“O gol é o orgasmo do futebol.”
(Eduardo Galeano)
FREDERICO MORIARTY – Manguera bate forte a falta na entrada da área e a bola entra no canto esquerdo do goleiro austríaco. Era o quinto gol peruano no tempo extra, aos 12 minutos do segundo tempo da prorrogação. Mas apenas o segundo validado, mesmo assim, definindo a partida: Peru 4 a 2 Áustria. Hitler estava irritadíssimo na tribuna; afinal, além da precoce eliminação nas quartas de final da Alemanha Nazista (a seleção de futebol estampava vergonhosamente a suástica no peito); contava agora com a derrota de sua terra natal, a Áustria. Para piorar tudo, os alemães foram obrigados a ver um show daquele negro alto de 1,98 m, de drible curto e passadas largas, Alejandro Villanueva. Era a segunda vez nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, que um negro destruía os sonhos racistas do arianismo. Desta vez com um sul-americano, terra de incas e negros.
O craque peruano
Villanueva marcou 5 gols em dois jogos nas olimpíadas (2 foram anulados contra a Áustria). Alto para os padrões atuais, era um atleta muito forte, daí o apelido da portentosa árvore, a Mangueira. Na primeira fase, o Peru tascou 7 a 3 na Finlândia, depois outra goleada sobre a fortíssima Áustria que levariam o Império Inca às semifinais. Mas a história dessa partida foi diferente.

Villanueva foi o maior jogador do Alianza Clube de Lima, no Peru. Jogou 18 anos no clube, entre 1927 a 1945, quando faleceu de tuberculose. Foi o período mais vitorioso do time mais popular e tradicional do Peru. Ganhou 5 títulos nacionais e excursionou várias vezes pela Europa com o time. Fez quase 100 gols em 175 jogos na carreira. Pela seleção, além da memorável campanha em 1936, ganhou um ouro nos Jogos Bolivarianos em 1934 e dois bronzes no sul-americano de Futebol. Sua importância é tão grande que o novo estádio do atual campeão peruano leva seu nome.
Os dirigentes
Voltemos a 8 de agosto de 1936. Logo após a partida, aconteceu uma reunião no Comitê Olímpico Internacional. Presentes estavam Jules Rimet, presidente da Fifa; o conde belga Baillet Latour, presidente do Comitê Olímpico Internacional; o vice-presidente do COI, o italiano Mauro, além dos diretores olímpicos da Alemanha, Tchecoslováquia e Suécia. No relatório do árbitro norueguês da partida, havia uma informação de que logo após o gol de empate peruano, um afoito torcedor sul-americano teria entrado no gramado e esbofeteado um jogador austríaco que sequer voltou para a prorrogação. Além disso, após a vitória de 4 a 2, mais de 1000 peruanos invadiram o gramado para comemorar a vitória. Quanto aos 3 gols anulados, o árbitro alegou que, como os jogadores do Peru eram muito ” parecidos” e não havia números nas camisas, ficara difícil definir quem era quem. Solução apresentada pelo “comitê” dos Jogos: anulação da partida e um novo confronto dali a dois dias.

A primeira falácia
Tal versão é claramente fantasiosa. Na verdade, desde 1931 a Fifa vinha tentando derrubar a superioridade técnica dos sul-americanos fora de campo. O passeio uruguaio no bicampeonato olímpico de 1924 e 1928 levou a organização a não permitir que houvesse torneio de futebol em 1932. A Copa de 1930 também foi um fracasso do ponto de vista europeu, afinal as finais foram disputadas por Uruguai e Argentina. Nada do Velho Continente. A vitória da Itália fascista com uma série de irregularidades em 1934 não bastava. Nas olimpíadas de 1936, por questões econômicas, Uruguai, Argentina e Brasil não enviaram suas equipes a Berlim. O Peru era apenas a quarta força, os europeus não correriam riscos, deveriam ter pensado. Mas Villanueva e os outros “negros e incas” não seguiram o roteiro. A reunião que anulou a partida foi organizada e contou com o voto de 6 dirigentes europeus — suspeição é pouco. As alegações beiram a sandice. Numa época em que torcedores de futebol iam de terno e gravata assistir a uma partida, imaginar um rico senhor peruano invadir o gramado e espancar um atleta impunemente é inverossímil. Mas o pior veio no fim da partida. Havia cerca de 3.500 torcedores assistindo Peru versus Áustria. Imaginar que quase metade desses pegaram um navio em Lima e atravessaram Atlântico e Pacífico para ver os Jogos Olímpicos de Berlim não tem cabimento. Os 3 países mais ricos do continente não tinham dinheiro pra mandar 20 atletas, mas havia mais de 1.000 peruanos com dinheiro sobrando. Absurdo maior: os milionários peruanos eram todos violentos, agressivos e invasores. Essa é a versão oficial e europeia da história. Um misto de racismo e fantasia infantil.

O fator Benevides
Villanueva, Teodoro “Lolo” Fernández (autor de 5 gols contra a Finlândia), Juan “Mago” Valdivieso e Adelfo “Bólido” Magallanes, integrantes do poderoso ataque alvirrubro, se tornaram uma lenda nas Olimpíadas. Quatro países sul-americanos desistiram de continuar nos jogos olímpicos, após a absurda anulação da vitória peruana. A nova partida foi marcada para 2 dias depois. Quando entrou na história a política peruana. Oscar Benevides, presidente peruano em 1936, estava às vésperas de uma eleição no país. O candidato da oposição, General Flores, era o favorito. Flores fundara nos anos 30 o Partido Fascista Peruano. A anulação da partida foi um excelente negócio para Benevides. Exigiu o imediato retorno da delegação peruana. O presidente do comitê olímpico peruano não titubeou e abandonou o torneio.

No dia da nova partida, os craques peruanos estavam à bordo do navio que deixava a Alemanha de Hitler. A viagem levou 40 dias. Durante esse tempo, o Peru se preparou para a recepção. As embaixadas austríaca e alemã no país sul-americano foram apedrejadas. Os jornais traziam dia a dia notícias sobre o “roubo” europeu. Em 19 de setembro de 1936, a seleção peruana foi recebida como uma equipe de herois. O mundo europeu havia sido humilhado por um escrete de incas e negros. Foi a vergonha pela derrota europeia que levou à absurda anulação da partida. Outro detalhe: mesmo que fosse verdade a tese de que mais de 1.000 peruanos passaram 40 dias num navio, pagaram o equivalente a $ 50.000 por uma passagem apenas para ver uma partida de futebol, tivessem invadido o gramado para comemorar a vitória, nada justifica a punição de anular a partida. Benevides soube explorar com maestria o surrealismo da decisão da Fifa e do COI. Venceu as eleições daquele ano e em 1939 resumiu o misto de nacionalismo e populismo de sua política:
Um povo amante do esporte é um povo destinado a ser grande, a ser forte e a sobreviver na história”
O Wunderteam

Outra lenda relacionada à partida é a de que o Peru era formado por valentes e portentosos jogadores profissionais e teria enfrentado uma equipe de jovens amadores catados em alguma cervejaria austríaca. Em 1930, o técnico Hugo Meisl introduz o sistema 3-5-2 na seleção austríaca e inicia uma revolução no futebol europeu. Por 6 anos a Áustria encantou o mundo. Ganhou a Copa da Europa Central ( 1931-1932), o equivalente da Eurocopa nos anos 30, foi 4° lugar na copa de 1934, eliminada das finais num roubo descarado da Itália fascista, a anfitriã. Conseguiu ainda a prata em Berlim, 1936. Ficou invicta 16 jogos seguidos. Goleou a Alemanha em 1933 por 5 a 0 e depois 6 a 0. Tinha um jogador fora de série, Mathias Sindelar. Ele fez mais de 300 gols na carreira e foi escolhido o maior jogador austríaco do século XX. O time de 1936 não era amador, apenas contava com uma renovação em relação à seleção de 2 anos antes. A trajetória austríaca a deixou conhecida na história do futebol como o Der Wunderteam ( a equipe milagrosa). Em 1937, o avanço nazista excluiu vários jogadores judeus do esquadrão austríaco. No ano seguinte, a Anschluss nazista desfaz a mais bela seleção europeia dos anos 30. Os italianos ganharam os 3 títulos em jogo naquela década, mas futebol bonito foi o da Áustria, assim como a Hungria de Puskas, duas décadas depois.
O chucrute nazista
A Anschluss nada mais foi do que a invasão e anexação da Áustria à Alemanha de Hitler e companhia. O último tempero da história de Peru e Áustria foi botar toda a culpa na anulação da partida nos colos de Hitler. Teria sido o ditador alemão o responsável por tudo. Ele peitou COI e Fifa. Todo historiador deve ser chato. Quem entregou as olimpíadas de 1936 a Berlim foi o COI. Os jogos seriam uma demonstração da recuperação alemã. Inglaterra, França, Estados Unidos, Bélgica, Suécia, Brasil, Peru possuíam partidos fascistas ou nazistas no período. O nazi-fascismo era um grande aliado na luta contra o comunismo. Hitler foi escolhido “homem do ano” pela revista Time. Não era demônio, não era o responsável pela abertura das porteiras do inferno. Hitler foi satanizado depois da 2° Guerra. Intelectuais como Gramsci, Walter Benjamim foram massacrados pelo regime nazi-fascista, exatamente por denunciar as tempestades que viriam. Dificilmente ele teria exigido algo do COI ou da Fifa. Nem precisava, a elite dirigente dos esportes sempre teve um pé direito mais alto do que o portão da Babilônia. Berlim 1936 foi uma bela estratégia de propaganda nazista. Mussolini era fanático por futebol. Hitler sempre foi esquisito. Jamais escreveria um bilhetinho no intervalo de uma partida para os jogadores de sua seleção com os dizeres “vencer ou morrer”, como fez Mussolini na Copa de 1934. Nem sabemos ao certo se ele assistiu a partida. As atrocidades nazistas eram de uma dimensão maior do que um reles joguinho de pelota.

Resumo do Jogo
O Peru foi o legítimo vencedor daquela partida histórica. A anulação do jogo foi absurda sob vários aspectos: foi justificada por uma mentira descabida, por um tribunal sem nenhuma isenção e uma solução totalmente desproporcional — esportivamente falando –, caso a da invasão fosse verídica. Retirar o Peru do torneio foi uma manobra inteligente dum político peruano em campanha, isso não tira a força moral do elenco sul-americano. E por último, o mundo era muito mais nazista, racista, preconceituoso e excludente do que o nazi-fascismo da Alemanha e da Itália nos anos 30. E viva o Peru!
Pênalti
Em 2017 uma TV peruana fez uma minissérie intitulada “Goleadores” contando a história ficcional da partida. Veja aqui
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