FREDERICO MORIARTY
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. (…)
É o homem permanentemente fatigado.”
(Euclides da Cunha. Os sertões)

O movimento de Canudos ou Belo Monte(na visão dos vencidos), continua causando controvérsias na sociedade brasileira. Algumas, por não superar a visão datada, porém maravilhosa, construída por Euclides da Cunha, outras por manter a visão laudatória das elites brasileiras e por último aquelas ligadas aos defensores da razão e do determinismo marxista que não conseguem ir além da importância da religiosidade ( e de seus sentidos) para a rebelião de Canudos. A super-produção cinematográfica (1998) sobre o evento falhou em lançar novas idéias sobre sua História, preservando diversos equívocos e fortalecendo preconceitos.
A partir da segunda metade do século XIX, o Nordeste e , especialmente o Ceará, sofreu com secas sucessivas que derrubaram a produção agropecuária e empobreceram mais ainda o sertanejo. Cercado pelo latifúndio, pressionado pelas autoridades políticas e eclesiásticas, o sertanejo encontrava na religiosidade uma forma de expiação dos pecados e, também, uma esperança de sobrevivência social. Nesse sentido, a religião popular era mais do que meras crendices ou sandices do sertanejo, tornando-se um instrumento para o entendimento e o enfrentamento das adversidades oferecidas pela vida miserável no interior nordestino. O beato Antonio Vicente (conhecido como Conselheiro), fazia parte desse universo mental do sertanejo, distante, portanto do ‘louco messiânico’ retratado por parte dos teóricos ( à direita ou à esquerda).
O trajeto de Antonio Conselheiro é iniciado em 1880, quando sai de Quixeramobim (CE) e começa a pregar pelo sertão nordestino, erguendo cemitérios (afinal os pobres não podiam ser enterrados no cemitério da Igreja) e igrejas (com ‘i’ minúsculo, pois trata-se da igreja popular e não a com ‘I’ maiúsculo, a igreja da cúria romana elitista, dona dos cemitérios , por exemplo). Essa é a primeira subversão do Conselheiro: a oposição ao clero romano feita pela religiosidade popular.

Em 1892, é que surge o ‘arraial de Canudos’. Depois de muito procurar, os seguidores de Conselheiro se fixam numa região no interior da Bahia, numa região de localização geográfica privilegiada para a defesa em caso de invasão (já esperada pelo Conselheiro, não como profeta, mas como um lúcido estrategista).
Produzindo num sistema de cooperativas ( e não comunas socialistas, como muitos teóricos gostam de classificar), realizando trocas comerciais com as cidades vizinhas e chegando a contar com algo entre 12 a 15 mil habitantes, Belo Monte ergueu mais de duas mil casas e uma imponente igreja, só derrubadas a dinamite e fogo pelo exército brasileiro. Estava aí a segunda subversão: uma organização econômica baseada na pequena propriedade, desafiando a lógica do latifúndio e do coronelismo.

A auto-organização do arraial, centralizada no seguimento aos preceitos religiosos, teve um caráter ‘sebastianista’, ou seja, a crença espalhada pela cultura portuguesa no retorno do infante-rei português D.Sebastião, morto na batalha de Alcácer-Quibir (1578), para construir um novo paraíso terrestre. Belo Monte seria, em certo sentido, uma possibilidade real de um ‘paraíso’ livre do latifúndio, do poder autoritário da Igreja romana, do governo e da relação patriarcalista e violenta dos coronéis nordestinos.
A terceira subversão: Belo Monte mostrava que era possível construir uma sociedade sem as relações de dependência política, econômica e cultural exercida pelos coronéis.
Um quarto motivo seria o caráter monarquista da rebelião. O Conselheiro não era um político, nem Canudos era monarquista. Sua luta era contra as injustiças sociais da sociedade nordestina e contra a excessiva penalização a que eram assolados os sertanejos pelos governos (no período do arraial, a república e, por isso o discurso pela volta da monarquia). Dentro do próprio governo baiano, a elite que comandava a Província em 1892-1897 era quase toda ela egressa dos ideais monarquistas. Canudos serviu muito mais como uma forma de estabelecer o novo regime e de fortalecer a posição do exército dentro da sociedade brasileira.
O conflito estoura em 1896 com o boicote de um comerciante em entregar mercadorias já pagas pelo Arraial. Conselheiro determina o resgate da mercadoria e derrota as tropas municipais. Estava aberto o precedente. Três incursões militares foram realizadas com utilização de dezenas de milhares de soldados do exército (muitos abandonavam a farda e se juntavam aos seguidores de Conselheiro), canhões, armas pesadas, dinamites e todo o arsenal de crueldades impingidas aos habitantes de Belo Monte. Depois de extenuar os conselheiristas pela fome, pela violência, pelo isolamento e sede, ao desviar o Rio Vasa Barris (única fonte hídrica dos sertanejos), no início de outubro de 1897 o arraial era posto abaixo como bem retrata a ‘ordem do dia’ abaixo:
“ Durante a noite foram lançadas noventa bombas de dinamite, cujo efeito foi esplêndido, maravilhoso, causando ao inimigo enormes perdas. Uma delas caiu em um hospital de sangue, ateando-se violento incêndio. Era de constranger o coração o quadro que se observava: gritos lancinates de angústia, de dor e de desespero! Crianças a chamarem por suas mães e por seus pais, mulheres que, feridas, mortas de fome e de sede, se debatiam com as chamas, onde centenas delas encontravam seu túmulo!” (Canudos, Ordem do dia, 01/10/1897)
Canudos representou uma revolta popular que desafiava a maior parte dos poderes dominantes da sociedade brasileira: o latifúndio, o clero romano, o coronelismo e o exército brasileiro. A sociedade de Belo Monte era uma proposta de transformação da realidade social e cultural do sertanejo, portanto, sediciosa e consequentemente passível de destruição total, como bem mandou o presidente Prudente de Moraes:
“Não se deve deixar uma pedra do arraial de Canudos”.
No Brasil, por muito tempo, o combate à pobreza se dá pelo extermínio dos pobres.

Deixe uma resposta