Toda Unanimidade é Burra

MARTINHO MILANI*

*Especial para o Porque. Jornal 100% digital. O Portal Porque tem parceria com o coletivo de blogueiros Terceira Margem. Aqui os textos são assinados com o pseudônimo FREDERICO MORIARTY

Protesto na cidade de Paisley, durante o que deveria ser um minuto de silêncio em homenagem à rainha falecida. Foto: Reprodução YouTube

No domingo passado, 18/9, na cidade de Paisley (centro-oeste escocês), o estádio da Love Street ouviu um dos mais ensurdecedores minutos de silêncio da História. O time da casa, Saint Mirren Football Club, enfrentaria o Celtic Football Club, em jogo válido pela Primeira Divisão de Futebol da Escócia. Minutos antes de iniciar a partida, os telões colocados ao fundo do estádio começavam a mostrar imagens da Rainha Elizabeth II, falecida dias antes e soberana dos escoceses. Os 22 jogadores das duas equipes, os técnicos e seus auxiliares, além dos três árbitros da partida estão posicionados no círculo central do gramado. Um cântico tradicional do folclore começa a ser entoado pelos torcedores do Celtic. A empresa Sky, responsável pela transmissão da partida, desliga os alto-falantes, o que de nada adianta, pois os torcedores começam a cantar em tom mais elevado.

“ If you hate the Royal Family clap your hands. If you hate the Royal Family clap your hands…” (Se você odeia a Família Real, bata palmas.)

Por todo o estádio vemos os torcedores cantando e batendo palmas (veja vídeo no final deste texto). Dirigentes bem alinhados nas cadeiras privativas também batem palmas. Quase todos os jogadores do Celtic estão batendo palmas. Os atletas do Saint Mirren também seguem o coro – alguns tímidos, é claro. Um protesto de pouco mais de um minuto contra a Monarquia e a visão edulcorada da Rainha Elizabeth. Jim Morrissey, vocalista dos Smiths, cantou em 1986: “A rainha está morta, amigos, e é tão solitário no purgatório”.

Por que tanto rancor contra a pobre senhora?

Celtic versus Rangers

Primeiro, é necessário entender um pouco da história do futebol escocês. O Rangers Football Club é uma das mais antigas equipes do mundo; afinal, completaram 150 anos de existência em janeiro deste ano. As camisas são de cores alvinegras. Fundado na cidade de Glasgow, o Rangers é o time dos sindicatos de operários da cidade, em geral anglicanos e monarquistas. Do outro lado da maior cidade escocesa está o Celtic, o alviverde escocês, fundado em 1888 num mosteiro da igreja católica e formado principalmente por imigrantes irlandeses (daí o verde e branco semelhante às cores do Eire no futebol) e católicos escoceses.

Existe uma rivalidade cultural explosiva entre os dois times, certamente a maior de todo o futebol mundial. São duas nações que se enfrentaram mais de 500 vezes em quase século e meio de história. Celtic e Rangers detém outra marca impressionante. São os dois maiores campeões nacionais do mundo: 116 títulos para o time alvinegro e 112 para o alviverde. O Celtic é o time da República, dos imigrantes paupérrimos, da superação das adversidades. Em 1967, ganhou seu mais importante título: o da Liga dos Campeões (atualmente Champions League). Venceu a Internazionale de Milão na final com seus 11 titulares nascidos na Escócia. Feito único na história da Champions. Foi esse Celtic nacionalista, republicano e desbocado que protestou. Mas essa explicação somente basta?

A expansão doméstica

Existe uma mitologia inglesa que coloca as origens históricas do país na figura do Rei Artur, o puro de sentimentos. Artur carrega a espada da unificação das 12 tribos medievais, cada uma com um cavaleiro e nobre que abriu mão da liderança regional em troca de regime centralizado e monárquico. Artur e seus doze cavaleiros vão em busca do Santo Graal, o cálice sagrado em que Cristo tomou o vinho da última ceia. A analogia é intencional: os 12 nobres ingleses são os antigos apóstolos e Artur é um Jesus Cristo redivivo. Como matar um rei que é o próprio filho de Deus aqui na Terra?

O ano de 927 d.C. marca o primeiro reinado inglês de verdade, o de Etelstano. Essa unificação das 12 tribos foi a base da guerra. Conflitos internos que em alguns casos duraram séculos. A monarquia encharcou o solo inglês do sangue dos combatentes.

No século XII, a Inglaterra incorpora, por meio de guerras, o território ao sudoeste das ilhas britânicas, o País de Gales (terra da atual família real de Windsor).

Ao norte havia um outro reino que dividiu-se na história entre fazer um governo conjunto com a Inglaterra ou ser independente. A Escócia foi diversas vezes atacada pela Inglaterra. O conflito mais violento aconteceu no fim do século XIII e início do XIV, quando se destacou a liderança heroica de William Wallace. Mel Gibson produziu e atuou no filme “Coração Valente” (1986), uma homenagem aos escoceses e a Wallace. Em geral, ao longo da História, a Escócia tem sempre uma maioria de monarquistas entre os habitantes do país. Em 1707, é assinado o Tratado que dá origem à Grã-Bretanha (Inglaterra, Escócia e Gales).

Na outra ilha britânica, a da Irlanda, o conflito durou sete séculos e ainda hoje o predomínio inglês não é unânime. A guerra mais uma vez é o argumento utilizado pela Inglaterra para o convencimento irlandês. Somente no ano de 1803, a Irlanda foi incorporada ao Reino Unido.

Outra vez debaixo de sangue, exclusão e colonização dos futuros súditos.

 Império onde o sol nunca se põe

Henrique VIII, da dinastia Tudor, foi rei da Inglaterra de 1509 a 1549. Foi nesse reinado que se iniciou a expansão colonial inglesa, a mais vitoriosa e violenta da história. Um dos flagelos das monarquias britânicas entre o século XV e XIX foi a escravidão. Os navios tumbeiros ingleses transportaram 4 milhões de escravos para a América nos quase quatro séculos de escravidão. Historiadores calculam que para cada quatro negros que chegavam até a América, outros quatro morriam na viagem e três morriam em disputas na África. Em resumo, as monarquias inglesas lucraram com a escravização e a morte de 11 milhões de africanos e são responsáveis por pouco mais de um terço do total de mortos no genocídio negro secular.

Coube à filha de Henrique VIII, a rainha Elizabeth I (a virgem), criar o modelo de entrepostos comerciais nas colônias, os Tratados de Navegação (responsáveis pela futura hegemonia marítima da Inglaterra) e o incentivo à pirataria. A monarquia não só autorizava como financiava os ataques de piratas a galeões espanhóis. O dinheiro saqueado por espanhóis era roubado por piratas ingleses para abarrotar de ouro os cofres de reis e rainhas.

Um dos maiores piratas da história, Francis Drake, depois de vários ataques a embarcações, é convocado pela rainha para roubar o ouro e prata diretamente no Peru e Bolívia, o que fez com destreza. Numa de suas últimas viagens, recebe o título de nobreza da rainha. Ele e muitos outros piratas da época. E você acreditando que Jack Sparrow era só um pirata de bom coração e sujo. No século XVII, a acumulação desse ouro roubado, em conjunto com o ouro do lucrativo tráfico negreiro, foi essencial para a Revolução Industrial inglesa.

No século XIX temos duas grandes atrocidades a lembrar da monarquia inglesa. Na primeira metade do XIX foram as infames Guerras do Ópio. Para controlar os ricos mercados asiáticos e obrigar a China a importar produtos ingleses – afinal, os déficits eram constantes para a agora Grã-Bretanha –, os soldados, comerciantes e representantes ingleses, além, é claro, dos missionários cristãos, começaram a estimular o vício em ópio na população chinesa. Para se ter uma dimensão da venda a preços módicos da droga, o comércio de ópio chegou a representar metade da balança exportadora inglesa. A terra dos rituais monárquicos rígidos e repletos de etiqueta forçou milhões de chineses a se viciar em ópio e depois trucidou o país em duas guerras de grande morticínio.

Se pudesse, anexaria os planetas. Cecil Rhodes

Tempos da Rainha Vitória, a última governante com laços alemães na Coroa. Vitória, pelo menos, possuía bom coração. Na metade do século XIX, a Irlanda, recentemente anexada ao Reino Unido, sofreu uma brutal crise de fome, com cerca de 1 milhão de mortos (quase 25% do país). Consternada com a miséria e o desespero de seus novos súditos, a rainha abriu seus próprios bolsos e doou vultosas 4 mil libras aos três milhões de irlandeses (algo como R$ 1 milhão de reais em dias atuais, para uma monarca com aproximadamente R$ 50 b

Guerra e os primórdios do apartheid

No final do século XIX, foi a vez das duas Guerras dos Bôeres. Interessada nas minas de diamantes e ouro da África do Sul e também no controle da passagem do Cabo da Boa Esperança, a Grã-Bretanha entra em guerra com holandeses e franceses no sul do continente africano. Centenas de milhares de mortos, campos de concentração e as bases do futuro sistema de segregação racial, o apartheid (1949-1994).

O final do século XX marca também o aparecimento do Imperialismo. A etapa final do capitalismo, como diria Lênin. O Reino Unido agora era o país mais rico e industrializado do mundo. Mesmo assim, na Partilha Africana do Congresso de Berlim (1884-1885), ficou com mais de um terço do continente africano em suas mãos, incluindo as duas nações mais desenvolvidas da África: o Egito e a África do Sul.

Durante 75 anos as colônias africanas forneceram minérios, carvão, petróleo e dezenas de riquezas naturais que alimentaram a máquina do mundo (a Inglaterra) com matéria-prima abundante, barata e extraída com trabalho análogo ao de escravidão. Tudo com uma política colonial do “dividir para dominar”, em que a etnia, a cultura, a religião e as tradições históricas africanas foram dizimadas pelos europeus e ingleses em especial. Só que, no Imperialismo, foi uma rapinagem com um valor moral, ao contrário do período colonial na América. Nas palavras do escritor Rudyard Kipling: “era o fardo do homem branco”. Não bastava colonizar e sugar todas as riquezas dos povos africanos e do sudeste asiático, era necessário levar civilização e cristianismo para aquele mundo de bárbaros, para aquela terra onde as origens do homem ainda estavam presentes. O conflito agora seria entre a civilização europeia e a barbárie africana. Até a década de 30, quando o avô de Elizabeth era o monarca inglês, realizavam-se exposições de “povos-macacos” em praças públicas inglesas e existiam zoológicos humanos na Europa, com negros enjaulados como bestas.

Diana Spencer foi banida do palácio real por expor a fome e a miséria causadas pelos britânicos. Foto: Wikimedia Commons

Rapinagem ao redor do mundo

Nesses quase 500 anos de roedura do mundo colonial, o Reino yu conseguiu roubar quase tudo de quase o mundo todo. O Museu Real Britânico é uma afronta ao Patrimônio Histórico Mundial. Foi esse roubo, aliás, que colocou na coroa da rainha Elizabeth II o maior diamante do mundo, valendo US$ 400 milhões e devidamente surrupiado da África do Sul.

Mas as atrocidades não acabaram; então, relembremos algumas mais recentes, no longo reinado de Elizabeth II. Massacres na Índia após a Independência. Resistências diversas às independências africanas como a Guerra da Nigéria, responsável pela maior crise de fome do século XX na região de Biafra. O conflito e extermínio da Rebelião Mau Mau no Quênia. A Guerra de Suez (1956), bombardeando e matando milhares de egípcios que defendiam a principal fonte de recursos do país. O apoio ao apartheid da África do Sul e ao ditador de Uganda, Idi Amin Dada. A política de exclusão e violências contra os palestinos. O ataque a uma pequena ilha que pertencia originalmente à Argentina. A Guerra do Iraque em 2003. E mais uma centena de casos de violência em que o leve braço de Deus aqui na Terra poderia ter evitado e reduzido as atrocidades cometidas pela Inglaterra.

Por último, cabe lembrar um caso doméstico. Na independência da Irlanda em 1922, o Reino Unido insistiu em permanecer com a região norte, onde havia uma maioria protestante: a Irlanda do Norte (ou Ulster). São 100 anos exatos de exclusão, massacres como o do Domingo Sangrento (que inspirou a música “Sunday Bloody Sunday” do U2) e a formação de guetos para católicos em Belfast, responsável pelo nascimento do Exército Republicano Irlandês (IRA) que por 30 anos viveu uma guerra sangrenta com as tropas britânicas que ocupam o Ulster até hoje.

Desde o final do século XVIII, com os iluministas, aprendemos que só é possível um Estado se ele for pautado na democracia e no direito e ser limitado em suas ações pela força da lei. Monarquias são claros anacronismos históricos e caros aos cofres públicos. Persistem em meia dúzia de países europeus e nas ditaduras do Oriente Médio, como a do Catar em que será realizada a Copa.

Foi a Rainha Elizabeth que excluiu do palácio Lady Diana, esposa do então príncipe herdeiro Charles. Não por ser plebeia, mas por ter-se tornado uma celebridade e ir para os campos da África denunciar as atrocidades que seu reino cometia. Como ela poderia ser rainha um dia sabendo de todo o mal que o Reino Unido causava aos povos do terceiro mundo? Lady Diana tinha que ser escorraçada do palácio e silenciada. A monarca que em muitos momentos denotou simpatia com a extrema-direita (seu netinho, hoje príncipe, foi vestido de soldado nazista numa festa à fantasia), queria proibir o funeral da ex-nora no palácio. Impedir que os filhos e o futuro rei da nação pudessem se despedir da própria mãe. A monarquia sem povo e sem conflitos ou idiossincrasias, como nos fazem acreditar a televisão e as reportagens de fofoca, é uma farsa. Cabe a você seguir o conselho de Nelson Rodrigues, que dá o título a este artigo: postar uma fotinho na sua rede social da simpática vovozinha dos vestidos coloridos, com a frase R.I.P. embaixo, ou bater palmas como a torcida do Celtic.

https://cnnportugal.iol.pt/videos/se-odeias-a-familia-real-bate-palmas-adeptos-do-celtic-aproveitam-homenagem-a-isabel-ii-para-criticar-monarquia/6328bf320cf26256cd3685e4

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