Todas as coisas são feitas de água

Frederico Moriarty

Corria o século VII a.C. e o sábio Tales de Mileto fundou a escola jônica. Era necessário separar definitivamente a religião e a mitologia do verdadeiro conhecimento da causa primeira de todas as coisas. Buscava uma explicação racional, concreta e matemática para a Archè. A filosofia estudava a natureza (a physis). As grandes perguntas eram:

  • De onde tudo vem?
  • De que tudo é criado?
  • Como explicamos a pluralidade de coisas encontradas na natureza?
  • Como podemos descrever a natureza matematicamente?

Tales defendia que a causa principal e presente em todas as coisas era a água.

Um Qanal Assirio

Sem água não há vida. O homem sempre soube disso. Bem antes dos gregos, os assírios, 30 séculos antes de Cristo, inventaram o Qanal (daí provavelmente a origem da palavra “canal”). Era um sistema de poços subterrâneos que captavam água do pé das serras e abastecia as regiões áridas do Oriente Médio.

Mas nada foi tão impressionante quanto os aquedutos romanos (o primeiro data do período dos Irmãos Graco). Utilizando-se da gravidade, a água descia por imensos dutos subterrâneos e somente nos vales e entre os morros ela exibia seus maravilhosos arcos. A maior parte dos aquedutos eram debaixo da terra para proteger a água do lixo, dos esgotos, das carcaças de animais e chegar pura nas torneiras romanas (é certo que eles gostavam de misturar chumbo para deixá-la mais potável).

Aqueduto Júlia

Frontinus, em 97 d.C., escreveu o primeiro tratado sobre engenharia hidráulica romana. O rapaz elencou 10 grandes aquedutos a fornecer água para 1,2 milhões de habitantes. O maior de todos era o Márcia com 92 km, sendo 10 km de arcos externos. Júlia também possuía 10 km de arcos, mas era menor em extensão. Augusta e Cláudia eram imensos também. Os romanos denominavam seus aquedutos com nomes de mulheres, pois estas, como a água, eram a fonte da vida. No total, Roma chegou a ter mais de 500 km de canais. Havia água potável para todos. Jamais houve escassez. O engenheiro latino ainda nos conta que o sistema de água era dual, ou seja, havia água potável para os cidadãos romanos beberem e se deliciarem nos banhos; e uma água menos tratada para irrigação e lavagem de ruas. Exatamente como não temos hoje.

Aqueduto do séc I a.C.

Frontinus se irritava com o excesso de funcionários (500 no total) pra tomar conta do abastecimento. Dizia ainda que se Roma investisse na redução do desperdício, no controle do desvio indevido da água e na manutenção dos túneis, não precisaria construir nenhum novo aqueduto por 500 anos (mas a população retraiu pra 40 mil habitantes e a crise hídrica não se instalou).

Outro grande problema era o rio que passava pela aldeia, um tal de Tibre. Os romanos criaram um gigantesco sistema de despejo de esgoto e poluíram em excesso o manancial. O nome dessa obra era Cloaca Máxima. Frontinus defendia que não devia ser assim. Lançou até o Programa Rio Tibre de Despoluição (ironia).

E os hebreus/ judeus/ israelenses? Prodígios também. Três séculos antes de Cristo irrigaram o deserto de Neguev com canais de pedras e permanecem fornecendo água potável para Netanyahu e seguidores hoje em dia. Nos anos 60 eles transformaram um país de 20 mil km² (do tamanho da baixada santista) com 6 milhões de habitantes, cercado por montanhas de um lado e deserto do outro, em uma miríade de canais e poços e garantiram água pra todos (não abundante, mas sem racionamento). Os engenheiros hidráulicos e os agrônomos israelenses fizeram estágio aqui no Brasil nos anos 60 (piada) e desenvolveram uma técnica de irrigação de agricultura ultrasofisticadíssima que permite economizar 70% do consumo das grandes áreas de produção agrícola (o vilão responsável por ‘beber’ mais da metade das águas das cidades). A técnica chama-se “gotejamento”. Um cano furado acompanha a plantação. Simples, eficiente e econômico. Por isso ninguém do agronegócio tupiniquim adota.

Rio Tietê. 1930

E lá vou eu pro departamento de Geografia da USP e dou de cara com uma tese (anos 70) sobre os mananciais da cidade. Tamandatueí, Anhangabaú, Águas Espraiadas (o Maluf adora esse), etc. São Paulo é uma metrópole construída entre córregos e pântanos e cercada por dois monumentais rios: o Tietê (que já gastou 12 bilhões nos últimos 35 anos em despoluição) e o Pinheiros. O primeiro atravessa 45 km só na capital, com distâcia entre margens de 14 a 18 m. O segundo tem só 32 km com margens de 8 a 14 m. Mas não era assim. Na década de 50 os dois rios foram retificados. Os mil meandros desapareceram. Os lagos em volta foram tragados pelo cimento e asfalto das marginais. O Pinheiros ainda teve suas águas revertidas. Não deságua mais no Tietê. Caminha no sentido inverso para encher a represa Billings. Hoje estavam cheios: de água podre, merda e garrafas pet. Água tratada e potável como em Roma? Um sonho para 37% da população paulistana.

Obras da usina elevatória de traição. Rio Pinheiros

Talvez por isso não sou engenheiro. Porque vai que eu fizesse hidráulica. Iria trabalhar na Sabesp e passaria o dia todo dando desculpas esfarrapadas sobre o óbvio. Botaria a culpa no Santo. No mendigo que se lava na torneira da rua. Seria um mau caráter de cara lavada (enquanto houver água).

Até Jacó deu um poço pra José do Egito, seu filho. E eu não consegui entrar em 3 banheiros interditados por falta d’água na capital.

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