
José Carlos Fineis
Antes de mais nada, quero registrar um protesto enfático, irritado mesmo contra o maldito cacófato e todos – jornalistas, políticos, médicos, cientistas, até mesmo professores – que se renderam a ele sem a menor resistência. Cacófato evidente, feio, evitável e – já que aceito, apesar de evitável – vagabundo, por meio do qual as palavras “por” e “covid”, escritas ou faladas assim, em sequência, evidenciam de forma grosseira a palavra “porco”: “porco vid”.
Como não fosse a doença suficientemente nefasta, ainda temos de morrer com esse “porco” evocado estupidamente em todo noticiário, quando poderíamos simplesmente aludir que a contaminação se deu “pela covid” ou que morreram tantos “de covid”. (Aliás, cabe lembrar que a tradição linguística manda morrer “de” e não “por”. Prova é que, quando alguém morre, pergunta-se: morreu de quê? E não: morreu por quê?)
Senhores e senhoras que escrevem e narram a desgraça nossa de cada dia, por amor a Deus e à beleza da última flor do Lácio, parem de assassinar a língua de Camões e de Drummond com essa expressão grotesca, quase chula: “por covid”. Pode parecer assunto menor, mas não é, pois para tudo há tempo e propósito sob o Sol, e a dor, por mais doído que seja senti-la, não deve jamais ser usada como justificativa para texto ruim ou estilo indigente.
Já basta a indigência moral dos que deveriam dar o exemplo; já bastam o sofrimento, as aflições, o morticínio que cheira a carne podre e a floresta incendiada, o direito solapado, a verdade suprimida, produtos do negacionismo que se alastrou como política de Estado, tornando possíveis milhares de mortes evitáveis – na melhor das hipóteses, por uma mistura fatal de negligência e arrogância. Salvemos a Língua Portuguesa, antes que seja, também ela, assim como a floresta e o bom senso, destruída.
Dito isto, quero contar a história de um conhecido que acredita na narrativa delirante, repetida impunemente por aquele que enterrou um bom dinheiro com a fabricação de hidroxicloroquina enquanto os governos inteligentes andavam em busca de vacinas, sobre não serem os mortos de covid, ou pela covid, tantos quantos notificam médicos, hospitais, secretarias estaduais de Saúde e órgãos de imprensa.
Esse meu conhecido é metódico. Toda manhã, folheia o jornaleco de sua cidade, reclama que o matutino está cada vez mais fino – reclama por reclamar, pois tem preguiça de ler – e mergulha nos grupos do zap, onde recebe o dia todo as mentiras que constituem, segundo acredita, algo assim como uma Grande Verdade Escondida, tramada em algum foro secreto por um conluio entre a Globo, o STF, parte do Congresso, Cuba, Venezuela, os chineses e, é bem possível, os ETs.
Em tais grupos, esse meu conhecido e milhares de outros brasileiros acreditam manter contato direto com os filhos do presidente da República, quando não com o próprio – sem que lhes passe pela cabeça que, do outro lado, quem os entope de mentiras é um jovem gordinho e espinhento, rejeitado no amor, funcionário sem nome do Gabinete do Ódio, a comer um pacote enorme de Ruffles e a repetir as tolices que circulam no Palácio e em seu entorno – tão delirantes quanto volumosas.
Numa dessas leituras, esse ex-colega – a quem eu considerava um cidadão de bem, até perceber que é mais um dos muitos que alimentaram o ódio em suas almas durante décadas, quietinhos ali, tomando cerveja no cantinho do churrasco, só esperando a hora em que alguém tão despreparado e grosseiro como eles assumisse a Presidência, para então se revelarem – leu e se convenceu de que não se morre de covid no Brasil, nas proporções divulgadas pela imprensa.
Chamou-me por cima do muro do condomínio (sim, tragicamente somos vizinhos) e passou a expor a teoria defendida pelo presidente. Morre-se, na verdade, de inúmeras causas que os médicos, talvez por meio de alguma ferramenta secreta de comunicação – algum tipo de Zoom comunista –, e movidos sabe se lá por quais instintos sociopatas (quem sabe, subornados pelo “calça apertada” do Dória), combinaram esconder dos brasileiros, para lançar as mortes na coluna da covid e, dessa forma, prejudicar a “imagem” do presidente.
Contou-me uma história, o infeliz, enquanto eu tentava manter-me longe do muro, já que ele, naturalmente, não usava máscara. “Meu sobrinho de 45 anos, cheio de ‘cormorbidades’ (sic), resolveu comer pipoca outro dia. Imagine, pipoca! Coisa mais idiota. No meio da pipoca, como sempre, tinha alguns piruás. Meu sobrinho engoliu um piruá de mau jeito e ele ficou enroscado na garganta. Tomou água, comeu miolo de pão, mas não adiantou. Sabe quando fica preso, arranhando quando engole? Não teve jeito. Foi pro pronto-atendimento. O lugar tava cheio. Ficou horas lá. Não sei o que ele fez, se foi no PA ou no bar onde passou depois, para rever os amigos. Bom, pra resumir: pegou o vírus chinês. Ficou alguns dias tomando ivermectina, cloroquina, aspirina, dipirona, antialérgico, Rivotril, enfim, esses remédios que todos nós sabemos que são tiro e queda pra covid. Mas, talvez por causa de suas ‘cormormidades’, foi internado e não resistiu. Hoje cedo fiquei sabendo que ele morreu. Agora me diga, seu Zé, o senhor que é um homem lido, esclarecido, estudado, apesar de meio esquerdista. Me diga: meu sobrinho morreu de quê?”
Fiquei olhando para ele, sem entender aonde queria chegar. “Como assim, morreu de quê? Não lhe parece claro do que ele morreu?”
“O senhor vai dizer que foi por covid, não é mesmo? É típico de vocês, esquerdistas. Agora ninguém morre de outra coisa, só por covid. Por covid, por covid, por covid. Tudo pra poder dizer que o nosso presidente é, como vocês chamam?, gelocida!”
“Se não foi covid, o que foi então?”, provoquei.
Ele sorriu, acendeu um cigarro, deu uma longa baforada com aquela expressão triunfal de truqueiro que tira um zape, leva truco e vai a doze:
“Pra mim me parece muito claro, cientificamente falando, que ele morreu de piruá. Pois, se não fosse o maldito piruá enroscar na garganta dele, teria ficado em casa assistindo TV, não teria ido para o PA, nem passado no boteco, não teria pego essa bosta desse vírus e estaria vivo agora.”
“Então o sr. acha que é mentira que ele morreu de covid?”
“Sim, é o que eu acho. E, assim como ele, tem muitos milhares que morreram de outra doença qualquer, mas os médicos esquerdistas escrevem lá no atestado de óbito, na causa mortis – morto por covid.”
Nesse momento eu não aguentei. A repetição do cacófato foi a gota d’água. Sinto-me angustiado em admitir, mas tive vontade de espancar meu vizinho. Justo eu, que sou um homem pacato, que respeito os meus semelhantes, que pago impostos sem reclamar, que não digo que as eleições foram fraudadas quando meu candidato perde, que faço cara de paisagem quando alguém diz que o Pedro Bial tem um “puta texto”, que ouço música no fone de ouvido para não incomodar ninguém.
“Seu Chico, o senhor, por acaso, sabe o que é um cacófato?”
Ele me olhou assustado, o cigarro no canto da boca:
“Caco o quê? Eila! Sei não.”
“Pois saiba que, a partir deste instante, nossas relações estão cortadas. Proíbo o senhor de me dirigir a palavra. Nunca mais me peça nada, nunca mais me cumprimente na rua, nunca mais me chame por cima do muro.”
Mandei-o para o inferno, enquanto me afastava pisando duro.
Queria sumir dali, esquecer tudo aquilo. A insanidade é contagiosa. Se não tomarmos cuidado, ficamos estúpidos e impulsivos também. No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho. Tropecei na pedra e caí sobre uns arbustos espinhentos. Debruçado sobre o muro, seu Chico soltou uma gargalhada ao me ver às voltas com os espinhos. Depois gritou:
“Vai à merda, comunista maluco!”
E me mandou enfiar o “carófato” você sabe onde.
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