MARTINHO MILANI* (FREDRICO MORIARTY)
No início do “Golpe do 18 Brumário”, Marx afirma que a História ocorre duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa. Nascia o materialismo dialético como um método de interpretação histórica. A fina ironia de Marx está em que, na obra, ele comprova que a História jamais se repete. Temos que analisar quem são os atores, quais as relações sociais que se estabelecem e quais os interesses de classes antagônicos em jogo. Comecemos a história:
“Consideremo-lo ovo de serpente que, chocado, por sua natureza, se tornará nocivo. Assim, matemo-lo, enquanto está na casca.”
A fala está na cena 1 do segundo ato de “Júlio César” de Shakespeare. O patriota Brutus explica ao serviçal Lúcio por que seu primo, o cônsul romano Júlio César, deve morrer. O líder político aspirava ao reinado. A República deveria ser protegida do golpe. Era necessário matar a serpente antes que ela destilasse seu veneno e esmagasse os inimigos.
O historiador Lucius Cassius Dio escreveu uma monumental história romana em 80 volumes na metade do século III d.C. Na passagem do assassinato a 23 punhaladas de Júlio César ele coloca na boca do moribundo a frase:
“Até tu Brutus, filho meu.”
Dio defende a ideia de que Júlio César teve 3 filhos adotivos. Um deles foi Brutus. Daí o poder da frase, pois o próprio filho conspirava e ajudou a matar o pai.
Mais uma vez Shakespeare entra na história. Na mesma peça, “Júlio César”, ele coloca no general romano quase morto a fala:
“Até tu, Brutus? Então cala, César.”
Retira a ideia de afinidade paterna e expande o sentido da frase para toda e qualquer traição vinda de onde jamais se espera. As paixões humanas são perversas, o desejo de poder não tem limites.

E a história de Júlio César se repetiu como tragédia. Em 1921, Adolf Hitler filia-se ao Partido Nazionale-Socialistik e inicia o quarto de século de mais atrocidades e brutalidades de toda a história: o regime nazista. Como um partido com 30 filiados em 1921 – e que, três anos depois, tem seu presidente e toda a cúpula presa por tentarem um golpe de Estado, além de não ter um deputado sequer no Reichstag alemão – se tornaria a maior máquina de guerra e morte no país mais industrializado e um dos mais cultos da Europa, é questão ainda não resolvida pelos historiadores.
O diretor Ingmar Bergman, em seu primeiro filme realizado em Hollywood – “O ovo da serpente” (1977), título que o cineasta alemão tirou da história acima narrada na peça de Shakespeare –, aventa uma hipótese. A história se passa na sombria Berlim de 1923. Max se suicida em seu próprio e fétido apartamento. O corpo é encontrado pelo seu irmão, Alex (David Carradine), um trapezista judeu e a esposa de Max, Manuela (Liv Ullman). Enquanto o corpo gira silenciosamente no baile final, os vizinhos de prédio gritam e cantam músicas, como se o barulho ensurdecedor apagasse a morte. A Alemanha fora devastada na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O tratado de Versalhes (1919) impôs severas sanções, confiscos e indenizações ao país. A República de Weimar era uma experiência quase socialista. O caos econômico, a hiperinflação, a desindustrialização e o desemprego crônico de quase 30% da população levavam a uma mistura de desespero, melancolia, ceticismo e ódio. A violência explode nas ruas, a população parecia insana. Max e Manuela arrumam emprego numa estranha fábrica controlada por Hans Vergerus. Aos poucos, Max percebe que a fábrica nada mais era do que um laboratório de pesquisas pseudorraciais, de nefrologia e de cruzamento artificial para Eugenia. Em umas das mais densas cenas o estranho pesquisador descreve o futuro para Abel, como as coisas iriam caminhar, como tudo seria subvertido em sangue. Essas pessoas que hoje experimentam a fome, a degradação, a constante humilhação, terão força para a revolução pelo ódio herdado dos pais, avós e gerações de deserdados da terra. E quando a hora chegar alguém lhes oferecerá um futuro, alguém colocará suas insatisfações em palavras, falará de grandeza e lhes pedirá um sacrifício. Era fácil observar a serpente em formação pela fina membrana do ovo.

Bertold Brecht certa vez disse que a cadela do fascismo está sempre no cio. O holocausto judeu durante o nazismo tem uma longa história de antissemitismo em vários países europeus. Durante séculos foram tratados como deicidas, pois – pretensamente – foram os responsáveis pela condenação de Jesus Cristo. Na Idade Média foram eles que trouxeram a peste. Durante séculos eram os usurários do mundo. Sempre sendo perseguidos, presos, assassinados. Sempre injustiçados, excluídos, tendo bens confiscados. No início do século XIX, os partidários do Czar Russo iniciaram uma nova prática: os pogroms.
Antissemitas reuniam-se em frente às sinagogas e iniciavam um espetáculo brutal, de torturas, destruição e assassinatos. Milhares de judeus foram mortos em um século de pogroms que ocorreram na Rússia, na Prússia, na Polônia, na França e no Império Austro-húngaro.
O nazismo adicionou a esse longo processo um sistema racional e objetivo de extermínio de judeus, ciganos, homossexuais, comunistas russos (aliados dos judeus na conspiração mundial para destruir a Alemanha, segundo Hitler). Os campos de extermínio nazistas mataram cerca de 12 milhões de pessoas entre 1941 e 1945, metade deles de judeus. O caminho da eliminação dos judeus na Alemanha seguiu cinco etapas.
Entre 1933 a 1935 apareceram as leis raciais. Na crença nazista, a sociedade era dividida em raças superiores e inferiores. Nesse, período os casamentos “inter-raciais” foram proibidos e iniciou-se a catalogação dos judeus.
Os guetos foram estabelecidos em 1936. Os judeus foram deslocados à força para bairros cercados e periféricos. Suas casas foram vendidas para os alemães por 5% do valor de mercado.
Nos dias 9 e 10 de novembro de 1938 ocorre a Noite dos Cristais. Cerca de 700 fábricas de judeus foram invadidas e destruídas. Três mil estabelecimentos comerciais foram quebrados e incendiados. 90% do dinheiro depositado em bancos foi confiscado, os três maiores bancos judeus foram nacionalizados, ou seja, passaram para as mãos de empresários germanos. As antigas milícias paramilitares dos nazistas, agora um exército alemão paralelo, denominado de S.A., mataram dezenas de milhares de judeus. O último ato dos nazistas foi deslocar a população dos guetos para os campos de concentração, verdadeiras penitenciárias nas zonas rurais.
Siemens, Bayern, Volks, Hugo Boss, BMW, Krupp, entre outras empresas alemãs, utilizam a partir de 1940 os judeus como escravos. A “solução final” vem depois disso. O extermínio puro e simples de milhões de seres humanos. Em 1942 havia 7,5 milhões de judeus na Europa e 13 milhões no mundo. Hitler e os nazistas mataram 80% dos judeus em 3,5 anos. Os campos de extermínio alemães mataram em média 9.000 pessoas por dia por quase quatro anos. Essa é a tragédia. Talvez a maior da humanidade. Pobre César, ser comparado a Hitler.
Na Roma do Século XI, o cavaleiro Brancaleone (Vittorio Gassman), uma espécie de Don Quixote italiano, forma um exército de quatro miseráveis mortos de fome e ignorantes, partindo o “exército” em direção a um feudo a que julga ter direito. Durante o longo percurso pela Europa da Idade Média, no lombo de um pangaré chamado “Aquilante” (uma referência ao “Rocinante” de Don Quixote), ele vai se defrontar com a peste negra, bruxas, bispos e bárbaros de todas as espécies, numa sátira demolidora dos conceitos de honra e coragem sobre os tempos medievais. A história se repete como farsa no filme “O incrível exército de Brancaleone” (1966) de Vittorio Gassman.

Duas semanas depois das eleições no Brasil, soldados de Brancaleone indignados com a derrota nas urnas têm espalhado um misto de caos, violência e esquizofrenia pelas ruas do país. As cenas de humor explícito e inconsciente, as gritarias de caráter racista, machista, transfóbico e que destilam todo tipo e grau de preconceito, formam um espetáculo pútrido e atroz. O anti-cientificismo, a aversão à cultura e democracia formam um perigoso fermento.
Mas não se brinca com serpentes. Os ovos vêm sendo chocados há décadas. É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte, como cantou divinamente Gal Costa.
*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem e articulista do Portal Porque, onde originalmente foi publicado este artigo ( portalporque.com.br)
Maravilhoso texto…compartilhem este texto no FACE. Eu tentei mas não consegui.
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