Sorocaba e o DNA de São Paulo

Nilo Brum
(Blogueiro convidado)

Embora exista quem defenda a existência de um biotipo brasileiro, é fato incontroverso que o nosso país é composto por uma diversidade de etnias e culturas que tornam muito difícil estabelecer uma identidade nacional. Se isto é verdadeiro para o país, mais evidente ainda o é para os estados da metade-sul que, além dos povos autóctones, receberam uma gama de europeus, asiáticos e africanos, cujas origens seriam difíceis de enumerar aqui.

Alguns estados, como Rio Grande do Sul e São Paulo, tentam encontrar sua identidade criando mitos fundadores como o Gaúcho e o Bandeirante. Não me refiro aqui ao nômade de carne e osso que gauderiava nos campos realengos entre as colônias ibéricas do cone sul preando gado selvagem nem ao também predador que caçava indígenas reduzidos para trabalhar nas lavouras de açúcar. O gaudério do extremo sul foi assimilado pelo colonizador por suas habilidades no campo e na guerra, enquanto o bandeirante consagrou-se por encontrar, finalmente, o ouro nas Minas Gerais.

Ambos tiveram passagem efêmera na história do país, restrita a uma quadra do século XVII. Refiro-me aos dois mitos estereotipados que se criaram pela decantação dos personagens reais. Tais mitos têm seu valor por alimentar a autoestima dos habitantes destes estados, mas, além de fomentar certo bairrismo, obnubilam os verdadeiros agentes que construíram nossa nacionalidade pelo trabalho árduo e persistente durante séculos.

Não vi na programação oficial [de aniversário de Sorocaba] sequer uma palestra sobre a identidade tropeira da cidade nem uma roda de violeiros nem uma feira de culinária nem uma apresentação de fandango, nada que evoque a alma tropeira de Sorocaba.

Por isto, se me fosse dado o encargo de escolher um ícone para São Paulo, não seria ele o bandeirante nem o caipira indolente caracterizado pelo Jeca-tatu, criado como garoto propaganda do biotônico Fontoura e popularizado pelos filmes de Mazzaropi. (Nada a ver com as saudosas duplas caipiras que embalaram a infância de muitos de nós.) Também não seria o “cowboy” ajaezado de Bob Nelson e outros cantores sertanejos que o seguiram em estilo. Meu ícone para São Paulo seria e o tropeiro biriva.

Seguindo a mesma trilha a que me propus, a capital cultural de São Paulo não seria a bela metrópole de mesmo nome. A identidade do estado dificilmente poderá ser vista nesse mar de diversidade. A cidade de São Paulo é uma megalópole globalizada e internacional tal como Nova Iorque. Nessa cidade de São Paulo estão representadas, lado a lado, todas as etnias que formaram a nação brasileira.

Minha candidata à capital da Cultura paulista é Sorocaba, tanto por sua história na formação do estado como pela tradição que ainda conserva em seu entorno para quem tem olhos para ver e coração para sentir. Nesse entorno, estão diversos municípios que outrora abrigavam potreiros, ranchos e capelas onde tropeiros e tropas aguardavam a abertura das grandes feiras. Esses municípios da região de Sorocaba mantêm ainda muitas das tradições tropeiras, como usos e costume, festas religiosas, grupos de fandango, rodas de violeiros, artesanato, culinária etc.

Essa cultura autenticamente paulista e sorocabana estende-se para o sul por um corredor vivo de cidades e gente que passa por três estados diferentes além de São Paulo. Um sorocabano pode reconhecer-se, como se estivesse em casa, em cidades como Castro e Lapa, no Paraná, ou Lages e Campos Novos, em Santa Catarina, ou, ainda, em Bom Jesus, Cruz Alta, Carazinho e Palmeira das Missões, no Rio Grande do Sul.

É isto mesmo. A cultura de raiz mais autêntica de São Paulo não cabe nas lindes de um só estado e Sorocaba é o polo e o elo inaugural dessa cultura. Por tudo isto, neste 15 de agosto de 2021, em que a cidade comemora o seu 367° aniversário, me parece oportuno lembrar aos sorocabanos sua responsabilidade pelo resgate e a revitalização dessa cultura que nos foi legada por nossos antepassados tropeiros. E tenho a ousadia de fazer esta exortação porque, ao ler a programação das festividades da aniversariante, não vi nenhum evento que lembrasse a vocação tropeira da cidade. Não vi na programação oficial sequer uma palestra sobre a identidade tropeira da cidade nem uma roda de violeiros nem uma feira de culinária nem uma apresentação de fandango, nada que evoque a alma tropeira de Sorocaba. De minha parte, como sorocabano afetivo, prometo fazer o que puder para reavivar essa memória.


Nascido em Rosário do Sul (RS), sorocabano adotivo, Nilo Bairros de Brum é advogado e sócio efetivo da Academia Sorocabana de Letras.

Ilustração:
“Tropeiro Paulista”, Charles Landseer, 1827

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