existencialismo, corrente filosófica que surge principalmente com os filósofos alemães Martin Heidegger (1889 – 1976), embora ele sempre tenha renegado a expressão, e Karl Jaspers (1883 – 1969), trata destas questões e muitas outras a elas relacionadas.

O existencialismo tem em Jean-Paul Sartre, sem sombra de dúvida, sua maior expressão, e ainda que isso agrida a mentes puristas e academicistas, por que não dizer popularidade, com seu desenvolvimento peculiar a partir da fenomenologia do filósofo alemão Edmund Husserl (1859 – 1938) e do existencialismo primitivo do filósofo, teólogo e escritor dinamarquês Søren Kierkegaard (1813 – 1855).

Poucos filósofos gozaram ainda vivos do status que Jean-Paul Sartre alcançou como celebridade em nível mundial. E a filosofia que desenvolveu, sua interpretação do existencialismo, também conheceu poucas outras que ganharam não apenas influência em áreas diversas, mas uma certa notoriedade global em tempos pré-globalizados. Certamente isso está relacionado à qualidade e relevância da produção sartreana, mas também aos diversos formatos que ele utilizou para difundir suas ideias filosóficas: textos acadêmicos densos, ensaios, romances, peças teatrais, textos jornalísticos, entrevistas, biografias.

Nascido em Paris em 1905, Sartre sempre esteve envolto pelas palavras e inclinado a existir e criar a partir delas. Ele desejava ser escritor, e alcançou seu desejo de diversas maneiras. Em seu romance autobiográfico de 1964, denominado As palavras (Le mots), afirma que “[…] por ter descoberto o mundo através da linguagem, tomei durante muito tempo a linguagem pelo mundo. Existir era possuir uma marca registrada, alguma porta nas tábuas infinitas  do Verbo; escrever era gravar nela seres novos – foi a minha mais tenaz ilusão – , colher as coisas vivas nas armadilhas das frases […]”

Sartre de fato inicia sua carreira como escritor, incentivado por seu avô materno, Charles Schweitzer (por meio de quem Sartre tem parentesco com o famoso médico e missionário Albert Schweitzer) que na verdade o incentivava a ser professor e escritor como uma segunda atividade. Sartre acaba por enveredar-se para a Filosofia, ingressando em 1924 na École Normale Superieure onde estuda na mesma turma de Raymond Aron, Paul Nizan e Daniel Agache. Sartre nunca obteve grande sucesso na vida acadêmica: em 1928, é reprovado na sua primeira tentativa de ingressar no mestrado, conseguindo seu ingresso no ano seguinte. Tornou-se professor de um Liceu (o equivalente ao Ensino Médio) na cidade portuária de Havres e depois em Laon e Paris até 1946, quando abandona definitivamente a carreira do magistério.

Em 1929, Sartre conheceu aquela que seria sua companheira intelectual e amante até o fim de sua vida: Simone de Beauvoir (1908 – 1986). Ela, que foi uma importante filósofa existencialista e feminista, colaborou com Sartre e teve também uma importante e significativa carreira como escritora. Eles jamais se casaram e mantinham um relacionamento aberto, inclusive fazendo confidências um ao outro de seus relacionamentos com outras pessoas em cartas.

Sartre foi responsável por uma vasta e diversificada obra, como já dito. Como romancista, os destaques são A náusea (1937), O muro (1939), A Idade da razão (1945), Sursis (1947), As palavras (1964). Teve também significativos trabalhos no teatro, com destaque para as peças Entre quatro paredes (1945, peça inclusive encenada em Sorocaba em 1977, como bem lembrou o colega blogueiro José Carlos Fineis, do blog conversa de armazém), A prostituta respeitosa (1946), Orfeu negro (1948), O diabo e o bom deus (1951). Na Filosofia, sua obra magna permanece O Ser e o Nada (1943), tratado no qual expõe uma ontologia (estudo sobre o ser) que contempla a visão existencialista; além dela, Crítica da razão dialética (1960), na qual procura conciliar os pressupostos do existencialismo com os valores humanistas do marxismo, inaugurando uma fase ainda mais engajada de sua já politicamente empenhada carreira intelectual.

É importante ressaltar que nas obras literárias e teatrais o grande objetivo de Sartre era, acima de tudo, difundir as teses existencialistas, tanto quanto ou mais, dependendo do alcance, do que nos tratados filosóficos e palestras acadêmicas. Seus romances e peças teatrais eram fortemente comprometidos com suas ideias e pode-se considerar, sem sombra de dúvida, que foram os grandes responsáveis pela projeção mundial do existencialismo e mesmo pelo interesse em suas demais obras filosóficas: 15 anos após sua publicação, com mais de 55 edições, O ser e o nada já era a obra mais lida da História da Filosofia.

Sartre viajou por diversas partes do mundo, sempre recebido como uma celebridade, o que é no mínimo curioso em se tratando de um filósofo. Agia como uma espécie de “missionário do existencialismo”. Esteve no Brasil por dois meses e meio, em 1960, após insistentes convites de Jorge Amado, passando por mais de dez cidades, dando palestras e concedendo dezenas de entrevistas.

Tudo isso teve um reconhecimento inclusive no meio acadêmico: em 1964, é agraciado pela Academia Sueca com o Prêmio Nobel de Literatura. Sartre recusa o prêmio, por acreditar que “nenhum escritor pode ser transformado em instituição”, alegando que “um escritor que adota posições políticas, sociais e literárias deve se basear em seus próprios meios apenas, ou seja, a palavra escrita” e que “os prêmios expõem os leitores a uma pressão indesejável”. Antes do Nobel, ele também havia recusado a Legião de Honra, importante condecoração do governo francês, e tampouco quis entrar para o prestigioso Collège de France. São alguns exemplos da coerência de um personagem que nunca se esquivou em tomar posição e em fazer escolhas, ainda que difíceis. Como veremos, isso está no cerne de suas ideias, que exporemos principalmente a partir de O ser e o nada e de uma famosa transcrição de palestra no Club Maintenant em Paris, em 29 de Outubro de 1945, denominada O existencialismo é um humanismo.

Em linhas muito gerais, pode-se começar a entender o que é o existencialismo partindo de seu oposto, que pode ser denominado essencialismo. Para esta corrente filosófica, que remonta a Platão e perpassa a maior parte da História da Filosofia até o século 19 com muito poucas exceções, há uma essência que nos precede, podendo ela ser denominada de alma, substância ou espírito. Essa essência será a responsável por aquilo que de fato iremos nos tornar. Esse determinismo marca esta concepção, segundo a qual aquilo que somos e seremos já está de certo modo predestinado, justamente por sermos possuidores desta essência que nos anterioriza e que constitui aquilo que realmente somos. Obviamente, as posições filosóficas teístas, principalmente cristãs, assumirão a origem divina dessa essência.

“A existência precede a essência”

Jean-Paul Sartre

Já o existencialismo, partindo da premissa citada acima, dirá exatamente o contrário: não existe absolutamente nada que nos determine, nada que antes de nós de alguma forma oriente e conduza nossa existência. Primeiro existimos e existindo, fazemos escolhas que, estas sim, determinarão nossa essência, ou seja, aquilo que iremos nos tornar. A essência será, portanto, uma construção de cada indivíduo, que parte de sua própria e peculiar existência, em nada determinada além de por suas próprias escolhas que, defende Sartre, em última análise sempre existirão e serão livres, a despeito de às vezes não parecerem assim. Sartre dava como exemplo o fato de que determinados objetos já surgem com uma função definida e ela será cumprida: uma tesoura, por exemplo, tem um projeto prévio e ao surgir no mundo, sabe-se o que fará: cortar. Já o homem, para Sartre, jamais será assim.

Somos, portanto, aquilo que nós mesmos fizermos de nós. Construímos nossa essência em meio à nossa existência, somos seres “em projeto” e este projeto e projeção que fazemos de nós mesmos constitui nossa individualidade e é de nossa total responsabilidade. Somos os responsáveis exclusivos por aquilo que nos tornamos. Para Sartre, toda e qualquer desculpa ou atribuição a outrem de responsabilidade por nossas ações e aquilo que somos é, em última análise, má-fé. Uma afirmação muito forte e definitiva que Sartre faz nesse sentido é que “estamos sós e sem desculpas no mundo”. Obviamente, a consequência lógica deste existencialismo de Sartre é o ateísmo. Sobre isso, Sartre dirá: “Dostoiévski escreveu: ‘Se Deus não existisse, tudo seria permitido’. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue”. Segundo Sartre, nada em absoluto poderá servir de apoio externo para a construção de si mesmo que o Ser deverá realizar. Este abandono, angústia e desespero daí provenientes não são ruins ou negativos, nem bons ou positivos, mas constituem o que é inerentemente humano. Querer fugir disso é autoenganar-se.

Um desenvolvimento muito importante da questão da responsabilidade humana que não deve ser visto como mero detalhe, mas antes central para o existencialismo, segundo Sartre, é que esta responsabilidade e escolha que fazemos não diz respeito apenas a nós mesmos, mas a todos os homens. E isso porque quando escolhemos algo, estamos afirmando a todos o valor deste algo escolhido, ou seja, dizendo que isso que escolhemos viver e ser é o melhor que se pode fazer. Nunca escolhemos o mal, mas apenas aquilo que aos nossos olhos é o bem. Tenho assim, então, uma responsabilidade para com toda a humanidade que atravessa minhas escolhas, à medida que elas apontarão para uma imagem de homem com a qual concordo e desejo partilhar. Sartre afirma que “escolhendo-me, escolho o homem”.

Todas estas implicações inescapáveis irão, segundo Sartre, conduzir-nos inevitavelmente à angustia. Sartre não nega que retira essa expressão de Kierkegaard, que foi quem mais a utilizou para estruturar sua Filosofia, se bem que tem uma preferência maior pelo termo desespero. A angústia reside justamente no fato de que, como seres inseridos em um mundo múltiplo de possibilidades, as escolhas que nos envolvem são virtualmente infinitas. Uma vez que escolhemos algo para construir nossa essência em meio à nossa existência, isso será definitivo e colocará todas as demais possibilidades como não existentes. Ainda que possamos em dado momento mudar e alterar nossas escolhas, aquele momento em que escolhemos algo e não outra coisa ou possibilidade será definitivo e marcará indelevelmente nossa própria imagem de ser humano. Jamais poderá ser “desescolhido”. Se isso é um fato angustiante para um indivíduo, que dirá para a escolha de toda a humanidade que fazemos ao escolher a nós mesmos, como já explicitado. Tal angústia está, portanto, relacionada à nossa responsabilidade para conosco mesmo e para com os outros e é, segundo Sartre, algo peculiar à ação humana. E se alguém dissimuladamente disser que não experimenta a angústia em meio às suas ações e escolhas, estará agindo de má-fé.

“[…] o homem está condenado a ser livre, condenado porque se criou a si próprio, e no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer”.

Jean-Paul Sartre

A questão da liberdade é algo essencial para o existencialismo sartreano. E isso porque está completamente relacionada à responsabilidade específica que é a marca da própria humanidade em relação aos seus atos e escolhas. O uso do termo “condenado” para se referir à liberdade humana é ao mesmo tempo paradoxal e proposital: ao dizer que estamos condenados, a força deste aparente determinismo nos leva a uma espécie de aporia (situação insolúvel ou sem saída), pois não podemos escolher não ser livres, não existe tal opção. Assim como não podemos deixar de fazer escolhas. Mesmo quando supostamente nos abstemos de escolher, escolhemos não escolher, ou seja, uma escolha não deixou de ser feita.

Segundo Sartre, esta sentença de condenação a liberdade decorre do fato de que nós somos nossos próprios criadores em termos de nossa essência, ou seja, do que somos. É essa liberdade, da qual jamais poderemos abrir mão ou nos desvencilhar, por mais que alguns tentem, ao abraçar ideologias opressoras em todos os sentidos, inclusive no de supostamente controlar nossos comportamentos, usos e costumes, que efetivamente nos torna os seres que somos. Mesmo os que optaram por tolher sua liberdade por meios ideológicos, políticos e religiosos escolheram fazê-lo. Alguém poderá dizer que algo lhe foi imposto, que não havia como escolher diferentemente do modo como alegadamente se apresentaram os fatos: – Não tive escolha! – é o que ouvimos com frequência. Mas para o existencialismo de Sartre, isso é má-fé, pois sempre haverá uma escolha. Ela pode ser difícil, dolorosa, improvável, e certamente será angustiante. Mas existe. E por vezes a escolha não é tão difícil, mas nós a tornamos, por nossos medos e inseguranças.

Sartre também sempre combateu a ideia de que o existencialismo abole a moral. Nada mais falacioso, segundo ele. O que o existencialismo demonstra é a impossibilidade de uma moral geral ou universal, pois ela pressuporia um conjunto de essências anteriores valorando tal moral, o que o existencialismo , como já vimos, rejeita. Não há moral geral, muleta tão desejada pelos homens para sinalizar um caminho a seguir, assim como não há natureza humana, como uma essência geral própria a todos os homens. Então, resta ao homem ser artífice da própria moral, construída por suas escolhas e agir de modo coerente com elas. Mas então, será impossível um juízo de valor? Sartre dirá que “[…] podemos julgar, antes de mais (e isto não é talvez um juízo de valor, mas sim um juízo lógico), que certas escolhas são fundadas no erro e outras na verdade. Pode julgar-se um homem dizendo que ele está de má-fé. Se definimos a situação do homem como uma escolha livre, sem desculpas e sem auxílio, todo o homem que se refugia na desculpa, que inventa um determinismo é um homem de má-fé. Objetar-se-á: mas por que não se escolheria ele de má-fé? Respondo que não tenho que julgá-lo moralmente, mas defino sua má-fé como um erro. Neste ponto não se pode escapar a um juízo de verdade”.

Assim, Sartre preocupa-se com uma moral de ação e de compromisso: para ele, o existencialismo é, acima de tudo uma doutrina otimista, pois insiste que o destino do homem está exclusivamente em suas mãos, a despeito dos limites estruturais que eventualmente se imponham, bem como tudo o que resta ao homem é agir. Não é porque, contingentemente, a escolha da ação a ser tomada gere angústia ou porque perceber que estamos sem desculpas e muletas de valores e determinismos, sejam eles quais forem, produzam uma sensação de abandono e desespero, que seremos levados ao quietismo (apatia, indiferença). Viver é inventar-se a partir do nada, é compreender que é necessário aprender sem intermediários e assim o fazendo, por meio de nossa subjetividade também descobrimos a subjetividade do outro. O outro nos afeta de modo muito intenso, pois é um outro que se inventa e é livre para escolher diferentemente de nós. Por vezes, como disse Sartre em sua peça Entre quatro paredes, “o inferno são os outros”. O problema é que nossos projetos pessoais entram em conflito com o projeto de vida dos outros. Eles, os outros, tiram parte de nossa autonomia. Ao mesmo tempo, é pelo olhar do outro que reconhecemos a nós mesmos, com erros e acertos. Já que a convivência expõe nossas fraquezas, os outros são o “inferno” quando não compreendemos a dinâmica dessa inevitável relação.

O existencialismo já soou escandaloso, chocante e mesmo gerador de desesperança e desespero. Foi criticado por marxistas e cristãos, visto como difusor do pessimismo e desespero desnecessário. Ainda que não se concorde com a íntegra de suas teses, é inevitável que o contato com elas nos leve a refletir sobre o modo como temos vivido. Até quando atribuiremos o resultado de nossas escolhas e ações a outras circunstâncias, determinações e mesmo pessoas que não nós mesmos? Quando, enfim, assumiremos nossa responsabilidade plena por aquilo que somos e nos tornamos? Por mais que o radicalismo e a desconsideração para com o divino incomodem muitos, é impossível não ver no existencialismo de Sartre uma importante contribuição para o desenvolvimento humano e para o amadurecimento do ser humano como responsável pela própria vida.

Sartre também nos ensina a ser generosos e acessíveis. Ele inaugura, não apenas com sua obra mas com sua vida, desde a resistência francesa, passando por posturas que inclusive incluiram mudanças e rupturas nem sempre simpáticas, um fazer filosófico realmente engajado, que sai às ruas, conversa com as pessoas, busca falar sua língua, esforça-se por se fazer compreender, trata dos problemas reais e palpáveis, posiciona-se. Mais do que apenas fruto de seu talento literário, a diversificação dos gêneros de escrita com os quais Sartre elabora suas teses demonstra essa preocupação. Certa vez, disse que eventualmente pessoas não tão bem preparadas vinham lhe fazer perguntas. Diante disso, teria duas possibilidades: recusar responder ou aceitar a discussão em um nível menos elevado. Ele afirmou que sempre escolhe a segunda opção, pois desejava ter um compromisso em se fazer compreender. A despeito das eventuais limitações do autor desse blog, esse é um exemplo que se pretende seguir.

Para saber mais:

O existencialismo é um humanismo, de Jean-Paul Sartre

Várias obras de Jean-Paul Sartre para baixar

SÉRIE- Humano, Demasiado Humano (Jean Paul Sartre)

Imagem do título: Jean-Paul Sartre, aquarela de 2018, por Lautir.

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